No início de novembro, o alto representante da União Europeia para as Relações Exteriores e a Política de Segurança, Josep Borrell, viajou a Kiev para sinalizar que os europeus continuarão seu forte apoio às forças armadas ucranianas na guerra contra a Rússia.
A visita se deu logo depois da vitória nos EUA de Donald Trump – que já indicou inúmeras vezes que pretende desengajar o seu país do conflito. “Temos apoiado a Ucrânia desde o princípio e hoje transmito a mesma mensagem: apoiaremos em tudo que pudermos”, afirmou o diplomata no dia 9.
Quando da estadia de Borrell em Kiev, o Instituto da Economia Mundial de Kiel, na Alemanha, calculava que a União Europeia já havia destinado 125 bilhões de dólares ao governo do presidente Vladimir Zelensky desde o início da intervenção russa, em fevereiro de 2022. Isso é mais do que o enviado pelos EUA (90 bilhões de dólares).
Ao mesmo tempo em que defende de forma contundente a Ucrânia, Borrell tem sido um forte crítico do extermínio de palestinos por Israel em Gaza. Já chamou a situação no enclave palestino, onde mais de 44.000 pessoas foram mortas por Israel, de “tragédia humana” e “a maior crise humanitária desde a II Guerra Mundial”.
Também indicou que Israel poderia estar cometendo crimes de guerra e propôs, ainda em novembro, a suspensão das conversas entre União Europeia e Israel devido às violações dos direitos humanos e do direito internacional em Gaza.
Apesar da adoção de uma postura crítica sobre a atuação de Tel Aviv, é um absurdo considerar as posições do chefe da diplomacia europeia como antissemitas – algo que o gabinete de Benjamin Netanyahu tem feito. Em 2022, ficou famosa sua declaração de que o extermínio de 5 milhões de judeus pelos nazistas alemães na II Guerra foi “a maior tragédia da história da humanidade”.
Uma foto tirada pelo repórter Gleb Garanich, da agência Reuters, contudo, ajuda a jogar luz sobre o duplo padrão por trás do aparente humanismo de Borrell. Quando visitava uma exposição de equipamentos bélicos usados pelos ucranianos no conflito, ele passou diante de um tanque cheio de pichações e desenhos feitos pelos militares. Eles indicam que o tanque pertencia ao famigerado Batalhão Azov, pois havia o desenho de seu escudo, com um Z cortado, ao lado de uma suástica.
O Z cortado, dentro do escudo do Azov, é a Wolfsangel, um dos muitos emblemas utilizados pelos nazistas alemães. E a suástica – bem, a suástica…
O Batalhão Azov é um dos mais notórios participantes do lado ucraniano na guerra. Aliás, ele foi fundamental para o início da guerra. Foi fundado em 2014 por elementos neonazistas que formavam a tropa de choque do Euromaidan, revolução colorida que derrubou o então governo ucraniano e o substituiu por uma junta influenciada pelos grupos de extrema-direita que, como o Azov, tornaram-se proeminentes na política ucraniana desde então. O Azov esteve na linha de frente da investida do novo regime para suprimir as revoltas no Donbass contra o golpe de Estado, o que gerou o conflito que vemos até hoje.
“Os LGBT e as embaixadas estrangeiras dizem que não foram tantos os nazistas que participaram do Maidan, que só uns 10% eram [militantes] ideológicos”, disse, no início de 2022, Evgeni Karas, líder do C14, uma milícia neonazista. “Se não fosse por esses 8%, a efetividade [do Euromaidan] teria caído 90%”, continuou, acrescentando que, sem isso, o Euromaidan não teria passado de uma “parada gay” – esse tipo de reconhecimento só os extremistas mais descarados têm coragem de fazer.
O movimento que levou à derrubada do então mandatário, Viktor Yanukovich, e à ascensão das organizações de extrema-direita, teve origem na insatisfação da União Europeia com a postura do presidente ucraniano, que preferiu manter o status de neutralidade da Ucrânia ao não assinar um acordo de livre-comércio com o bloco. Uma das antecessoras de Borrell na chefia da diplomacia da UE, Catherine Ashton, logo realizou viagens à Ucrânia junto com Victoria Nuland, secretária-assistente do Departamento de Estado dos EUA, onde se encontraram com representantes dos grupos neonazistas. A fachada pretensamente democrática dos protestos, as ONGs, tiveram amplo financiamento da União Europeia e dos EUA, desde muitos anos antes do Euromaidan.
