Conto Amor (Clarice Lispector)

Conto Amor (Clarice Lispector)

            O contexto filosófico da existência já foi trabalhado por inúmeros escritores mundo a fora. Desde Dostoiévski, Kafka, passando por Joyce, Camus, Sartre e outros tantos que desenvolveram obras fantásticas relacionadas ao tema. Contudo, podemos afirmar que no Brasil, quem mais deu ênfase, em sua produção literária, a essa dramaticidade que envolve seus personagens numa concepção de mundo temeroso e angustiante foi Clarice Lispector. (Qualquer que seja a posição filosófica da escritora, o certo é que a concepção do mundo de Clarice Lispector tem marcantes afinidades com a filosofia da existência...para darmos um só exemplo, a experiência da náusea, que aparece nos contos e romances da autora de Laços de família. Benito Nunes, O dorso do tigre, p.93) E é justamente nessa obra, Laços de família, que irei analisar a problemática de uma das personagens da autora que talvez mais enfatize essa imersão no caráter reflexivo da existência humana: Ana, do conto Amor. Porém, antes de tratar do conto e de sua personagem, darei um pequeno exemplo, por meio de um dos grandes estudiosos nesse tema, do surgimento nauseante que recai, subitamente, envolvendo o personagem e seu ser.

            Em Memórias do Subsolo de Dostoiévski, o personagem também passa por um desenvolvimento de consciência; uma constatação da negatividade que se tornou sua vida. Sua auto-análise soa como um posicionamento definitivo e penoso. "Com efeito, uma vez que atribuímos à consciência esse poder negativo com relação ao mundo e a si mesmo, uma vez que a nadificação faz parte integrante do posicionamento de um fim, é preciso reconhecer que a condição indispensável e fundamental de toda ação é a liberdade do ser atuante." (SARTRE, Jean-Paul 2007 pg,539)

            E é esse ser atuante que o próprio Sartre descreve em seu romance A náusea - caracterizado pelo seu protagonista, Roquentin - que, igualmente a Ana de Clarice, exterioriza sua angústia, a "náusea", num dia extremamente comum (no jardim de Bouville) e humanamente simples. E claro que não poderia ser diferente, como sugere Benedito Nunes, p. 95 (Vivemos, afinal, num mundo puramente humano, onde a consciência é a única realidade transcendente.) Sendo assim, é quando a realidade a arrebata, ao ver um cego mascar chicles, que Ana é envolvida por toda lucidez da angústia.   

 

          

            Ela é uma simples dona de casa. Um dia comum, um dia como qualquer outro. Assim, numa prosaica ida ao supermercado, Ana, personagem do conto Amor de Clarice Lispector, vê sua vida descarrilar-se diante de um mundo até então considerado limpo por ela. Seria a grande virada que a autora proporcionaria à personagem. (os seres criados por Clarice Lispector assistem, muitas vezes, como espectadores, à constante metamorfose de seus atos efetivos. Benedito Nunes, p. 117) A autora nos leva magistralmente por um labirinto de situações que permitem ao leitor atento uma viagem do sublime ao grotesco pelos meandros da filosofia da existência humana por meio da epifania, e claro, de seu cotidiano.

 

"O próprio cotidiano quando se torna tema da ficção, adquire outra relevância e condensa-se na situação-limite do tédio, da angústia e da náusea." (CÂNDIDO, Antônio, 1968 pág. 32)

 

