Moro perto de um hospital que recebe crianças da América do Sul toda
Para tratamento contra o câncer...
Cabeça raspada; inchadas, pálidas, são anjos mambembes...
"...Eu ando com medo/De que um dia/Ainda ache a tristeza normal"
Recado, Renato Teixeira)
-Você já reparou no olhar de uma criança que está fazendo tratamento contra o câncer?
É a maior dor do mundo; que um ser humano sensível não pode suportar...
A criança está ali, mas o olhar dela não está mais... sabe que vai morrer... faz tratamento...
O olhar está despido da alma. Santo Deus!
Ela tira a alma para ir ao médico, ao hospital, ao laboratório...
E você a olha e ela sabe que você está olhando a incompletude de um ponto de interrogação nela...
Moro perto de um hospital que recebe crianças da América do Sul toda
Para tratamento contra o câncer...
Cabeça raspada; inchadas, pálidas, são anjos mambembes...
E você poeta com um cravo enferrujado no peito, um arame na alma
Olha para a criança; repara nos olhos dela e sofre a dor dela
Colocando-se no lugar do outro você sofre... e pede a Deus por ela... às vezes até duvida de Deus
Uma criança tão bonita, tão pura, inocente, morrendo de câncer...
Você procura os olhos de Deus naquele olhar... naquela situação... naquela morte anunciada... naquela alma-criança
E não obtém resposta. Todo silêncio é dor. Pior dor do que a de sua própria morte...
E a criança brinca com o galho da árvore roçando a janela do ônibus
Quando uma luz de fora brinca com a dor da mãe daquela criança
Que é uma mãe morrendo também...
Que é uma dor-mãe. Você sabe o que é isso?
A criança muda de foco, procura pistas, significados, brinquedos fantasmas
Mas o olhar está parado na dor; um silêncio parado no ar...
Você sabe o que é tirar a alma de uma criança e ela ainda estar Lá, o que quer que Lá seja?
O olhar - uma viagem muito além da angústia, do desespero...
É um olhar de paz resignada; de entrega...
O coquetel... a quimioterapia... -Mãe, Deus existe?
Como você responderá a uma criança nessa hora? Deus? Que Deus?
-Sim, filho, sim criança, sim amor do mundo... Dorme, dorme que a mãe canta uma cantiga de ninar para a dor de ser mãe dessa criança...
A morte foi decretada no DNA. A criança está ali. Brinca com fantasmas.
Olha pra você. Você é menos do que ela, você é nada... a vida é nada...
Mas você olha para os olhos daquele ser, espírito, carne, lágrima e dor...
Qual o sentido da vida? (Não há vitória na morte, está escrito)...
A noite escolheu uma criança para habitar...
A morte vai chegar para você, quando você for velho...
Mas já está naquela criança...
A morte é o trenzinho dela, os soldadinhos de chumbo dela, a boneca de pano dela... a arapuca dela...
A morte; com ela brinca de pular carniça... um dia brincará de esconde-esconde...
No jogo de amarelinha da vida-cão, a morte nos olhos da criança, é a triste pior coisa de se ver
Mas você perde a hora de descer no ponto, perde a honra de existir, e fica olhando o veiculo sumindo na curva do cimento armado do além-dará
E o coração pisado, vai para a escola, e uma criança no percurso pergunta: Professor, por que você está chorando?
E você olha o aluno pobrinho, e responde: Não foi nada não menino, foi só um passarinho que pousou no meu olhar de poeta bobo
E segue seu caminho, órfão de uma criança que vai morrer de câncer
E chegando à escola enche a lousa, lastra-se, lavra-se, canteiro e dor, giz e peito entrevado, tristeza e fúria aplacados...
Mas porque sabe que a esperança é a inteligência da vida
Acredita que quando o mundo acabar; quando a morte matar a morte
E você estiver frente a frente com Jesuscristinho, você ainda há de querer saber; mas olhará nos olhos Dele e talvez ainda assim verá em luz
Nos olhos do filho do criador a tua dor revestida daquele amor de mãe
E ainda estará lá
a lágrima de uma criança que morreu de câncer...
(Silas Correa Leite)
Da Série, Perdoem, Que eu Só Escrevo o Que Vi e Que Sinto
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