A última utopia

A  última utopia

Em mais uma arrumação buscando achar lugar para os livros que não paro de comprar, encontrei uma brochura editada pelo Instituto Estadual do Livro em 1991, durante o governo de Alceu Collares, denominado Nós e a Legalidade - Depoimentos. Entre nomes de políticos (Aldo Pinto, Geraldo Stedile, Índio Vargas e Mila Cauduro) e de intelectuais importantes, como Moacyr Scliar e Alcy Cheuiche, estava  também o meu depoimento  com o título de A Última Utopia. Normalmente, algo que você escreveu há 30 anos sobre um evento histórico, envelhece e perde a importância que pode ter tido na época. Não foi o que me pareceu e por isso me atrevo a reproduzi-lo aqui  pensando nas pessoas que não viveram aqueles dias.


A perspectiva do tempo torna os fatos históricos mais claros. Olhando para trás, muitos anos depois, você sabe quem eram os heróis, quem eram os vilões.  As sutilezas se apagam e fica mais fácil distinguir o certo do errado, o progressista do reacionário. O difícil é fazer essa distinção na hora em que os fatos estão acontecendo. Algumas vezes, porém, isso ocorre.

O chamado Movimento pela Legalidade talvez tenha sido um dos últimos grandes acontecimentos da História do Brasil onde a complexidade dos interesses em jogo não impediu que as pessoas percebessem a essência dos fatos
Aquele agosto de 1961 começara tranqüilo e terminara em meio a uma grande crise, justificando a tradição de ser um mês aziago para a política brasileira.
Jânio renunciara; Jango estava na China; a cúpula militar tramava o golpe que não conseguira completar em 54, com a morte de Getúlio. Tudo se resolveria no conforto dos gabinetes e o povo seria informado depois das decisões.


Este quadro confortável acabou se desestabilizando pela ação do Governador Brizola, do Rio Grande do Sul, que inseriu no processo um elemento até então considerado desprezível pelas elites que acertavam, entre elas, o futuro do País: o respeito às normas constitucionais que regulavam a sucessão presidencial. Se o Presidente Jânio Quadros havia renunciado, em seu lugar deveria assumir o vice-presidente eleito, João Goulart. 
Como sempre acontecera na História recente do Brasil, travou-se então uma guerra de ameaças e pressões na busca da neutralização daquele político gaúcho, subitamente tornado tão inconveniente.


O importante era não derramar o sangue de irmãos, impedir uma guerra fratricida, buscar a tolerância tão tradicional na alma dos brasileiros e outras frases que a retórica conservadora sempre soube usar nessas ocasiões.
Só que o inconveniente não cedia. Brizola organizava uma resistência que desafiava todas as normas da prudência.
Naqueles dias de fim de inverno e início da primavera eu era apenas mais um jovem de 20 anos, encharcado de cinema e literatura, sonhando com a chegada de uma sociedade socialista para o Brasil.


Para mim, o radical populista que ocupava o Palácio Piratini não parecia ser a pessoa mais indicada para comandar esse processo de busca do socialismo
Os seus discursos de todas as sextas feiras pela Rádio Farroupilha eram motivos de ironias e piadas. Mas o Movimento pela Legalidade começara a mudar a ótica das coisas.
Naquele meio dia, que a memória localiza hoje entre fins de agosto e início de setembro, o Governador fez o discurso mais emocionante da sua carreira de político. Os "inimigos", os "imperialistas" iriam bombardear o Palácio Piratini e ele convocava a todos para defender a legalidade ameaçada.


Uma das figuras mais utilizadas na literatura diz que o personagem fica com um "nó na garganta" e a "voz embargada" quando a emoção é demais. Naquele dia, eu fiquei com um "nó na garganta" e a "voz embargada" ao ouvir o Brizola pelo rádio.  Como milhares de outros, fui também para frente do Palácio Piratini para defender a justiça da nossa causa. Como esses milhares, eu também tinha muito claro na cabeça, que havia um lado certo e um lado errado. Que havia heróis e vilões.


Era o grande momento da virada da História do Brasil. Mesmo que houvesse luta, mesmo que se derramasse sangue, teria sido por uma causa justa. O país que emergisse dessa luta seria bem melhor, certamente. Era a prova por que passam todas as grandes nações, mas que o Brasil postergou.


As grandes raposas da política, os tancredos, os mazillis, os moura andrades, saíram rápidos de suas tocas e concertaram um grande acordo entre os militares golpistas com o janguismo. Nascia um espúrio parlamentarismo. Tiraram do Brizola a bandeira da Legalidade e o neutralizaram, enfim. Em 1964 ele tentou desfraldá-la novamente, mas não havia mais clima para isso. O Movimento da Legalidade de 1961 foi nossa última utopia. Depois disso vieram os anos de chumbo da ditadura e a pálida e mesquinha democracia dos nossos dias.

Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS

 

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