            O conto começa com a simples existência da personagem - das manhãs limpas e seus móveis sem poeiras -, pois de sua janela, do apartamento que faltava pouco para pagar, Ana enxergava, diariamente, a solidez de sua vida adulta, a beleza de sua vida servil para com um lar e uma família que dependiam sem dúvida nenhuma, assim imaginava, dela... A não ser naquelas tardes estranhas, naquelas horas perigosas em que marido e filhos, seguiam seus caminhos e deixavam-na entregue ao vazio. (Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Laços de família; p. 21)  Porém sem ainda lidar, como veremos adiante, com a concepção de mundo, do vazio do Ser, como sugere Nunes: "quanto nos sentimos existindo, em confronto solitário com a nossa própria existência, sem a familiaridade do cotidiano e a proteção das formas habituais da linguagem, quando percebemos ainda a irremediável contingência, ameaçada pelo Nada, dessa existência, é que estamos sob o domínio da angústia. O dorso do tigre; p. 93)

            Acontece que as horas perigosas finalmente cairiam sobre a personagem. Com naturalidade, com uma ação extremamente banal - a dona de casa incontestável aos olhos do mundo carregando suas compras e seu saco de tricô - Clarice despeja diante do leitor, e de Ana, a realidade fictícia (da personagem). Desnuda sua existência até então escura e quem sabe primitiva, fazendo a personagem descer do céu que sua vida sugeria ao inferno de sua existência. Essa revelação, pode­-se dizer mesmo o primeiro momento de náusea da personagem, logo irá submetê-la a algo angustiante, como sugere Benedito Nunes em o Dorso do Trige (A náusea nos desnuda, reduzindo-nos àquilo que somos: constâncias indigentes, com a maldição e o privilégio que a liberdade nos dá.) Tudo se dá (o momento epifânico, nauseante, que lhe revela tudo que não sabia) quando da janela do bonde ela avista um cego parado na rua. Com extrema sutileza, e requintes de sofisticação literária, Clarice apresenta o cego a Ana com um risinho de escárnio no rosto e, detalhe importante, de olhos abertos a mascar chicles. É a concepção existencial que a envolve de repente, dominando-a; e ela precisa entender, como explica a filosofia:

"O Existencialismo já não espera desvendar ao homem a infelicidade oculta da sua condição; quer apenas ajudá-lo a assumir essa condição que lhe é impossível ignorar. Não encarando de frente a verdade, o homem esgota-se a debater-se contra ela." (BEAUVOIR, Simone. Origens do Existencialismo, pág. 39)

  Ela sempre estivera de olhos abertos, sabia, mas por que só agora, diante daquele homem sem visão e que não tirava a poeira do mundo como ela, conseguia enxergar? A autora nos empurra sem piedade ao abismo existencial. Ana grita, deixa as compras e o saco de tricô caírem. Assustadas, as pessoas a olham e não entendem seu desespero. Com o quebrar dos ovos Clarice nos leva a ruptura do sublime, do perfeito, deixando assim que as gemas expostas e mal cheirosas representassem enfim a podridão de uma vida monótona e absurdamente sem sentido que Ana não pudera ver até então. Acontece, como diz o crítico: "esse momento de profunda crise já era esperado. A angústia cresce, a emoção agrava-se, toma conta do corpo de Ana, mulher quieta, de vida organizada. É um mal-estar ( respiração opressa etc.) que surge do mundo para sujeitar a consciência ao descontrole do corpo. Benedito Nunes; p.97)

             Não foram apenas as compras, espalhadas no chão do bonde, que a fez ruir e saltar do mundo em que vivia até aquele instante, mas também o cego, que ficou para trás quando o bonde voltou a andar. (o bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara para atrás para sempre. Mas o mal estava feito. Laços de família; p. 24) Daí em diante, após o momento revelador em que se destruía uma vida perfeita, Ana passou a se deparar, da janela do bonde e, principalmente, perdida no belo Jardim Botânico, com suas árvores carregadas, em um mundo tão rico que apodrecia com o mal. E esse mal, colocado habilmente por Clarice, aparece com vigor, rijo, cheio de segurança nas pessoas que passavam na rua, voltando do trabalho, indo para seus lares, e felizes envoltos num viveiro de suas existências que ela, naquele instante em meio à beleza do Jardim (e a angústia do repentino surgimento de um gato) conseguia vê, como diz o crítico:

 

            No Jardim Botânico, onde Ana já transtornada entra, o ambiente colorido e ameno de um fim de tarde transforma-se, de súbito, num viveiro de agitadas existências. Bastou que visse um gato, cheio de secretos poderes. Logo principia por todos os lados o assédio das coisas, já estranhas, mobilizando forças secretas, que se derramam em ação indormida. Presenças sensíveis, outrora familiares, repentinamente estendem garras ocultas. (Benedito Nunes; p. 97)

  

            Pode-se dizer que o Jardim Botânico vem a ser uma abstração da linha espaço tempo no conto, cuja beleza ("o jardim era tão bonito que ela teve medo do inferno". Laços de família; p. 27) a angustia naquele espaço vasto e humanamente infinito criado por Clarice.

 

Até os lugares expressamente designados, como o Jardim Botânico em Amor, ou o Zoológico em O búfalo, apresentam-se como partes permutáveis de uma cena vasta e ilimitada, a Natureza em si, ou a realidade compacta das coisas, que coincidem com o mundo, em que o homem se situa e localiza a sua existência. No universo da romancista, o ambiente é Espaço e o Espaço, meio de inserção da existência. (Benedito Nunes; p. 114)

           

            Já em casa, à noite, Ana preparava o jantar para o marido, seus irmãos, mulheres e filhos. Tudo igualmente comum - revela Clarice -, a não ser pela imagem da existência absurda que não a deixava desde a tarde fatídica. (carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado a outro da cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Laços de família; p. 30) E é dessa existência absurda, que costumam envolver os personagens da autora, que nos fala Benedito Nunes; p.119: é essa existência absurda, ameaçadora e estranha, revelando-se nos indivíduos e a despeito deles, o único fundo permanente de encontro ao qual as figuras criadas pela romancista se destacam e de onde retiram a densidade humana que as caracteriza.

 

            Terminado o jantar todos pareciam felizes ("cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos". Laços de família p. 30), e a própria Ana ria suavemente com os outros. Contudo, aquele filete de angústia, náusea, continuava a pulsar na existência da personagem de Clarice Lispector; pois apesar do jantar, da intimidade generosa da noite ("riam-se de tudo, com o coração bom e humano". p. 30), Ana sabia de sua solidão, como sabia também - findado o tenebroso dia - que só a ela cabia resistir:

"Não será, pois, a amizade que quebrará a solidão em que o homem está encerrado; nunca é possível a um indivíduo partilhar as alegrias e as tristezas de outro: 'os seres são impenetráveis, as consciências são incomunicáveis'; no amor, na amizade, em todos os afectos, cada qual permanece um estranho misterioso para o outro." (BEAUVOIR, Simone. 1965, pág. 23)

  

             O que podemos concluir é que, não se pode afirmar que há um desfecho no conto, pois Clarice, apesar da revelação da personagem que poderia apontar sim para liquidar seu conflito, parece devolvê-la à situação inicial - "antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia"; Laços de família pag.30 -, como se fosse possível - daí um engano para o leitor desatento - extirpar do seu eu a ofuscante luz daquele dia sombrio e fechar os olhos novamente. Até porque, o mal estava feito, e Ana continuaria existindo. Assim, como disse Camus em O mito de Sísifo: "a falta de sentido da existência revela-se naqueles lugares desertos e sem água onde o pensamento alcança os seus limites". Ou seja, para as personagens de Clarice, como sugere Benedito Nunes (na ficção de Clarice Lispector, o cotidiano é, a partir de certo momento, completamente desagregado. O dorso do tigre; p. 123) tal revelação acontece no cotidiano comum e simples.  

             

Júlio Castelo Branco

Foto: https://pt.wikipedia.org/wiki/Fi%C3%B3dor_Dostoi%C3%A9vski#/media/Ficheiro:B_pokrovsky_kazn_1849.jpg

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey