O momento em que o Supremo Tribunal Federal discute a constitucionalidade do ensino da religião nas escolas públicas é bem adequado para se falar sobre o significado da religião nas nossas vidas.
O apresentador de televisão, José Luiz Datena, do alto de sua ignorância, descobriu a razão de tantos crimes que fazem o sucesso do seu programa: é tudo por causa dos ateus e explicou: "o sujeito ateu não tem limites. São os caras do mal. O sujeito que não respeita os limites de Deus, é porque não respeita limite nenhum".
O que podemos dizer, nós, os ateus?
Que o ateísmo é a forma mais alta do humanismo, porque seus valores éticos dizem respeito apenas ao homem e não existem para garantir prêmios na eternidade.
Que o mesmo não pode se dizer dos religiosos, porque sua história está cheia de exemplos de pessoas que falando em nome de Deus ou da religião, cometeram os maiores crimes. A Inquisição, as cruzadas, a caça às bruxas feiticeiras, foram feitas em nome da fé cristã.
É difícil a vida para um ateu numa sociedade onde a religião está presente em tudo, a tal ponto que o homem comum, mesmo que não seja religioso, fica com vergonha de confessar que é, no mínimo, um descrente. E não estamos falando em países com governos teocráticos, onde estado e religião se confundem.
Pensamos no Brasil, um país teoricamente laico, mas onde são comemorados como feriados oficiais eventos de uma religião, a católica. É o Natal, é a Páscoa, são santos de mais ou menos prestígio, lembrados com festas, sem que se pergunte se estamos todos de acordo.
Desde que nascem, os brasileiros são treinados para serem cristãos. Primeiros as cerimônias cheias de mistério como o batismo, a crisma e a comunhão, com um ritual que envolve as mentes mais jovens. Depois é o discurso dos padres, dos professores, da mídia, como se tudo isso fosse muito natural. Como se não houvesse outra forma de pensar.
Felizmente, para os arautos dessas crenças, o slogan "crê ou morre" ficou para trás, ou pelo menos para a maioria, porque sempre sobrará um sujeito na televisão para nos condenar ao fogo do inferno.
Contra esta blitz mística, só nos resta levantar a bandeira da razão, embora digam que a fé não tem nada a ver com a razão. Mas, pelo menos, deixem a razão conosco e fiquem com a fé que escolheram.
Uma razão baseada em livros, como A Origem do Cristianismo, de Karl Kautsky, editado na Alemanha em 1908 e traduzido no Brasil, pelo professor Moniz Bandeira, para a Civilização Brasileira.
Durante muito tempo, Kautsky teve seu nome associado ao qualificativo de "renegado" que lhe foi aposto por Lênin, pelas suas críticas ao regime bolchevista da União Soviética, mas mesmo Lênin sempre reconheceu que Kautsky, soube usar, como ninguém, as armas do materialismo dialético para reconstruir a história do mito de Jesus Cristo e do cristianismo na Palestina ocupada pelos romanos.
Kautsky mostra como o cristianismo deixou de ser um partido político dentro do judaísmo e se tornou um partido dos gentios, externo e hostil ao judaísmo e se transformou, num dos fenômenos mais gigantescos da história da humanidade, que perdura há mais de dois milênios.
Quando morava no Bom Fim, vizinho à escola pública Anne Frank, costumava ouvir uma professora, coma voz amplificada por um sistema de som, nas vésperas do Natal, contar aos seus alunos, reunidos no pátio, a história do Menino Jesus e da manjedoura de Belém, onde Maria e José teriam ido por causa do censo do Imperador Augusto.
Ficava, então, tentado a oferecer a ela o livro do Kautsky, onde ele explica que o censo foi feito quando Jesus teria sete anos, que ninguém se deslocava de um lugar para o outro para responder ao censo e que os evangelistas que escreveram esta história, sabiam que um personagem que se pretendia Deus, não poderia nascer na Galiléia e sim em Belém, terra do rei David, do qual o novo messias seria herdeiro.
A nossa professora e seus alunos poderiam ficar sabendo também que as fontes pagãs da época não falam de Jesus, mesmo que ele tenha feito coisas assombrosas como ressuscitar os mortos e transformar água em vinho diante de centenas de pessoas.
Essas versões só vão aparecer nas fontes religiosas, muitos anos depois, apresentadas com riqueza de detalhes por Marcos, Lucas, Mateus e João, Mas são histórias escritas entre 50 e 200 anos depois do que os fatos pretensamente ocorreram, uma época em que os documentos escritos eram escassos e o que existiam eram apenas testemunhos orais.
Os textos dos evangelistas, mais do que documentos históricos, eram peças de um marketing político, destinado a convencer seus adeptos. Mesmo com o esforço da igreja, no correr dos séculos, de depurar as contradições existentes entre eles, a leitura de Kautsky flagrou dezenas delas.
O famoso milagre da ressurreição, por exemplo. Marcos, que escreveu pouco mais de 50 anos depois dos acontecimentos, diz que Jesus foi chamado ao leito da filha de Jairo, que estava prestes a morrer. Todos pensavam que ela estava morta, mas Jesus diz: "A moça não está morta, mas dormindo" . E põe a mão sobre ela e ela levanta (Marcos,V) .
Lucas, bem mais tarde, fala sobre o jovem de Naim. Quando Jesus o encontrou, havia transcorrido, desde a morte, tempo suficiente para que estivesse a caminho do cemitério. Jesus o levantou do seu caixão (Lucas, VII).
Dezenas de anos depois, João narra a ressurreição de Lázaro, "que estava morto há quatro dias".(João, XI). Quanto mais distante dos fatos, mais as histórias ganham em detalhes milagrosos capazes de emocionar os novos adeptos.
Pensando melhor, acho que fiz bem em não oferecer o livro de Kautsky.para a professora do Anne Frank. Além de ter mais de 500 páginas, ela iria preferir continuar acreditando nas histórias que lhe contaram na infância que, diga-se de passagem, são bem mais interessantes.
Marino Boeira é jornalista, formada em História pela UFRGS
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