Há 40 anos, em 11 de setembro de 1973, alguns milhares de soldados iniciavam o golpe que poria fim ao governo constitucional e à chamada via chilena ao socialismo. No palácio presidencial da Moneda, no centro de Santiago, Salvador Allende morria lutando, cercado por alguns poucos fiéis, após conclamar, pateticamente, a população a não resistir. Diante da escassa resistência popular, as tropas do Exército, da Marinha, da Aeronáutica e do Corpo de Carabineiros aderiram ao golpismo, maciçamente.
Mário Maestri*
Apesar de alguns importantes estudos, não temos ainda uma história geral do golpe chileno. Não possuíamos informação precisas da resistência popular armada que ocorreu, a partir do dia 11, por longas semanas, nos bairros populares e industriais de Santiago e no resto do país, em forma atomizada e desorganizada. Não conhecemos em detalhes as deliberações e confrontos no interior das unidades militares, entre oficiais e sub-oficiais golpistas e não golpistas.
Mesmo avançando significativamente nosso conhecimento, não existe uma apresentação geral da terrível repressão que se abateu sobre a população. Nas periferias de Santiago, alucinados pela ingestão de anfetaminas, jovens conscritos comportaram-se como tropas de ocupação, com direito ao estupro e ao saque. A legalização da barbárie foi a estratégia da oficialidade para vergar, pelo medo, o movimento popular e transformar sub-oficias e soldados honestos em verdugos do novo regime.
Quarenta anos após 1973, sobretudo dificuldades políticas impedem uma real análise da experiência chilena. Por razões diversas, da esquerda reformista à revolucionária, nenhum grupo político-ideológico envolvido nos fatos encontra-se em condição de apoiar fortemente esforço para lançar luz sobre eles - e sair indene do balanço. Quanto à direita conservadora e fascista, tudo faz para manter e expandir o desconhecimento sobre os fatos.
Após o golpe, o Partido Comunista Chileno vergou-se sob o peso da repressão e dos resultados de sua política pacifista que entregou a população de mãos atadas aos golpistas. A posterior maré contra-revolucionária vitoriosa, em fins dos anos 1980, contribuiu para potenciar a dificuldade de um amplo balanço da experiência chilena. Hoje, o PC chileno sobrevive como uma pequena agremiação política, em relação a sua passada força, sem capacidade e interesse em avançar um balanço real sobre as razões profundas da crise daquele que foi o mais importante partido operário da América do Sul.
O Partido Socialista constituía uma federação de forças políticas, com setores conservadores, centristas e radicalizados. Foi sobre a sua esquerda, representada por Carlos Altamirano, que convergiram, inutilmente, as esperanças do movimento social, quando se mostrou inevitável o confronto armado contra o golpismo, como única forma de defesa das conquistas alcançadas. O radicalismo verbal do secretário-geral do Partido Socialista em momento algum se transformou em propostas políticas e organizativas concretas. Após o golpe, Altamirano perdeu espaço político para os segmentos socialistas conservadores.
Após consumar-se o golpe, o PS explodiu em múltiplas tendências e, pateticamente, mais tarde, um importante facção socialista participou com destaque do processo de redemocratização autoritária e limitada, de internacionalização da economia e de privatização de bens públicos que concluiria parte essencial do projeto golpista de 11 de setembro de 1973. Por linhas democráticas, os governos socialistas que se seguiram retomaram a reconstrução social-liberal do país imposta duramente pela ditadura militar.
Sequer o Movimento de Esquerda Revolucionária - MIR -, que defendia a inevitabilidade da luta armada, saiu politicamente indene dos sucessos anteriores ao golpe e, sobretudo do confronto e da derrota de setembro de 1973. No dia 11, ao entardecer, sua direção máxima ordenou aos seus militantes que recuassem e não se envolvessem na resistência militar desarticulada em curso, para melhor participarem da "longa guerra popular" que, segundo eles, se seguiria ao golpe. Abandonava-se o campo de batalha real, por um hipotético, que jamais se materializaria.
Uma das mais patéticas páginas da Revolução Chilena foi o massacre que se abateu sobre a militância mirista, quando ela tentou levar à prática, conseqüente e corajosamente, românticas e totalmente irrealistas propostas de guerrilha urbana e rural, no contexto do profundo refluxo do movimento operário e popular que se seguiu inevitavelmente à terrível derrota de 11 de setembro. Crescentemente visíveis à repressão, a direção e mais de trezentos miristas foram presos, torturados e executados.
Responsáveis por um dos mais bárbaros massacres realizados na América Latina, as forças militares e civis que participaram do golpe, direta ou indiretamente, apoiadas pelo imperialismo estadunidense, tudo fizeram e tudo fazem para que não se faça plena luz sobre os acontecimentos, temerosos do ônus político e das conseqüências penais do martírio a que submeteram a população chilena, naqueles dias e nos anos seguintes.
