Ex-juiz político contra João Sem Terra, Parte 2: A obsessão compulsiva pelo habeas corpus

Caio Henrique Lopes Ramiro[1]

Fernando Rodrigues de Almeida[2]

Marcelo Augusto Pirateli[3]

Em Setembro de 2022, escrevemos a este nobre meio de comunicação[4], um texto que levava o título homônimo a este que escrevemos agora, o assunto era sobre algo que muito nos chamou atenção, a aversão do ex-juiz, ex-ministro, ex-parecerista jurídico, ex-professor Sergio Moro - naquela época candidato a Senador da República pelo Estado do Paraná, atualmente eleito para o cargo – em sua campanha eleitoral pelo instituto histórico fundamental da democracia parlamentar ocidental, chamado Habeas Corpus.

Naquele texto chamávamos atenção para o fato de que na campanha política do atual senador a figura do HC aparecia como a pedra no sapato do Diadorim do judiciário brasileiro. Naquele tempo muito nos chamou atenção a narrativa da impunidade ter um alvo que é justamente àquele que simboliza a democracia historicamente e é justamente aquilo que falta as ditaduras.

Naquele tempo pensávamos ainda que o problema era apenas o espírito cartunesco do Juiz Dredd que o mito messiânico significava em sentido político eleitoreiro, mas recentemente começamos a pensar que talvez o problema do senador com o Habeas Corpus seja mais de natureza freudiana.

Nos últimos dias o noticiário nacional foi tomado de assalto por um vídeo em que o senador paranaense aparece sugerindo a possibilidade de compra de uma decisão judicial junto ao decano do Supremo Tribunal Federal, a saber: o Ministro Gilmar Mendes. Nosso ponto não se vincula a antiga querela do ex-juiz de província com a alta corte do judiciário nacional (o que talvez possa, por hipótese, evidenciar certa dose de ressentimento), bem como, também, os tais “desafios” ao Ministro em questão que foram propostos nos idos tempos da operação midiático-judiciária capitaneada pelo agora senador da República.

A questão bastante curiosa é a insistência com relação ao Habeas Corpus. No texto anterior, destacamos a importância de tal instituto na história constitucional do hemisfério ocidental, todavia, o representante do estado do Paraná usa o remédio heroico de garantia da liberdade, conforme denominado por Pontes de Miranda, como exemplo possível de corrupção judiciária. Quais seriam as razões? Teria o i. senador passado os olhos pelo já clássico “As misérias do processo penal”, de Francesco Carnelutti? Ainda, um rápido lance de olhar pela utilização do instituto na história constitucional do Brasil? Para ficar nos sombrios tempos ditatoriais, cumpre lembrar de passagem o nome do i. advogado Evandro Cavalcanti Lins e Silva, que mobilizou a ação constitucional a fim de garantir direitos aos perseguidos políticos.

Feitas estas considerações, o senador buscou se retratar publicamente, haja vista que foi denunciado pela Procuradoria Geral da República, incorrendo, em tese, em práticas delitivas contra autoridade judiciária brasileira. Por aqui, mostra-se importante garantir o amplo direito de defesa, com a observância do devido processo legal e do contraditório para o senador paranaense, inclusive, no que tange a garantia do foro por prerrogativa de função.

Dentro desse cenário, um dos institutos jurídicos que vêm sendo tematizado já há algum tempo é o das imunidades, em especial a imunidade formal em relação ao processo, também conhecida como “foro privilegiado”. De saída, deve-se considerar que há um conjunto de normas constitucionais que dispõe acerca das garantias e do regime jurídico dos agentes políticos, prevendo suas prerrogativas, direitos, deveres e incompatibilidades. A concepção conceitual que envolve tais institutos - ao contrário do que se pode imaginar no senso comum -, é a garantia de independência dos atores políticos no que diz respeito às relações institucionais entre os poderes constitucionais, desta forma, dizem respeito a salvaguarda da atuação do representante no exercício do mandato e não necessariamente deve corresponder a um privilégio que tenha no horizonte uma espécie de imunidade absoluta de cunho pessoal. Desse modo, o fundamento de existência das prerrogativas ou a finalidade de tais imunidades é a proteção da independência dos agentes nas relações entre os poderes, bem como, também, frente à própria sociedade, uma forma de garantia do exercício livre da representação política.

