Adelto Gonçalves (*)
I
Bastante cultuada no passado, pelo menos até o final do século XIX, a arte dos ex-libris hoje, na época do mundo digital, parece a caminho da extinção ou, quando muito, um estranho hobby de alguns raros amantes do livro, quase sempre pessoas de idade avançada. Para quem não sabe, diga-se que o ex-libris é aquela etiqueta, colada geralmente nas primeiras folhas de um livro, que traz o nome ou as iniciais do seu proprietário.
Além de servir como um discreto lembrete àqueles que acabam por se esquecer de devolver obra emprestada o que, nestes tempos de moral duvidosa, já não há de ser servir para muita coisa , o ex-libris tem também o propósito de sobreviver ao tempo de seu dono porque quase todas as bibliotecas privadas acabam vendidas a sebos ou alfarrábios depois da morte de seus organizadores. No fundo, é também a forma que o bibliófilo tem para mostrar o orgulho que sente de sua biblioteca e das raridades que preserva.
Ainda cultuado na primeira metade do século XX, o ex-libris acabou por se generalizar, o que reduziu o seu valor artístico. Essa riqueza estética e histórica dos ex-libris é o mote do sexto volume da Coleção Arte do Livro, recém-lançado pela Ateliê Editorial, de Cotia, pequena cidade de Grande São Paulo, com organização de Plínio Martins Filho, professor de Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Editora da Universidade de São Paulo (Edusp). O livro, na definição do seu organizador, propõe-se como divulgação e revitalização desta arte em miniatura, a um só tempo instrutiva e de entretenimento.
Ex-Libris é composto de exemplares da coleção de José Luís Garaldi, dono da Livraria Sereia, de São Paulo, praticamente todos nacionais e muitos deles concebidos por artistas de renome no gênero, como o francês Agry, gravador de ex-libris para José Maria da Silva Paranhos, o barão de Rio Branco (1845-1912), diplomata, ministro de Estado, geógrafo e historiador, famoso por ter sido o consolidador das fronteiras brasileiras, cuja tentativa de organizar exemplos de ex-libris lhe confere a láurea de pioneiro desse culto de entretenimento.
É de assinalar que Agry também fez ex-libris para João Fernando de Almeida Prado, mais conhecido como Yan de Almeida Prado (1898-1987), historiador e participante (e, depois, ferrenho crítico) da Semana da Arte Moderna de 1922. Ao seu lado, podem ser citados Stern, autor de modelos bem pessoais, como o do médico sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917), Oswaldo Silva, xilogravurista, Alberto Lima, um dos mais destacados na área, e ainda Correia Dias, criador de modelos notáveis, como o feito para o encadernador carioca Leopoldo Berger, além de outros conhecedores da arte da água-forte e gravura.
Martins Filho agrupou os ex-libris em função da temática: marcas, etiquetas e monogramas, heráldicos, paisagísticos, livrescos, faunísticos, feminino, humorísticos, infantis e profissionais. Cada um deles está devidamente contextualizado por meio de dados biográficos e apontamentos dos artistas.
II
Dorothée de Bruchard, pesquisadora da história e arte do livro, autora do texto introdutório, diz que a escolha dos ex-libris seguiram os seguintes critérios: os mais antigos (do período imperial, onde não aparece a palavra ex-libris); os que pertenceram a personalidades brasileiras, sobretudo, políticas e literárias do século XX; e, finalmente, alguns que se sobressaem por alguma curiosidade do dístico ou do desenho.
Em seu texto, Dorothée explica a origem latina de ex libris, que significa dentre os livros de, da biblioteca de. E acrescenta: A expressão às vezes também se usava ex dono ou ex biblioteca , inscrita no corpo da obra seguida do nome do proprietário, indicava a sua proveniência. Com o tempo, foi se universalizando e sendo incorporada a diversas línguas, já com o hífen, substantivada e denominando a própria etiqueta mesmo que os ingleses também a chamem de bookplate, ou alemães, buchzeichen ou os holandeses, boekmerken.
Dorothée lembra ainda que a origem exata do ex libris é difícil de precisar, tendo sido registrada desde a Antiguidade, embora o seu emprego tal como o conhecemos tenha se dado durante o Renascimento, com a difusão do livro tipográfico, no rastro da invenção da imprensa pelo alemão Johannes Gutenberg (c.1397-1468). Da Alemanha é que provém, por sinal, um dos ex-libris móveis mais antigos que conhecemos, em livros doados pelo monge Hildebrand Brandenburg, de Biberach, ao monastério cartusiano de Buxheim, por volta de 1480, diz.
Ao reconstituir uma breve história do ex-libris, a pesquisadora observa que, com a Revolução Francesa, a arte adquiriu maior vigor quando as bibliotecas começaram a trocar de dono, passando das mãos da aristocracia para as da burguesia. No Brasil, só ao final do século XVIII é que ele começa a disseminar-se. O primeiro de que se tem notícia teria pertencido a um colecionador de Sabará, Minas Gerais, possivelmente comerciante, pois faz alusão às artes, à indústria e ao comércio.
Segundo a historiadora, o ex-libris começou a desaparecer entre nós por volta de 1960, embora ainda hoje conte com uns poucos artistas e apreciadores. Sua preservação, porém, vem se dando por instituições públicas que têm adquirido coleções com o objetivo de preservá-las. Entre essas instituições, estão a Biblioteca Central da Universidade de Brasília e a Biblioteca Pública do Paraná.
III
Nesse sentido, o livro preparado pelo professor Plínio Martins Filho traz uma grande contribuição, ao agrupar ex-libris que, verdadeiras obras de arte, de outro modo, só estariam à mão do leitor freqüentador de bibliotecas. E ainda assim espalhados por obras raras e de difícil localização. Antes disso, aqueles que mais colaboraram para o desenvolvimento do ex libris no Brasil, que teve o seu apogeu no Rio de Janeiro no período de 1940 a 1958, haviam sido Manuel Esteves, autor do único livro até então sobre o assunto no Brasil, O Ex Libris (Rio de Janeiro, Editora Gráfica Laemmert, 1ª ed.1954; 2ª ed.1956), e Alberto Lima, que desenhou mais de 300 ex libris para colecionadores.
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EX-LIBRIS: COLEÇÃO LIVRARIA SEREIA DE JOSÉ LUÍS GARALDI, de Plínio Martins Filho (organização). Cotia-SP: Ateliê Editorial, 192 págs., 2008, R$ 67,00.
E- mail: [email protected] Site: www.atelie.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa: Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage o Perfil Perdido (Lisboa: Editorial Caminho, 2003). E-mail: [email protected]
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