Sentido Histórico da Revolução Chilena
Não foram ainda avaliadas as conseqüências profundas do fracasso da Unidade Popular. A derrota da Revolução Chilena, em 1973, da Revolução Portuguesa, em 1976, da Revolução Afegã, em 1988, desequilibraram a correlação mundial de forças em detrimento das classes trabalhadoras e populares, facilitando a vitória da contra-revolução neoliberal que levou o mundo ao atual impasse civilizacional.
No Chile, em 1970-1973, antepuseram-se límpida e frontalmente as classes trabalhadoras e populares ao grande capital, nacional e mundial, na luta pela direção da sociedade e do país. Como é tradicional, as classes médias acompanharam o movimento social enquanto mostrou decisão e voltaram-lhe as costas quando mergulhou na confusão.
A classe operária chilena formou-se no contexto da mineração do salitre e do cobre e fortaleceu-se com processo de industrialização por substituição de importações bastante semelhante ao brasileiro. Ao contrário do Brasil e da Argentina, no Chile, o operariado jamais foi refém do populismo burguês e construiu poderoso sindicalismo unitário e partidos de classe.
Em 1970, no contexto de profunda crise, a Unidade Popular propusera a transição eleitoral e gradual ao socialismo, através da nacionalização inicial de alguns setores fundamentais da economia - cobre e bancos, sobretudo - e do aprofundamento da reforma agrária. Um programa denunciado por muitos como incapaz de abarcar as crescentes reivindicações populares.
Respondendo à sabotagem da produção e à atividades golpistas iniciadas antes mesmo da posse de Salvador Allende, o operariado urbano e rural promoveu enorme processo de mobilização e ocupação de usinas, fábricas, fazendas. Desde seu início, o governo allendista limitou-se a legalizar ocupações que levaram ao controle popular de grande parte da economia do país.
No Sul, os camponeses de raízes mapuches conquistavam terras perdidas - nos anos, nas décadas e nos séculos anteriores - para os colonizadores e, a seguir, aos latifundiários chilenos. Através do país, os sem-teto ocupavam terrenos urbanos para construir suas moradias e os trabalhadores dirigiam coletivamente a produção de fábricas fechadas ou sabotadas pelos proprietários. Desde muito cedo, surgiram embriões de conselhos operários reunidos territorialmente em fábricas ocupadas.
A enorme criatividade popular obrigou que greve patronal de outubro de 1972 se encerrasse apressadamente, devido à paisagem social que propiciava. As fazendas, as minas, as fábricas, as lojas, os supermercados ocupados por funcionários e operários que não aceitavam cruzar os braços, mesmo pagos para não trabalhar, funcionavam sem proprietários e gerentes! Nos hospitais, alguns médicos progressistas, estudantes de medicina e trabalhadores da saúde garantiram e ampliaram o atendimento, durante greves corporativistas. As classes dominantes expunham impudicamente seu caráter parasitário.
O confronto social chileno pôs sob tensão o mais culto, o mais politizado e o mais organizado operariado americano. Apesar das dificuldades materiais, iniciou-se a construção de um novo mundo alicerçado na solidariedade e no respeito ao semelhante, que se expressava nos mais simples atos inter-pessoais. A difundida prática de tratar por companheiro colegas de trabalho, amigos, familiares e mesmo desconhecidos registrava verbalmente relações crescentemente prenhas de fraternidade e esperança.
Em cenário social que dignificava o trabalho e a solidariedade e abominava o parasitismo e o individualismo, as crianças, jovens, mulheres, idosos e trabalhadores alcançaram dignidade jamais conhecida. Como nas jornadas francesas de 1789, o enorme envolvimento social e político das mulheres de todas as idades foi um dos fenômenos mais significativos da Revolução Chilena. Os valores do mundo do trabalho se sobrepunham as fantasmagorias ideológicas do capital.
O violento embate social ensejou rica e criativa produção cultural que se expressou na linguagem, no jornalismo, na música, nos murais, nas manifestações. A população conservadora foi anatematizada com a riqueza lingüística que apenas a população progressista possuía - momio, pituto, facho, etc. Nos muros das cidades, comandos de jovens militantes pintavam coloridos painéis inspirados nos muralistas mexicanos, registrando os passos da revolução, assim como suas vacilações. Os jovens artistas defendiam-se dos ataques de grupos fascistas e garantiam que suas obras não fossem substituídas ou descaracterizadas.
Foi singular a criatividade expressada nas manifestações políticas. Apesar dos recursos materiais de que dispunham, as demonstrações antipopulares jamais se aproximaram, numérica e criativamente, das marchas populares, com suas palavras de ordem, suas canções, suas faixas e seus cartazes. Semanas antes do golpe, a Unidade Popular colocou nas avenidas de Santiago centenas de milhares de manifestantes.
