AS CARICATURAS DINAMARQUESAS E O EMBARAÇO DA ESQUERDA

Denuncia as caricaturas dinamarquesas como provocações de direita. Mas denuncia também na esquerda aqueles que estão neste caso a aceitar limitações à liberdade de expressão bem como os que olham para o fundamentalismo islâmico como uma forma de resistência ao imperialismo.

O tom inicial foi dado por Daniel de Oliveira, do Bloco de Esquerda, quer na sua coluna no Expresso, quer no programa da SIC Notícias, o Eixo do Mal. No artigo fazia-se referência à indignação que não iria por aí se alguém, na senda das acusações de pedofilia a alguns padres norte-americanos, representasse Cristo como pedófilo. Nesta mesma semana ao folhear o Avante encontramos um único artigo de Leandro Martins sobre o assunto, na rubrica Actual, e nenhuma referência no noticiário internacional. Na Assembleia da República, o PCP apoiou o voto de protesto do PS, por condenar "o uso irresponsável da liberdade de expressão" e absteve-se no voto de protesto do BE por ignorar "as provocatórias caricaturas". Do Governo e do PS vem-nos, por esta ordem, um lamentável comunicado, criticado por Manuel Alegre no Parlamento, e o já referido voto de protesto. Pelo meio, as declarações irrisórias de Vitalino Canas, que afirmava "estão bem uns para os outros, os caricaturistas irresponsáveis e os fundamentalistas violentos", e o artigo de Ana Gomes no Público, manifestando solidariedade ao comunicado de Freitas do Amaral. José Saramago, no El País, apela ao bom senso. Tirando Fernando Rosas, do BE, que na Assembleia da República termina a sua intervenção citando Éluard e o seu belo poema sobre a liberdade, a esquerda sente-se incomodada com esta situação, não sabendo muito bem o que dizer.

Em contraponto tivemos a direita, no seu maior esplendor, com Vasco Rato no programa Prós e Contras e, como sempre, Pacheco Pereira, no Público e na Quadratura do Círculo, a tomarem posição, apesar do discurso favorável à dupla Bush-Blair, por uma coisa que deveria ser elementar à esquerda que é a defesa da liberdade de expressão e, acima de tudo, a possibilidade de no nosso país e na Europa se poder criticar e ridicularizar os símbolos religiosos do "Ocidente".

O que é de realçar, desde logo, neste episódio foi a pressa com que a Igreja e, parece, que Bush, defenderam o princípio que não se devem ofender as outras crenças e como alguns comentaristas, na mesma onda, acharam que as caricaturas não deveriam ser publicadas. O Governo português, depois de defender o mesmo ponto de vista, acabou a utilizar esta expressão, que nos cheira a sacristia e a salazarismo, "não se deve confundir liberdade com licenciosidade".

A esquerda não pode, em nome da relatividade das diferenças culturais, contemporizar com um princípio que limite a liberdade de podermos brincar e até ridicularizar os símbolos da religião católica ou de qualquer outra ou tão simplesmente, como aconteceu naquele anúncio que recorria à "Virgem Maria" para promover o Centro Comercial das Amoreiras, utilizar os seus símbolos para outros fins que não os tradicionais. Esquecemo-nos que entre nós também há fundamentalismo e do pior. A campanha contra a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), utilizando imagens chocantes de fetos ou as afirmações proferidas pelo bispo de Viseu, quando do referendo, comparando aqueles que defendiam a IVG aos nazis, são um pequeno exemplo. Temos igualmente o abaixo-assinado dirigido à Assembleia da República para que esta discutisse a «execrável caricatura» de António, publicada no Expresso, que mostrava o Papa com um preservativo no nariz, e a concomitante queixa à Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS), que felizmente não teve seguimento. Tivemos também a manifestação encabeçada por Krus Abecasis, na altura presidente da Câmara de Lisboa (1985), a tentar impedir a exibição do filme de Godard, "Je vous Salue Marie", ou um episódio, mais antigo (1979), de uma bomba que rebentou junto ao cinema que estava a exibir "As Horas de Maria", do António de Macedo, ou ainda a recente campanha contra retirada dos crucifixos das escolas. É evidente que ninguém está a pedir que estas manifestações sejam proibidas, mas a forma fanática com são lançadas, o acolhimento oficial ou oficioso que recebem, o pronto acatamento como são recebidas pelos visados, como no caso da retirada pelo anunciante do cartaz sobre as Amoreiras, são bem o exemplo de como a liberdade ainda é frágil no nosso país e como ao tomarmos partido contra aquelas caricaturas em nome da defesa dos valores religiosos dos outros, estamos a justificar as campanhas que entre nós se fazem, porque alguém está a ofender os "sentimentos cristãos do povo português".

A publicação das caricaturas constituiu, provavelmente, uma provocação deliberada da direita. Há ideólogos dessa área política que estavam mortinhos que isto acontecesse, para justificar as agressões passadas e futuras aos países islâmicos, mas que a denúncia deste facto não nos leve, em nome do respeito ou do "respeitinho" aos valores religiosos dos "outros", a permitir que a censura se instale entre nós e nos impeça de exercer a nossa liberdade de crítica e de "blasfémia" aos "nossos" símbolos religiosos.

No fundo, o que devemos denunciar são as posições de direita e extrema-direita sobre o mundo muçulmano, quer elas se traduzam por caricaturas de Maomé ou em artigos de imprensa, e não limitar a liberdade de podermos "blasfemar" contra símbolos religiosos, sejam eles quais forem.

Diferentemente de tudo isto é o que se passa no mundo muçulmano e as suas reacções às caricaturas. Aqui, temos que cortar cerce as intervenções dos comentadores da direita que, apoiando-se nas manifestações violentas que se têm verificado, pretendem justificar os actos de agressão ao mundo muçulmano perpetrados pelo "Ocidente", a guerra do Iraque e a acção da dupla Bush-Blair.

