Por Kadu Santoro em 23/03/2012
Muitas pessoas já tiveram contato através da leitura ou pelo menos já ouviram falar nas genealogias de Jesus Cristo apresentadas na Bíblia nos dois Evangelhos sinóticos, Mateus e Lucas. Infelizmente pouquíssimas pessoas se aprofundam nessas passagens encontradas nos dois Evangelhos, chegando a ponto de pularem esses versículos em suas leituras, exceto, alguns exegetas bíblicos e acadêmicos de teologia, mesmo assim, a maioria ainda segue uma linha ortodoxa e tendenciosa em suas investigações, não permitindo assim, uma leitura mais imparcial e libertadora de dogmas pré-concebidos.
A genealogia de Jesus no Evangelho de Mateus (Mt.1.1-17) apresenta quarenta e dois antepassados divididos em três módulos de catorze gerações cada: de Abraão a Davi, em seguida até o cativeiro babilônico, chegando por último em José, marido de Maria, mãe de Jesus. Em Lucas (Lc.3.23-38), esta genealogia é diferente, são descritos cinquenta e quatro antepassados, sendo que a partir de Davi, a lista segue por Natan e não por Salomão como está em Mateus.
Segundo a interpretação conservadora da igreja, a diferença entre essas duas genealogias encontra-se no objetivo de cada autor. No caso de Mateus, a intenção seria apresentar Jesus como o Messias Rei da linhagem de Davi, que veio para libertar o povo eleito do julgo da escravidão. Em Lucas, a preocupação do autor encontra-se em apresentar Jesus como o Salvador Universal (Sóter), que tem sua linhagem desde Adão, ou seja, Jesus seria um segundo Adão, que veio para resgatar a humanidade da queda ocorrida no Éden.
Analisando a interpretação tradicional da igreja, percebemos que a preocupação com a transmissão da mensagem dos autores dos Evangelhos, encontra-se atrelada aos acontecimentos de ordem histórico-salvífica coletiva, e não num âmbito mais transcendente e individual, que na realidade, como tudo indica, seria mais provável. Tanto é, que para os próprios Judeus, Essa idéia de Jesus como Messias Rei, é totalmente absurda, pois em sua historicidade e trajetória, não se enquadra em nenhum requisito para ocupar tal posição na história do povo escolhido.
A partir de agora apresentarei algumas questões de aprofundamento sobre o tema, buscando com isso, despertarmos para uma reflexão mais profunda e refinada a respeito da genealogia de Jesus, livre das amarras dogmáticas e fundamentalistas.
Levando em consideração os propósitos teológicos das genealogias de Jesus, começo com algumas perguntas polêmicas: Qual seria o sentido transcendente (mais profundo e oculto) para tais descrições detalhadas? E o significado dos números em ordens harmônicas e nomes citados? Poderia haver uma relação entre ambos, sabendo que cada nome originariamente em aramaico (língua derivada do hebraico) possuía um sentido particular (inclusive mais de um sentido de acordo com a gematria numérica)? Essas são apenas algumas das várias perguntas que o texto nos leva a refletir e consequentemente buscar pistas para a solução das questões levantadas.
Como falamos acima, são muitas as dificuldades encontradas nas duas genealogias, cuja solução nos leva a algumas observações interessantes feitas por grandes teólogos, pesquisadores e estudiosos heterodoxos.
Segundo o Abade e Filósofo Perenista Stephane(01), afirma o seguinte: "Pode-se afirmar que Mateus apresenta a genealogia "legal" e Lucas a genealogia "natural". Sendo a primeira referente a José a segunda a Maria. Embora aparentemente se refiram ambas a José, não se deve esquecer que José e Maria seriam primos, e com certas considerações levando em conta que entre os nomes citados Heli, Heliakim e Joaquim (pai de Maria), seriam sinônimos. Ambas as genealogias tem Davi como ponto de referência comum por uma série diferente de nomes, o que confirmaria a proposição de uma genealogia legal e outra natural. Assim os evangelistas dariam a genealogia de Jesus sob dois aspectos diferentes, apresentando-o como herdeiro de Davi não somente legal, mas natural. Mas do ponto de vista teológico as duas exprimem a sua maneira o dogma das duas naturezas do Cristo: a natureza divina e a natureza humana, unidas na Pessoa do Verbo. A genealogia legal corresponde à natureza divina posto que parte de Abraão, pai do Povo eleito, e se situa por consequência na ordem da Graça. Enquanto isso a genealogia natural remonta a Adão e se situa na ordem natural."