A música popular chilena alimentava as lutas sociais e alimentava-se delas. Na senda da luminar Violeta Parra, cantores e compositores como Victor Jara, Angel Parra, Patricio Mans e grupos musicais como Inti Illimani e Quillapayun registraram o esforço libertário chileno. Uma realidade que produziu o inesquecível Venceremos e a premonitória Cantata de Santa Maria de Iquique.
"Tudo que Não Avança, Retrocede".
Negando-se a compreender a necessidade de conclusão e institucionalização política de um poder econômico e social já fortemente nas mãos dos trabalhadores e populares, mesmo nos últimos meses, quando o confronto militar mostrava-se inevitável, Salvador Allende e a UP tentavam ainda impossível transação com a direita, desarmando política e materialmente em forma irresponsável as forças populares.
A tentativa de conciliação alcançou momento singularmente patético quando, momentos antes do 11 de setembro, pressionado pela alta oficialidade golpista, o governo popular mandou prender os suboficiais e marinheiros da Armada que se organizavam para defender o governo constitucional do golpismo.
Não havia retorno ao passado. A violência da repressão era necessária para esmagar a autonomia conquistada pelos trabalhadores diante da sociedade de classes e para pôr fim às expectativas mundiais. Havia que destruir, para sempre, a experiência popular vivida, tão intensamente, durante a Unidade Popular.
Numa América Latina sob o tacão militar, desde a vitória de Allende, milhares de militantes latino-americanos refugiaram-se no Chile, onde foram recebidos de braços abertos pelas forças populares e execrados pelas conservadoras. Talvez mais de dois mil refugiados brasileiros vivessem, sobretudo em Santiago, ao lado de argentinos, uruguaios, bolivianos, etc.
A verdadeira caça ao não-chileno lançada no 11 de setembro pelos golpistas almejava apresentar o projeto revolucionário como uma proposta estrangeira e eliminar fisicamente boa parte da direção revolucionária ali refugiada, em operação conjunta entre a CIA e as ditaduras latino-americanas, na qual a ditadura brasileira participou ativamente.
O massacre de militantes estrangeiros foi frustrado devido à ampla solidariedade mundial que obrigou as representações diplomáticas a abrirem generosamente as portas aos perseguidos. Negaram-se a essa iniciativa as embaixadas da China, querendo ocupar o espaço deixado pelo rompimento do governo ditatorial chileno com a URSS, e a do Brasil, para expor seus patrícios subversivos à pior sorte.
Brasileiros foram assassinados, presos e torturados pela negativa do embaixador brasileiro e seus funcionários de cumprir com suas obrigações constitucionais. Nesse então, havia muito que o Itamaraty funcionava como braço da ditadura militar contra brasileiros exilados e vivendo no exterior. Uma história sobre a qual também não se fez ainda luz.
O Chile foi a primeira nação latino-americana a conhecer as receitas da reorganização neoliberal da sociedade, desenvolvidas sob a direção do economista estadunidense Milton Friedman, da Escola de Chicago, cidade celebrizada pelos gângsteres que produziu. Operação que mostra hoje despudoradamente através do mundo seus objetivos e fracassos.
O Estado foi violentamente enxugado. Milhares de funcionários, demitidos. Os preços, liberados; as empresas estatais, privatizadas. As cotizações sociais patronais e os impostos sobre o lucro, rebaixados. A saúde e a educação, entregues a privados. Rebaixaram-se as barreiras aduaneiras, mundializando a economia. Milhares de pequenas, médias e grandes indústrias fecharam. Explodiu o desemprego e a classe trabalhadora encolheu.
O desemprego e a lumpenização do operariado chileno reforçavam a desmoralização e o desencanto político-social promovido pela repressão. Após os refugiados políticos, multidões de chilenos abandonaram o país como refugiados econômicos, não raro para jamais retornarem ao país. Na antiga terra da solidariedade, imperava a lei do cão.
A mundialização e desregulamentação da economia tornou o país o paraíso dos capitais, que investiram sobretudo na produção agro-industrial para o mercado exterior. Apesar da miséria dos bairros populares, o Chile foi apresentado como uma espécie de Tigre latino-americano, exemplo a ser seguido.
A chamada redemocratização do Chile, com a cumplicidade de Partido Socialista despudoradamente reciclado ao social-liberalismo, aprofundou as privatizações e consolidou instituições antidemocráticas que mantém ainda hoje a sombra da ditadura pinochetista sobre o país.
Restaurados nos privilégios, os senhores das riquezas e poder seguem temendo a memória e a experiência gravada a fundo na tradição das classes trabalhadoras. A cada 11 de setembro, ela explode poderosamente em atos de protestos, nas mesmas ruas de Santiago, onde ressoaram, há 40 anos, os gritos de esperança de um povo esperançoso voltado à construção de seu destino.
* Mário Maestri, 64 anos, é professor do PPGH da UPF. Como refugiado político, estudou no curso de História da Universidade de Chile, em 1971-73. E-mail: [email protected]
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