No que diz respeito à imunidade formal quanto ao processo, esta pressupõe a prática de um crime, contudo, a garantia se dirige a questão processual com o estabelecimento de competência para julgamento no Supremo Tribunal Federal, conforme disposição constitucional. Ressalte-se que havia um regime diferente para o processamento antes do ano de 2001, uma vez que para processar penalmente, por exemplo, um deputado ou senador, o STF teria de pedir autorização à respectiva Casa congressual, algo que foi alterado com a Emenda Constitucional nº 35/2001. É importante considerar que o senador paranaense se apresenta como crítico de tal instituto, haja vista sua pretensão de ser reconhecido como um outsider do mundo político. É preciso considerar com cuidado a questão no presente caso, uma vez que um julgamento em instância singular pode ferir de morte importante garantia constitucional. 

Ainda, a crítica a tais institutos é feita desde há muito tempo dentro da teoria do direito e do direito constitucional. Para ficarmos com um exemplo, o jurista austríaco Hans Kelsen, em texto sobre o parlamentarismo, de 1924, já afirmava que, durante a longa existência do sistema parlamentar este não conseguiu angariar a simpatia das massas, bem como das classes cultas, muito por culpa dos abusos praticados ao que ele chama de “privilégio anacrônico da imunidade”. Importante registrar que há um fecundo debate em termos de teoria política que se liga a crise da representação política, algo que perpassa o tema da imunidade na democracia parlamentar. Não obstante, o diagnóstico de Kelsen toma cuidado em não apenas atacar a ideia de representação, tendo em vista que a conjuntura da Alemanha em 1924 era bastante delicada.

Assim, há uma preocupação em Kelsen em fortalecer a ideia de representação política, em especial a parlamentar, com a possibilidade de uma maior aproximação do mandato do agente político de um compromisso com interesses que possam significar um consenso normativo de fundo (por exemplo: a defesa da democracia e das liberdades), a fim de se evitar a substituição da democracia parlamentar e, respectivamente, do estado de direito, por uma autocracia, que apresenta seus argumentos antidemocráticos na esfera pública como se estivesse a defender o Estado Democrático de Direito. Por aqui, é importante recordar que o ex-juiz político foi ministro da justiça do governo fascista que foi derrotado nas urnas no último pleito eleitoral, ou seja, o atual senador não estaria na mesma trincheira do gigante Hans Kelsen.

Ainda, da esfera de discussão política brasileira, nota-se um argumento que ganhou projeção e que diz respeito a uma compreensão de alguns direitos como privilégios, em especial direitos sociais como, por exemplo, os direitos trabalhistas e previdenciários. Trata-se de nítida proposta que se rende a antigo projeto da ideologia neoliberal que pretende transformar direitos em mercadoria e, para tanto, constrói a ilusão da concorrência de mercado como o melhor dos mundos na periferia do capitalismo, contudo, o que não se diz é que a destruição de direitos construir privilégios de manutenção da desigualdade social no Brasil. Assim, bem entendido o foro por prerrogativa de função não é necessariamente um privilégio, bem como, também, não o eram os direitos trabalhistas aniquilados pela reforma trabalhista instrumentalizada pela Lei nº 13.467 de 2017.

Ao se tratar da ideia de privilégio em que se coloca como pauta de discussão, mostra-se necessário verificar um pouco da história político-jurídica. A instituição senatorial é uma invenção do imaginário político-jurídico romano. Neste sentido, o cargo de senador é a regra desde a constituição histórico-política de Roma, um privilégio concedido aos integrantes da linhagem de Rômulo que estão muito longe de formar uma assembleia de representantes aos moldes da moderna compreensão de representação política do estado de direito de matriz liberal e parlamentar, uma vez que a vitaliciedade da atividade senatorial em Roma se encontra fundamentada na representação da tradição e da autoridade do esforço dos pais fundadores (autoritas patrum). Ao que parece, a via do reconhecimento se liga a ideia de descendência, algo que até pode ser notado na realidade das instituições parlamentares brasileiras ao longo da história política e constitucional do país, contudo, mostra-se em alguma medida diferente do privilégio romano.

Assim, no que diz respeito ao tempo de agora, cumpre ressaltar que além da competência constitucional de guardião da constituição (Art. 102 CF), o STF é órgão competente para o julgar integrantes do congresso nacional, conforme disposição do artigo 102 da norma fundamental. No entanto, em postura política que nos remete a Carl Schmitt, o Supremo Tribunal Federal é entendido como um hostis, ou seja, um inimigo político declarado, tendo a autoridade de suas decisões sido contestada por inúmeras vezes, bem como a idoneidade de alguns de seus integrantes, o que parece evidenciar uma aposta paradoxal na busca, nos termos de Kelsen, de um anacrônico privilégio, talvez em julgamento em instância judiciária que não seja o Supremo Tribunal Federal.