Triunfantes, os membros do Pravy Sektor e do Svoboda – outros agrupamentos neonazistas – assumiram cargos no judiciário, no Ministério da Defesa e em agências de segurança nacional. Seis dos novos governadores impostos pelo novo regime eram membros do Svoboda, que até 2004 se chamava Partido Nacional-Socialista da Ucrânia. O C14, antiga juventude do Svoboda, assinou, em 2018, um acordo com a prefeitura de Kiev para patrulhar as ruas da cidade, significando uma incorporação às forças oficiais.
Já sob o mandato de Zelensky, foi a vez do Azov ser incorporado à Guarda Nacional, como regimento. Sua milícia, que vigiava as ruas, passou à supervisão do Ministério do Interior, sendo enviada para operar por todo o país em conjunto com a polícia nacional. No final de 2021, Dmytro Yarosh, ex-líder do Pravy Sektor entre 2013 e 2015, tornou-se assessor do comandante-em-chefe das forças armadas ucranianas.
Em 2020, o parlamento ucraniano estabeleceu o aniversário de sete colaboradores notórios da ocupação alemã da Ucrânia na II Guerra Mundial como datas comemorativas oficiais. Entrementes, os membros do Azov ajudavam Zelensky a perseguir opositores. Em 2019, invadiram a casa de Viktor Medvedchuk e, um ano depois, o principal opositor do regime foi preso por “traição”, segundo Zelensky.
Os neonazistas não cessavam de receber prêmios e cargos no alto escalão do governo. Em dezembro de 2021, o presidente condecorou uma liderança do Pravy Sektor como “Herói da Ucrânia”. Isso indica o prestígio desses setores dentro do regime, mas também um pagamento pela sua atuação decisiva no campo de batalha.
São os grupos neonazistas que estão na linha de frente da guerra, desde o seu início. Os moradores do Donbass contam até hoje as histórias tenebrosas dos horrores cometidos pela infantaria ucraniana no período mais duro da guerra, entre 2014 e 2015. Em Lugansk, onde estive no primeiro semestre de 2022, quem mais barbarizou foi o Batalhão Aidar. Outra organização de combatentes neonazistas, o Aidar – assim como o Azov – recebeu financiamento do oligarca Igor Kolomoisky, o principal patrocinador de Zelensky. Os habitantes dos vilarejos em Lugansk nunca vão esquecer, por exemplo, do fuzilamento de 18 pessoas ao lado da igreja de Novosvetlovska, ou do bombardeio da própria igreja, onde dezenas de pessoas se abrigavam. Logo após a intervenção russa, Zelensky nomeou um ex-comandante do Batalhão Aidar como novo administrador-geral do oblast de Odessa.
Assim como as ONGs de fachada que abriram o caminho para o neonazismo se instalar no poder na Ucrânia, esses partidos e milícias armadas também foram – e continuam sendo – financiados pelos EUA e a União Europeia. Em 2016, uma parte dos armamentos enviados pelo Pentágono foi destinada ao Azov. No final de 2017, oficiais do exército americano prestaram assessoria no terreno àquele grupo. O Azov também recebeu instrutores e lançadores de granadas britânicos dos países da OTAN logo após a intervenção russa, assim como o Pravy Sektor.
Relatório do Instituto de Estudos Europeus, Russos e Eurasiáticos da Universidade George Washington publicado em setembro de 2021 apontou que o grupo “Centuria”, também de orientação neonazista e formado por oficiais do exército ucraniano, participou de exercícios militares conjuntos da França, Alemanha, Polônia, Reino Unido, Canadá e Estados Unidos.
Concomitante à tomada das instituições do Estado pela extrema-direita fascista, a Ucrânia vem se despedaçando economicamente. Isso não se deve apenas à guerra, mas também ao alto preço pago por Kiev pela integração informal à União Europeia: o repasse dos bens públicos para mãos privadas, sejam de oligarcas nacionais ou de empresários e bancos estrangeiros. São as “reformas” que um governo subserviente faz para se adequar à vontade dos seus tutores.
“A Ucrânia continua avançando com reformas fundamentais para se tornar membro da UE, ao mesmo tempo que combate uma guerra de agressão”, disse Borrell em outubro, ao apresentar o relatório anual sobre a expansão da União Europeia. Afirmou ainda que o bloco “continuará apoiando a Ucrânia em ambas as frentes”.
A União Europeia já forneceu mais de 980 mil munições para a guerra da Ucrânia contra a Rússia, e Borrell prometeu chegar a um milhão até o final do ano. Cerca de 15 mil civis foram mortos no Donbass desde 2014, graças a esse tipo de incentivo.
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