A Amazônia jamais foi nossa! Foi sempre deles! E vai ser ainda mais!
Mário Maestri*
No início do século 16, europeus descobriram o imenso rio e a luxuriante floresta de dimensões então incalculáveis que cobria o norte da América do Sul. Muito logo, a região tornou-se fonte de narrativas lendárias, propondo-se que ela seria a pátria das míticas guerreiras gregas que deram o nome região - as amazonas. Sobretudo na segunda metade do século 20, a parte brasileira da imensa floresta ensejou mitos políticos, entre eles, a vocação das forças armadas brasileiras de protegê-la da vontade das nações imperialistas de conquistá-la.
Essa narrativa patriótica, esboçada no período getulista (1930-45), quando da "Marcha para o Oeste", foi oficializada pela Ditadura Militar [1964-85]. Então, sob a consigna "Ocupar para não Entregar", foram lançadas iniciativas como a construção da inacabada BR 230, a "Transamazônica", de mais de 5.600 quilômetros, ligando transversalmente os estados da Paraíba e do Amazonas. Foram também lançados desvairados projetos de colonização camponesa. Nesses anos, como durante a Colônia, o Império e a República, as populações da região ou imigradas foram exploradas sem dó e jamais usufruíram das terras e dos frutos das regiões florestais. Devido à sua difícil exploração econômica, elas não haviam sido entregues e ocupadas como sesmarias, permanecendo terras do rei, do Império e da Republica.
A Amazônia jamais foi realmente cobiçada pelas nações imperialistas. No passado, ela não possuía ouro e prata. Não possuía também populações nativas suficientes e terras e clima propícios para a plantações mercantis. Foram outras as regiões do Brasil cobiçadas pelas grande potências. Em 1555, os franceses ocuparam a baía da Guanabara. Em 1612, ele desembarcaram no Maranhão para estabelecer plantações escravistas. Em 1625, os holandeses fracassaram na conquista de Salvador e, cinco anos mais tarde, tiveram sucesso na ocupação de Pernambuco e adjacências, até 1654. Tudo para dominar a produção açucareira escravista, tão valiosa então quanto o petróleo hoje.
Dominação indireta
No século 19, as nações imperialistas passaram a interessar-se, não mais pelo domínio dos territórios, mas sim pelo controle dos governos das nações americanas agora independentes, de modo a explorar suas populações e recursos. O caso da borracha é exemplar. Nos anos 1870, a Amazônia conheceu a explosão do extrativismo da borracha nativa. Centenas de milhares de nordestinos foram deslocados para essas regiões, sendo terrivelmente explorados pelas classes dominantes regionais, tudo em favor do capital inglês. Nos anos 1910, os seringais na Malásia e, a seguir, a borracha sintética puseram fim ao "ciclo da borracha", retornando a região à situação de atraso secular.
As queimadas na floresta Amazônica são milenares. As comunidades tupinambás derrubavam pequenos troços de mata, deixavam secar, juntava o abatido, ateavam fogo, plantavam mandioca e outros gêneros. A derrubada da mata era trabalho masculino. A plantação, cuidado e colheita eram feitos pelas mulheres. O desmatamento não superava a dimensão de um campo de futebol de salão. Após alguns anos, iniciava-se o ciclo em um terreno próximo. As queimadas unitárias de milhares de hectares iniciaram-se quando da ditadura militar.
No período ditatorial, os novos meios comunicação e o impulso exportador levaram ao assalto das terras públicas por poderosos grileiros. Em 1976, Medida Provisória do governo militar permitiu regularização de "posses" de até sessenta mil hectares - cinco vezes as léguas de sesmarias dos tempos coloniais. Mais de duzentas mil vezes a dimensão de uma queimada tupinambá. A liberalidade dos senhores generais enquadrava a dimensão do processo de livre assalto à floresta e aos bens da nação. Esse movimento acelerou-se nos últimos anos com a explosão do agronegócio, centrado na produção, beneficiamento e exportação das carnes e dos grãos. A adaptação da soja ao bioma do cerrado propiciou verdadeira "corrida do ouro". Desde então, os governos federais e estaduais que se seguiram entregaram a floresta em forma moderada ou sem travas aos grandes, médios e pequenos sojicultores e criadores.