Por outro lado, não podemos concordar com o que diz Leandro Martins, no Avante: "mesmo que movidas por cegos sentimentos religiosos e fundamentalistas, sem a consciência plena do que mostra o movimento que alastra no mundo islâmico, as multidões erguem-se afinal, perante a injustiça e o imperialismo". A atitude complacente para com o fundamentalismo religioso islâmico em nome de que ele combate o imperialismo americano é de uma falta de visão, que esquece as atrocidades e os crimes que foram cometidos por esta gente contra a esquerda no mundo muçulmano.

Não nos podemos esquecer que o fundamentalismo religiosos no Afeganistão foi apoiado e pago pelos Estados Unidos e pela Arábia Saudita para combater os infiéis, ou seja o governo de esquerda que dirigia aquele país, com o apoio da URSS. Os "combatentes da liberdade" de Reagan estão na origem dos talibãs, que os americanos afastaram do poder, e Bin Laden colaborou activamente com os serviços secretos paquistaneses e com CIA para derrotar os soviéticos. O Hamas, que hoje é tratado como pária pelos americanos e pela União Europeia, foi criado pelos Irmãos Muçulmanos, que foram um dos instrumento da monarquia saudita para combater Nasser e os nacionalistas árabes. Nos primórdios o Hamas foi apoiado por Israel como contrapeso à OLP, de Asser Arafat, que era um movimento laico.

Recomendaria a todos aqueles que consideram o fundamentalismo como um movimento anti-imperialista que lessem o livrinho de Domingos Lopes e Luís Sá "Com Alá ou com Satã, o Fundamentalismo em Questão" (Campo das Letras). Transcrevo, para que não se esqueça: "O maior fardo da ordem islamista reinante em alguns países pesa, sobretudo, nos trabalhadores e povos desses países. São os que trabalham em condições desumanas, sem quaisquer liberdades, que sofrem os efeitos práticos dessa velha ordem. São as mulheres que vêem mutilados os seus mais elementares direitos de cidadania. São os intelectuais, que vêem totalmente vedada a liberdade de criação. São as populações que, para o poder fundamentalista, são objecto de uma feroz repressão, que visa dar suporte a um poder económico de tipo liberal escondido com roupagens religiosas. O novo poder islamista tem, em alguns dos seus aspectos, características semelhantes às do fascismo. Assume feições totalitárias de recorte terrorista e visa promover a acumulação de capital ao serviço de sectores do capitalismo emergente nesses países".

Recentemente, quando uma representante do Partido dos Trabalhadores Comunistas do Iraque (PTCI) esteve presente numa sessão pública no Museu da Resistência, em Lisboa, e descreveu o que era o quotidiano das massas árabes vítimas da desorganização imposta pelos ocupantes americanos e ingleses e pelos atentados terroristas dos fundamentalistas, muitos revolucionários instalados na sua comodidade de Lisboa, insurgiram-se, pois achavam, que o que aquela militante devia apelar era aos atentados e não aquilo que ela defendia, que era à auto-organização do povo com vista a sobreviver num quotidiano tão difícil, apesar de nunca deixar de denunciar a ocupação da sua Pátria pelos americanos.

Mas vejamos o que esta militante do PTCI disse numa entrevista que concedeu ao site da Renovação Comunista:

"Apercebemo-nos de que o povo tem necessidade de alguma forma de vida normal e de ser organizado em várias organizações progressistas e de se politizar mais, em vez de actuarem como máquinas de matar pressionando para a acção cega na tentativa de terminar com a ocupação. Fomos os primeiros a condenar o ataque americano e a ocupação do Iraque, mas terminar a ocupação não deve significar passarmos a ter um Estado Islâmico no nosso país e comprometer assim os direitos das mulheres e dos trabalhadores como resultado dessa acção cega. Queremos terminar a ocupação mas em condições para edificar um Estado secular e igualitário, senão mesmo um Estado socialista.

Consideramos a resistência contra a ocupação como uma táctica legítima, mas o que se está realmente a passar no Iraque actualmente é terrorismo puro, não tem nada a ver com uma mobilização contra a ocupação. O meu ponto é também táctico, nós como trabalhadores comunistas não vemos a resistência como uma metodologia e competição para ver quem consegue mais matança de seres humanos, nós vemos a resistência como uma onda alargada e organizada de massas politizadas de trabalhadores e de mulheres contra a ocupação."

A esquerda tem pois que, sem contemporizar com as brigadas ideológicas dos amigos de Bush, com Pacheco Pereira à cabeça, acolitado por esse irritante Vasco Rato, fazer uma análise mais complexa do que é hoje a luta dos povos influenciados pelo Islão e saber em cada caso concreto, quem são os verdadeiros revolucionários e anti-imperialistas e não ceder ao aparente facilitismo, em que todos aqueles que se manifestam contra os americanos, são anti-imperialistas e merecem o nosso apoio.

Nesse sentido, não tenho a mais pequena dúvida que as manifestações têm uma clara conotação política e nada têm de desagravo espontâneo contra uma ofensa religiosa. Mas isto faz parte da luta política do nosso dia a dia, não inventaram os americanos as armas de destruição maciça para invadirem o Iraque? Contudo, a direcção das manifestações pelas forças mais retrógradas do Islão, o recurso ao fundamentalismo religioso, conduzirá, como no passado já se verificou, as massas árabes a um beco sem saída e a uma visão alienada da luta política, que as lançará num novo desespero e numa situação de bloqueamento histórico. Sem pretendermos ter a verdade na mão, a esquerda não pode contemporizar com saídas não progressistas para uma grave situação de crise.

Jorge Nascimento Fernandes

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