Para o hermeneuta Roberto Pla(02), "O "filho" da promessa de Davi, o fruto de seu seio de varão, foi com efeito, por descendência manifesta da dinastia davídica, Jesus, o Cristo, manifesto e oculto ao mesmo tempo, mas Jesus se cuida de que fique consignado no evangelho que o nascido do céu, o Cristo oculto, o Filho do homem eterno, pré-existente, que se senta à direita do Pai, é nomeado por Davi não como "filho", senão como "seu Senhor". Confirma Jesus com esta pontualização sua presença em Davi, sua identidade essencial com o ungido, tal como havia confirmado sua presença em Abraão e antes de Abraão: "Antes que Abraão existira, Eu Sou". Sem dúvida, antes que Abraão existira e também em tempos de Davi, a Palavra já se havia feito carne e havia disposto sua morada entre nós."
Para Antônio Orbe(03), "nos primeiros séculos em torno da aparição do Logos, alguns escritos descrevem o mistério desde a vertente do Logos como "assimilação, apropriação, assunção, vestição". O Filho de Deus "assume" substâncias ou elementos de natureza variada para salvar por seu meio aos homens. O acento é sobre a "apropriação" - pelo Logos - do espírito, alma e corpo (carne) peculiares ao homem.
Segundo as substâncias assumidas pelo Filho de Deus, conviria distinguir três aspectos fundamentais: a) "espiritualização", ou assunção do pneuma; b) "animação", apropriação da alma (racional); c) "encarnação", assimilação da carne (sarx).
Os três aspectos têm sua importância. E talvez, conforme à soteriologia gnóstica, decrescem em ordem de dignidade. Mais importa para os heterodoxos a "espiritualização" do Logos que sua "animação", e mais esta última que sua "encarnação". O interesse dos mistérios se mede conforme a sua vinculação à salvação, de um lado, e à dignidade da salvação a que se ordenam, por outro. Se, gnosticamente falando importa, sobretudo, a salvação dos indivíduos "espirituais", o primeiro na aparição do Logos entre os homens será sua "espiritualização" (=assunção do pneuma). A "animação" (= apropriação da alma racional) virá depois. E somente por último lugar se deixará sentir a estrita "encarnação" (= "vestição" do corpo).
Dentro da perspectiva heterodoxa, a "encarnação" forma parte do mistério global da assunção pelo Logos das substâncias (= gêneros) humanas. Como apropriação da natureza íntima do homem, a estrita "encarnação" não somente se subordina à "animação" e à "espiritualização", mas - para alguns gnósticos - resulta inteiramente secundária e cede posto à "encarnação sui generis" necessária e suficiente para salvar a rigorosa "animação" e "espiritualização" do Filho de Deus entre os homens. Se o Logos pudesse "salvar" a "alma" (resp. linhagem racional humana) e o "pneuma" (resp. linhagem espiritual humana) sem aparecer (sensivelmente) e viver (e morrer) entre os homens, sobraria o mistério da "encarnação".
Mas na atual ordem de coisas não lhe bastam simplesmente, as duas essências salváveis (pneuma e alma racional). Além de assumir as primícias das duas igrejas chamadas à salvação, o Logos deve aparecer entre os homens, anunciar-lhes sua doutrina, morrer nas mãos deles. Para tal fim a "encarnação" ou parusia entre os homens carnais."
Talvez as respostas mais profundas e arquetípicas sobre a questão das genealogias de Jesus, pode ser encontrada na tradição Hermética Cristã, que analisa o fato através do simbolismo da espiral histórica, bem nos moldes da teologia egípcia que é revelada através das setenta e oito cartas do Tarô (22 cartas dos Arcanos Maiores, que tem uma estreita relação com as 22 letras do alfabeto Hebraico, e 56 cartas dos Arcanos Menores, que expressam os resultados e as formas das idéias, contidos no primeiro conjunto). Vale a pena lembrar que a história de Jesus é muito semelhante em sua narrativa a de Hórus (filho do sol) e Osíris, além do mais, sabemos que os Evangelhos foram reunidos pelo Bispo Atanásio em Alexandria, no Egito, o principal berço intelectual e filosófico da época. Confira a análise segundo o hermetismo cristão: "Outro exemplo do simbolismo da espiral, enquanto arcano do crescimento, é a preparação da vinda de Cristo na história. O Evangelho segundo Mateus faz dela uma espécie de genealogia de Jesus, resumida numa única frase: "De Abraão até Davi?, quatorze gerações; de Davi? até o exílio na Babilônia, catorze gerações; e do exílio na Babilônia até Cristo, quatorze gerações (Mt 1,17).