O processo é o dos tempos históricos, potenciado sideralmente pela moderna tecnologia. As terras federais ou demarcadas como reservas florestais, indígenas, quilombolas são invadidas. As árvores são derrubadas com moto-serras, a madeira valiosa é carregada por caminhões. O que sobra é deixado secar, por uns três meses, para, a seguir, ser lançado o fogo. As terras planas desmatadas servem para a agricultura, as onduladas, para o pastoreio. As eventuais populações nativas das terras invadidas são escorraçadas ou dizimadas. Como nos tempos de então, segue-se matando índios impunemente. Tudo é feito pelo bem do progresso e do Brasil.
Políticos assaltantes
O processo de ocupação e legalização das "posses" é feito com o apoio das autoridades municipais, estaduais, federais. Estados como Maranhão, Tocantins, Pará, Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul têm o poder municipal e estadual controlado pelos maxi-grileiros. Blairo Borges Maggi, o "rei da soja", foi ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do governo Michel Temer e governador do Mato Grosso. Como senador, ocupou a presidência da Comissão de Meio Ambiente, Fiscalização e Controle do Senado Federal. A tal história de atar cachorro com linguiça. É apontado como mega-devastador do meio ambiente.
O agro-negócio, em geral, e o assaltantes das terras federais, em especial, apoiaram e financiaram a campanha de Bolsonaro. No governo, o Mito lhes deu luz verde, liberalizando os agrotóxicos; designando um anti-ambientalista como Ministro do Meio Ambiente; intervindo no INCRA, na EMATER, etc.; cortando as verbas para o controle das queimadas, etc. O movimento dos maxi-grileiros é constituído de milhares de interessados, em múltiplos estados, quando muito, com organização local e regional.
Em agosto é o período da "queimada de inverno", quando se prende fogo aos capinzais nas fazendas de criação extensiva, para renovar os pastos. É também época das queimadas clandestinas de matos e florestas para transformá-las em pastagens. Desta vez, os gulosos maxi-grileiros serviram-se em dose dupla. Sabendo-se no governo do país, decidiram "arrebentar a boca do balão", acelerando o assalto e a legalização das terras públicas. Em casos extremos, se organizaram, decretando um "Dia do Fogo", 10 e 11 de agosto, no Pará, ao longo da rodovia BR-163. As autoridades avisadas com antecedência não se moveram.
O dia se fez noite
Em 19 de agosto, no meio da tarde, o céu da cidade de São Paulo escureceu, por horas, devido à conjunção de frente fria com os detritos das queimadas da floresta Amazônica e de outras regiões do Brasil. O mesmo ocorreu em outras cidades país. Fotos satelitales confirmaram queimadas gerais sobretudo nos Estado do Amazonas e de Rondônia. Dias mais tarde, as cinzas alcançavam o Uruguai, no meridião da América do Sul.
Não dava para deixar de notar o enorme estrago geral. Os mais incrédulos choravam com a poluição agredindo os olhos. Os jornais do Brasil e do mundo registraram o massacre da Noite de São Bartolomeu da Amazônia. Os incêndios mantiveram-se e em alguns casos prosperaram nos dias seguintes. Sobretudo na Europa, mas também no Brasil, foram gerais os protestos quase expontâneos contra a devastação desvairada da grande floresta.
O aquecimento global é um bom negócio
A questão climática e ambiental é gravíssima e, em grande parte, irreversível. As nações imperialistas e o grande capital, olimpicamente despreocupados com ela, não podem combatê-la para além de declarações retóricas e medidas paliativas e inócuas. Os capitalistas não poluem por maldade. Eles se fixam nos balancetes trienais e necessitam de lucros anuais como dependemos do oxigênio. O "aquecimento global" já é visto como irreversível e fonte de novos negócios. Regiões antes congeladas terão seus terrenos explorados. Outras se desvalorizarão ou se valorizarão. A disputa pela Groenlândia é um bom exemplo. A sonhada passagem ártica do Norte, aproximando o Atlântico do Pacífico, será muito logo realidade.
