Seguramente, a Coreia do Norte está condenada agora a ocupar nas telas de cinema o lugar de império do mal absoluto que antigamente era ocupado pelo Iraque. Mas, paralelamente à imagem cinematográfica da Coreia do Norte, existe a Coreia verdadeira que não é tão impermeável aos estranhos como se escreve, sobretudo se estes estranhos são russos, chineses ou sul-coreanos - em suma, os vizinhos do último Estado comunista do mundo.
O aeroporto internacional de Pyongyang está vazio como um mausoléu, só recuperando alguma animação para prestar serviços aos voos para as cidades da Rússia e da China.
Se bem que a minha visita anterior a Pyongyang tivesse sido curta - ou seja, não mais de um dia -, encontrei por acaso uma centena de russos na cidade. Um grupo de alunos duma escola de Vladivostok (porto no Extremo Oriente da Rússia) estava a passar férias no litoral da Coreia do Norte. Desta vez, no hotel fiquei instalado ao lado do famoso conjunto de dança Moisseev, em "tournée" pelo país. E, além disso, vi muitas pessoas a falar chinês.
Espero que o leitor destas linhas não tenha nada contra o método clássico de comparar impressões de duas viagens, tanto mais que a viagem anterior foi no Verão de 2002, ano histórico para a Coreia do Norte, quando no país começaram as reformas económicas. No entanto este tema ficou sem realce face ao chamado "escândalo nuclear" que deflagrou no Outono do mesmo ano. Só para explicar: Tratou-se de um episódio relacionado com a declaração oficial do Departamento de Estados dos EUA de que em Outubro de 2002 alguns diplomatas norte-coreanos teriam confessado ao secretário de Estado James Kelly que a RPDC estava a realizar um programa nuclear. Os diplomatas afirmam não terem feito quaisquer confissões sobre a problemática referida, mas fosse como fosse desde então e até agora o tema nuclear tornou-se o ponto de referência na Internet para a Coreia do Norte. A palavra "reforma" não dá na pesquisa nenhuma referência. É de lamentar.
A chamada "crise nuclear" que se traduziu na suspensão do fornecimento de combustíveis norte-americanos às centrais eléctricas da Coreia do Norte e deixou em suspenso a construção da central atómica, não teve felizmente nenhum impacto sobre as reformas iniciadas por Pyongyang. Tal é perfeitamente patente para quem tem a oportunidade de visitar a capital da Coreia do Norte.
Ainda há dois anos Pyongyang à noite era uma cidade nas trevas e deserta, mas agora está razoavelmente iluminada (embora sem chegar aos excessos da Quinta Avenida da Nova Iorque ou da Beverley Hills). Claro que não se compara a Tóquio ou Seul à noite, mas nas casas há luz e nas paragens dos tróleis há sempre filas de gente à espera.
Agora o principal fornecedor de fuelóleo é a República Popular da China. Na mesa das conversações sobre o "dossier nuclear coreano", que envolvem seis países (Rússia, China, EUA, Japão, Coreia do Sul e Coreia do Norte), está a proposta relativa ao reinício do fornecimento de energia à Coreia do Norte com uma única modificação: doravante, estes custos são assumidos não pelos Estados Unidos mas pela Coreia do Sul e o Japão. Neste esquema compete à Rússia o papel de fornecedor de energia. A gigantesca central hidroeléctrica de Bureya (Sibéria Oriental) modificou radicalmente o panorama energético no Extremo Oriente da Rússia, tradicionalmente carente de energia. A central referida tem ainda capacidades de reserva que, caso necessário, poderão ser utilizadas para exportar electricidade para a Coreia do Sul com um ramal para a Coreia do Norte. Importa aqui observar que estes projectos existem independentemente do andamento das conversações entre os seis países.
É grato constatar que nas ruas de Pyongyang, antes desertas, apareceram já bastantes carros (segundo os padrões norte-coreanos), e, como é natural, surgiram os primeiros acidentes rodoviários. Nas encruzilhadas apareceram polícias sinaleiros em uniforme branco que parecem mais manequins num desfile de moda. Só saem do seu posto quando o frio ou calor passa a ser exagerado. Nas ruas vêem-se os primeiros cartazes e anúncios publicitários. E o primeiro protagonista destes anúncios foi o carro sul-coreano "Heiparam" (Sopro de Vento), criado com base no Fiat italiano.
Apareceram os primeiros indícios de generalização das comunicações digitais. Os chineses assumiram este projecto, cobrando 1500 dólares pela ligação e 3,75 euros por minuto de comunicação. A China e a França "descongelaram" um projecto de renome mundial: construir em Pyongyang um arranha-céu de 105 andares em forma de pirâmide. Diga-se de passagem que para além desta mega-obra com instalações modernas, a construção civil em Pyongynag é ainda muito rudimentar, sem guindastes e equipamentos modernos.
Outro indício agradável das reformas é a diversidade cada vez maior de vestuário dos coreanos e aqui o maior mérito é da China - melhor dizendo, do comércio cada vez amplo com o gigante asiático. Ao que parece, este país é o que mais está a ganhar com as reformas na Coreia do Norte, traduzidas no início da circulação monetária e nos primeiros indícios do mercado de consumo.
Importa explicar esta questão. Na RPDC - país clássico do sistema comunista de distribuição - não é que não houvesse dinheiro: o maior problema era a circulação de muitos tipos de dinheiro. Havia os wons para o povo, os wons para os chefes de escalões diferentes, outro dinheiro para pagar aos estrangeiros. Afinal, tudo isso era uma cópia dos exemplos clássicos da União Soviética e da China no auge da economia comunista.
Os primeiros passos da reforma foram os aumentos salariais e a liberalização cautelosa dos preços. Agora na Coreia do Norte circulam os wons (para todos) e o euro. O país adoptou a moeda europeia há aproximadamente dois anos, renunciando ao dólar "para não sustentar a economia dum Estado hostil", conforme a expressão oficial. A propósito, os cambistas ou os empregados das lojas aceitam cortesmente dólares, mas sempre convertendo-os para o euro. O que está excluído categoricamente é realizar pagamentos em wons da Coreia do Sul.
Os que residem permanentemente em Pyongyang dizem que o câmbio não constitui nenhum problema ou dificuldade, mas também circulam rumores de que os cambistas do mercado negro podem oferecer um câmbio mais favorável, diferente do oficial (1 euro = 174 wons) - no entanto, só para clientes conhecidos. Todavia, estas pessoas preferem principalmente a moeda da China, que tampouco é cotada oficialmente.
O salário dum norte-coreano é da ordem de 6000 wons, com um quilo de arroz a 200 wons e um par de sapatos a 20.000 wons. Por isso o calçado mais popular é de lona com sola de borracha e durante a chuva - botas de borracha. O principal é que agora ninguém pergunta aos norte-coreanos onde é que obteve os wons ou euros, ou como é que ele comprou tais luxos como sejam sapatos com sola de couro genuíno.
Ao longo das ruas centrais vêem-se pequenos quiosques e pavilhões que muito me fizeram lembrar os tempos da "perestroika" na URSS de Mikhail Gorbatchev. Os primeiros destes estabelecimentos apareceram na Coreia ainda em 2002, mas agora estão crescendo como cogumelos e os vendedores são os primeiros comerciantes privados na Coreia do Norte.
Desde 2003 existe em Pyongyang um mercado grande aonde os estrangeiros têm acesso. Antigamente, os cidadãos estrangeiros tinham à sua disposição umas quantas lojas especialmente para eles, com o dinheiro especial de que já se falou nesta reportagem e os norte-coreanos não tinham acesso a estes estabelecimentos. O que há no mercado é essencialmente produtos alimentares, roupas e sapatos baratos, principalmente da China. Os economistas e analistas que acompanham o desenvolvimento das reformas assinalam o nivelamento progressivo dos preços: no mercado e nos quiosques com os do comércio público. Este facto é digno de nota, sendo diferente dos processos que se verificaram em certa altura na URSS ou na China. Isso tem a sua explicação: as reformas na Coreia do Norte avançam muito lentamente.
Em Pyongyang, com dois milhões de habitantes, funcionam agora 187 lojas onde os pagamentos são efectuados em moeda estrangeira, mas agora acessíveis a todos. Numa delas, a Rakwon Department Store, eu cheguei a descobrir, além de artigos de primeira necessidade, ovos de avestruz (a propósito, na Coreia do Norte há várias quintas para criar estas aves), azeite importado de Espanha, excelentes bebidas fortes de fabrico coreano e um vinho "sui generis" local. Vi também uma colecção razoável de conhaques, tequilla, televisores de écran plano e muitas outras coisas.
As reformas fizeram com que aumentasse em flecha o comércio externo do país, essencialmente graças às importações. Entender algo nas estatísticas oficiais é uma coisa complicada. No entanto, os cálculos dos analistas e peritos apontam para mil milhões de dólares com a República Popular da China, muito a favor desta última. Com a Rússia o comércio equivale apenas a 130 milhões de dólares, com a Coreia do Sul mais ou menos a mesma quantia com uma só diferença: nesta cooperação não domina o aspecto comercial, antes sim a realização de projectos conjuntos - digamos, na zona industrial de Kesson, onde já foram lançados os fundamentos para várias empresas, em Kimganssan foi iniciado um projecto turístico nas montanhas.
A Rússia também desenvolve projectos conjuntos com a RPDC, mas principalmente em território russo. 4,5 mil operários norte-coreanos trabalham no sector florestal da Rússia. E aqui é digna de nota uma observação feita pelo chefe da secção comercial da Embaixada da Federação Russa em Pyongyang assinalando que os operários da Coreia do Norte são especialistas altamente disciplinados, com um alto nível de preparação e especialização. Já agora no Extremo Oriente da Rússia montam computadores a partir de componentes fabricados na Coreia do Norte e que são de elevadíssima qualidade.
Todas estas observações constituem um "background" útil para os que querem compreender as "correntes submarinas" e as posições dos participantes das conversações em torno da RPDC. Para os seus vizinhos, a Coreia do Norte significa elevadas possibilidades económicas e com resultados que não se farão esperar.
É difícil vaticinar algo sobre o andamento futuro das reformas coreanas. Mas uma coisa é certa: o país muda, embora lentamente, conservando ainda as características comunistas. Grandes cartazes políticos e ideológicos em cima dos edifícios, música de marcha a ressoar por toda a cidade, cartazes representando baionetas a atravessar o agressor norte-americano...
Ora, mesmo o problema do "dossier nuclear coreano" não fará parar as reformas na Coreia do Norte, embora, sem dúvida, do seu progresso venham a depender directamente os ritmos com que se desenvolvem as transformações neste último reduto do comunismo.
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