Por fim, o presente texto, nem de longe tem a pretensão de um olhar diagnóstico, mas vale ressaltar que se tem uma contribuição que a Psicanálise trouxe foi a possibilidade de compreender a pessoa em relação ao seu desejo, não se limitando a descrição fenomenológica dos sintomas de um sujeito, mas a compreensão de sua psicodinâmica. No obsessivo o desejo é o desejo pelo impossível; seus pensamentos são marcados pela hesitação, marcados pela dúvida, conflitantes entre a uma consciência escrupulosa e crises de culpa e marcadamente desconfiados se conseguiram cumprir seu “perfeccionismo” e os ideais que escolheram. Sofrem ao serem severos consigo mesmos. Sujeitos caracterizados por obedecerem excessivamente às regras e um senso exagerado da ordem: hipermoralistas sempre a criticar as demais pessoas. Não seria exagerado atribuir certas características, tais como: serem ritualísticos e planejadores, sistemáticos, temorosos pelo incerto e o improviso, polidez demais, burocrata, corporalmente rígidos e pouco espontâneos.

Como decifrou Lacan, aqueles que tem caráter obsessivo transferem afeto para o pensamento, isto é, a um exagerado investimento em um determinado pensamento, o que torno até caricato e acentuado o papel de suas ideias. Tendem a levar a justiça ao extremo e, possivelmente, por uma teimosa exagerada se opõe às autoridades. É visível como pessoas assim são previsíveis: a aparência de boa educação, moralidade superior, cordialidade, camuflando uma agressividade negada. O obsessivo fantasia sobre temas de poder e controle, estando imerso em conflitos de raiva e medo.

A relação problemática do senador em questão com esse histórico instituto e o seu ressurgir no vídeo acima apontado é curioso.

Parece óbvio demais afirmar que os direitos fundamentais estabelecem determinados princípios para a garantia da unidade política de uma nação, daí sua importância. Os direitos individuais são imprescindíveis para todos que convivem em sociedade em um determina do Estado. Portanto, tratam-se de prerrogativas construídas socialmente e essenciais para a individualidade e a personalidade.

No que se refere ao Habeas Corpus, é minimamente razoável a compreensão de que quando um direito é lesado, restringido e ameaçada a liberdade física ou, até mesmo, quando for de agravamento ilegítimo as condições de detenção, nada mais justificado que o afetado recorra a tal instituto. Parece algo muito sério para ser tratado como uma matéria de chacota qualquer. Em nosso país parece ainda necessário apontar que nenhum cidadão pode ser preso sem ao menos ter provas plenas e veementes do crime. E mais: O recurso de Habeas Corpus é aplicável contra uma ordem ou procedimento de um funcionário público tendente a restringir a liberdade de uma pessoa, isto é, cabe um recurso de proteção da liberdade perante o juiz competente.

A construção histórica da definição dos direitos do homem foi uma grande conquista, isso é inegável, mas, como sabemos, já fora conquistada desde o século XVII. E mesmo que seus efeitos em sua gênese não foram extensos, sua força reside nas ideias humanitárias que propagou. Como indicamos em nosso texto anterior, já no Direito Romano havia a preocupação de proteger a liberdade, por se tratar de um dos bens mais elevados. Como expresso no De Homine Libero Exhibendo era mais do que amparar a liberdade, tinha-se ali um senso de civilidade contra excessos. Hoje, se cabe ao Estado cumprir a proteção dos direitos individuais, podemos também afirmar que a grandeza da Constituição está em garantir os direitos individuais e impedir que qualquer forma de agressão comprometa sua estrutura. Defender os direitos individuais e trata-los com a máxima seriedade também é uma forma de defesa da própria Constituição, as liberdades individuais e uma luta necessária contra o neofascismo em curso em nosso país.


 
[1] Professor de Direito Constitucional no curso de Direito Faculdade Maringá. Professor adjunto de Teoria Política e Direito Constitucional no curso de Direito da UNINGA. Doutor em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Universidade de Brasília (UnB). Advogado.
[2] Professor de Filosofia do Direito, Direito Constitucional e coordenador do curso de Direito da Faculdade Maringá. Doutor, Mestre e Graduado em Direito. Advogado.
[3] Doutor e Mestre em Educação pela UEM, graduado em História e Psicologia, professor de História do Direito da Faculdade Maringá e Fundamentos Históricos e Epistemológicos da Psicologia na Faculdade Adventista do Paraná.
[4] https://jornalggn.com.br/artigos/ex-juiz-politico-contra-joao-sem-terra/; Também: https://port.pravda.ru/news/cplp/56511-sergio_moro/. 

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Author`s name Caio Ramiro