Sobretudo segmentos sociais médios dos países desenvolvidos angustiam-se com razão como o aquecimento global. No medo consciente da degradação ambiental se funde o temor inconsciente da decadência das condições de existência social. Sobretudo as lideranças dos países desenvolvidos são obrigadas a levar em conta a opinião ambientalista. Para tal, promovem encontros, cartas de intenções, pactos, etc. sobre o tema, com iniciativas não raro inusitadas, como a "compra do direito de poluir"! ["Comércio do carbono".] Muito se faz para nada se fazer.
A floresta Amazônica como o "pulmão do mundo" tornou-se mito magno ambientalista. Fixação facilitada pela visualização hoje possível da destruição inexorável dessas florestas nas últimas três décadas, que avança ano a ano, com as grandes queimadas midiatizadas mundialmente. Durante o segundo governo Lula da Silva, em 2008, como parte das medidas anestesiantes, criou-se o "Fundo Amazônia", gerido pelo BNDES, para captar recursos que financiassem a fundo perdido projetos de prevenção ao desmatamento.
A Noruega e a Alemanha, primeiro e segundo doadores do Fundo, suspenderam as doações, protestando contra as mega-queimadas. O mais incisivo nas denuncias foi Macron, o presidente francês, que propôs levar à reunião do G7 a discussão do problema. A realidade supera sempre a imaginação. Enquanto os fatos repercutiam através do mundo, Bolsonaro sugeria que os milhares de focos de incêndios nos estados da Amazônia, Acre, Rondônia, Roraima, Maranhão etc. haviam sido lançados por ambientalistas, para prejudicá-lo e se vingarem do corte de recursos! A seguir, xingou as autoridades da Noruega e da Alemanha e sobretudo o presidente Macron, hiper ativo nas críticas.
Esqueçam o que eu disse
Bolsonaro chegou a propor que o governo federal não disporia de recursos para inibir as queimadas, que reconheceu timidamente poderem ser também obras de fazendeiros. Isolado no mundo e no país, sob o olhar carrancudo do agro-negócio outra vez preocupado com as retaliações mundiais devidas ao destempero verbal do presidente que ajudara a eleger, Bolsonaro chamou rede nacional e mandou simplesmente dizer que esquecessem tudo que dissera até então.
No dia 23, sábado, acompanhado por bater de panelas nas grandes cidades do Brasil, leu declaração comedida sobre as queimadas, responsabilizando os criadores e plantadores, prometendo rigor no seu combate. Prometeu igualmente chamar para apagá-las o exército, que entrava assim outra vez como salvador do Brasil das chamas, sem, nos fatos, qualquer condição de debelá-las. Quando Bolsonaro estava grogue, contra as cordas, o G 7 e sobretudo Macron entraram no rinque para suspender a luta e salvar o Mito do desastre.
No encerramento, no dia 26, o G 7 não propôs sanção ou declaração contra o governo de Bolsonaro e ofereceu-lhe 20 milhões de euros, uma ninharia, para o combate das chamas. Entremente, Macron, seguindo sua defesa do meio ambiente na casa do vizinho, avançara antes da reunião a proposta de uma eventual internacionalização da Amazônia, em um momento futuro, caso as queimadas continuassem, contra o "interesse de todo o planeta", já que a Amazônia seria um "bem mundial". Declaração puramente retórica para os ambientalistas sobretudo franceses e europeus.
O pronunciamento de viés indiscutivelmente imperialista permitiu que Bolsonaro retomasse a ofensiva em prol da defesa da "soberania nacional" na Amazônia. No dia 22, o general Villas Boas, golpista mor em 2016 e 2018, ex-ministro do Exército, dependurado em um novo cargo público apesar de seu estado crítico de saúde, saíra em apoio do "Capitão Nero", propondo iguais sandices. Falara também de "ameaças de emprego de poder militar" francês contra o Brasil, por parte de Macron, que pretenderia assim repetir a invasão da Guanabara, no século 16, do Maranhão, no século 17, ou a falhada "Guerra da Lagosta", de 1961 a 63!
A retórica nacionalista de Bolsonaro e Villa Boas foi também retomada em um viés popular por lideranças de esquerda ou que se reivindicam como tal que saíram gritando a "Amazônia é Brasileira". Poderia ter sido, mas, do povo brasileiro, como vimos, jamais foi. E se não mudarmos a orientação das coisas, vai ser ainda menos.