Eis aí a espiral da história da preparação da vinda de Cristo, espiral de três círculos ou "passos", cada um de catorze gerações. O primeiro círculo ou "passo" da espiral é aquele no qual a tríplice impressão dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó - impressão do alto, correspondente ao sacramento do batismo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo - tornou possível a revelação e a aliança do monte Sinai e chegou ao estado em que a Lei se tornou alma numa pessoa humana, a de Davi? Porque foi em Davi? Que os mandamentos e as ordenações da Lei revelada "com trovões, relâmpagos e uma espessa nuvem sobre a montanha... ao povo amedrontado", se interiorizaram ao ponto de se tornarem amor e consciência, coisas do coração atraído pela verdade e beleza deles. Em Davi? a Lei se tornou alma: por isso, também as suas transgressões deram lugar, na alma, a uma força nova, a penitência interior.
O primeiro "passo" da espiral, as catorze gerações de Abraão até Davi?, corresponde, pois, ao processo de interiorização, que se verificou desde o sacramento do batismo (os três patriarcas), passando pelo sacramento da confirmação (a Aliança no deserto do Sinai), até o sacramento da penitência.
O segundo círculo ou "passo" da espiral, as catorze gerações de Davi? até a deportação para Babilônia, é a escola de Davi?, a escola da penitência interior, a qual alcançou seu fim exterior, a expiação, a deportação para Babilônia.
O terceiro círculo ou "passo" da espiral, as catorze gerações da deportação em Babilônia até Cristo, corresponde ao que se passa espiritualmente entre o último ato do sacramento da penitência - a absolvição - e o sacramento da Sagrada Comunhão ou Eucaristia, o da presença e recepção de Cristo."
Através deste pequeno estudo percebemos o quanto é profundo e complexo fazer uma análise das genealogias de Jesus Cristo, montrando-nos que elas não estão ali pelo simples fato de estar relatando uma historicidade, ou apenas como uma recordação bibliográfica do Antigo Testamento e suas origens na forma de promessa e cumprimento. Sua complexidade vai muito além, transcende toda sistemática teológica tradicional, nos leva a um estágio mais elevado, revelando-nos que toda a trajetória é ao mesmo tempo individual e coletiva, ou seja, a elevação a um estado de consciência superior (iluminação), é fruto da experiência individual ao longo desta jornada histórica, e a manifestação dessa realização acontece e é reconhecida coletivamente, visto que é preciso que todos os seres humanos despertem primeiro, pois senão, não será possível reconhecer a Glória de Deus.
Notas:
01 - ABADE STEPHANE. Nada publicou em vida embora muito tenha escrito e refletido, tendo por base, a partir de um certo momento sua profunda leitura de René Guénon. Graças a Jean Borella e François Chenique, foram publicados dois volumes de coletâneas de seus ensaios, "Introduction à l'ésotérisme chrétien" - Dervy-Livres, onde se pode admirar sua apropriação do pensamento de Guénon em termos cristãos.
02 - ROBERTO PLA. Pensador tradicionalista com trabalhos de grande profundida como sua tradução do Tratado da Unidade, atribuído a Ibn Arabi ou a sua escola, e a notável exegese do Evangelho de Tomé que utilizamos em nossa seção "Biblioteca de Nag Hammadi". A beleza da hermenêutica praticada por Roberto Pla, deste evangelho, está na abordagem tradicional de se valer do Novo Testamento ele mesmo, como "chave" para "re-velar" o Cristo e seu ensinamento.
03 - ANTONIO ORBE é um dos mais conceituados estudiosos do gnosticismo dentro da Igreja Católica, tendo se notabilizado por seus "Estudos Valentinianos", hoje em dia difíceis de se encontrar. Suas obras servem de referência a todos aqueles que desejam se aprofundar de modo sério na tradição dos gnósticos e da própria tradição cristã dos primeiros séculos do cristianismo.
Bibliografia:
Cristologia gnostica: Introduccion a la soteriologia de los siglos II y III (Biblioteca de autores cristianos; 384-385 : 2, Autores contemporaneos) (Spanish Edition)
Abbé Henri Stéphane, Introduction à l'ésotérisme chrétien II ; « De l'ésotérisme chrétien », Edition Dervy.
http://www.sophia.bem-vindo.net/tiki-index.php?page=Genealogia%20de%20Jesus%20Cristo
http://pt.wikipedia.org/wiki/Tarot
*Kadu Santoro é designer gráfico, teólogo, professor e pesquisador, residente na cidade do Rio de Janeiro, responsável pela publicação do Jornal Despertar, um informativo teológico e filosófico e do blog www.jornaldespertar.blogspot.com
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