Ninguém quer conquistar o que já é seu
Descansem todos. Ninguém quer conquistar a Amazônia, ainda mais para mantê-la intata. Os grandes interesses das nações imperialistas estão longe da Amazônia. Eles se encontram no Pré-Sal, nas grandes privatizações e liberações empreendidas pelos primeiro e segundo governo golpistas. Deve-se a isso a preocupação do G7 em não colocar em dificuldades o governo Bolsonaro amigo, após as declarações ambientalistas para o público interno. Macron avançou o sinal pois luta desesperadamente para reconstruir seu prestígio interno e europeu, queimado até a raiz pelos "gilets jaunes".
Na Amazônia brasileira, o grande capital já obtém o que quer, sem necessidade de invasão territorial. Tem passe livre para embolsar as terras que cobiça. As farmacêuticas apropriam-se da bio-diversidade e produzem medicamentos vendidos a seguir a preço de ouro também no Brasil. As mineradoras internacionais seguem o arrasamento do meio ambiente, obedecendo a frouxa legislação ou sem sofrer punição, quando a desobedecem. A mineração clandestina não tem nada de clandestina. E a proposta programática de Bolsonaro, subscrita pelo vice-presidente e pelos generais vende-pátrias, é escancarar essas regiões aos interesses internacionais.
Entretanto, Bolsonaro serviu-se do destempero de Macron e da total ausência de posição coerente da chamada oposição para retomar seu programa eleitoral para a região. Propôs que suspenderia toda demarcação de terras indígenas e quilombolas, já que seriam política impulsionadas por ONG favoráveis à internacionalização da Amazônia, contrárias ao interesse da nação e da população regional. Afirmou que o índio teria mais terras que o agro-negócio, em grande prejuízo nacional. No mesmo sentido, anunciou a rediscussão das demarcações quanto à extensão e à autonomia. Imediatamente, foi instaurado no Senado comissão parlamentar de inquérito com principal foco a ação e o financiamento das ONGs.
Sem travas
As reservas indígenas, as terras quilombolas, os parques nacionais têm como objetivo estratégico a preservação das florestas e do meio ambiente, entregando enormes territórios para que populações nativas os utilizem [formalmente] com os métodos e práticas tradicionais, dos tempos pré-industriais. A demarcação dessas terras determina que, mesmo invadidas e exploradas, não podem ser "regularizadas", ou seja, apropriadas legalmente pelos maxi-grileiros, que assumem plenamente o papel de invasores, possíveis de serem expulsos e incriminados.
ONGs, antropólogos, sociólogos, etc. nacionais e estrangeiros defendem o direito de autonomia de gestão das terras demarcadas por indígenas e quilombolas, com o direito de fato à exploração das madeiras, arrendamento das terras, concessão de exploração dos subsolos, etc. O que tornaria populações minúsculas senhoras literalmente de imensos feudos, se não de verdadeiros países. Uma política que restringiria enormemente a autoridade do Estado sobre esses territórios e seus recursos, abrindo o melhor caminho para a ação das mineradoras internacionais, já que negociariam com pequenas comunidades, facilmente corruptíveis.
Projetos sobre a mineração na terras demarcadas estão sendo discutidos no parlamento sob a pressão das grandes mineradoras nacionais e internacionais. A instalação da nova ordem golpista em 2016 tende a acirrar sem limites uma devastação que já se instalou, nas últimas décadas, sem jamais conhecer efetivo controle. Agora se trata de organizar a internacionalização econômica de fato e sem trava. O pouco que já foi feito corre a ameaça de ser questionado e anulado. A Amazônia que jamais foi dos brasileiros, sofrerá agressão inusitada nos próximos anos, impulsionada pelos grandes interesses nacionais e sobretudo internacionais. Sem qualquer necessidade de invasão territorial. Não temos que combater desembarque dos exércitos franceses. Mas sim os nossos políticos e generais vende-pátrias, já instalados no poder e no território. [Comentário 29 de agosto. Duplo Expresso]
Mário Maestri, 71, historiador, é autor de Revolução e contra: revolução no Brasil. 1530-2018. https://clubedeautores.com.br/livro/revolucao-e-contra-revolucao-no-brasil#.XW2RdS3Oogt
Foto: Por Neil Palmer/CIAT - Flickr, CC BY-SA 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=28394053
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