Gustavo Herren
A chamada História oficial ou liberal, aquela que a grande maioria das crianças aprende nas escolas e que predomina em muitos institutos, universidades, e nos meios de comunicação de massa da Argentina, não é a verdade única, nem tampouco neutra como pretende, mas, de fato, está vinculada a formas do poder local e mundial. Seu principal impulsor foi Bartolomé Mitre, que depois da derrota dos povos do interior, na batalha de Pavón (1861), exerceu por décadas a liderança das classes dominantes do país.
Essa historiografia é ensinada como uma descrição de uma determinada sucessão cronológica de eventos do poder formal, mostrando efeitos e ocultando causas. Alguns dos pontos que a caracterizam são:
Oculta sistematicamente os interesses econômicos e as ações dos imperialismos, e apresenta muitos atores locais que os beneficiaram como patriotas.
Atenua distorções, demoniza (sataniza) ou desvaloriza a ação daqueles homens que defenderam os interesses nacionais econômicos, culturais e do povo, e omite a atuação deste como um todo.
Omite ou restringe a compreensão dos processos econômicos subjacentes, isto é, a relevância da interação História-Economia no plano interior e exterior.
Talvez, o elogio ao marechal paraguaio, Francisco Solano López que a presidenta da Argentina, Cristina Fernández Kirchner, fez ao reunir-se com o primeiro mandatário do Paraguai, Duarte Frutos, referindo-se ao que ocorreu na América do Sul com seu país, há mais de um século, e que envolveu a ação encoberta do Império da época possa deixar mais algumas lições. Para a História argentina liberal e mitrista, a guerra com o Paraguai não foi um conflito de setores com interesses distintos, e os López foram ditadores ferozes que tentaram expandir-se e submeter seus vizinhos imediatos a um sangrento conflito, praticamente sem a intervenção das potências européias. Como acontece hoje, anos antes da guerra, a imprensa, a serviço das oligarquias e do Império de plantão, foi preparando, pouco a pouco, o campo psicológico e demonizando o marechal López como o Átila da América... que deve ser morto como um réptil.
Porém, outras linhas historiográficas manifestam algo muito diferente. Consideram que, nas proximidades de 1860, os governantes, Carlos Antônio López, e, em seguida, seu filho, Francisco Solano, desenvolveram no Paraguai o primeiro processo de industrialização de toda a América Latina. Surgiram fundições de ferro, estradas-de-ferro, uma importante frota mercante, linha de telégrafo, fábricas de tecido, indústrias manufatureiras e de construção, fábricas de pólvora e de armas. Nesses anos, o Paraguai era o país mais desenvolvido da América do Sul.
A propriedade da terra era estatal (campos da pátria), quase não havia áreas privadas, num sistema de organização comunitário com reminiscências socialistas. Praticamente, não havia analfabetismo, e crescia uma base cultural própria.
O governo paraguaio implementou medidas protecionistas, para preservar seu desenvolvimento industrial autônomo e assumir o controle de suas principais produções, que exportava, como a de erva-mate, tabaco e madeira. Emitia sua própria moeda e mantinha o controle sobre o sistema monetário. Tinha forte superávit em sua balança comercial e não tinha dívida externa.
O Paraguai conquistou sua independência econômica, ao sair do Capitalismo Liberal que, com seu Livre Mercado e abertura das economias, estava sendo imposto pela Inglaterra e outras potências européias a toda a região, consoante a Divisão Internacional do Trabalho por elas ditada no contexto da Revolução Industrial (promovido popularmente sob as palavras-de-ordem Modernização, Progresso e Civilização).
Contrariamente, na Argentina, o governo adotou o modelo liberal, ao se consolidar o Estado nacional na década de 1860, com a pacificação do interior do país feita por Mitre (a sangue e fogo) e que endividou a nação mais do que com a guerra ao Paraguai. Buscava-se conseguir um governo central único, aceito e acolhido por todas as províncias. Habilitava o país para o endividamento externo, assegurava seus pagamentos (doutrina Castiereagh) e garantia o projeto econômico dos setores dominantes.
Assim, privatizou-se a propriedade da terra, e sua economia foi transformada numa economia primária exportadora, com endividamento externo, e com abertura da importação de produtos manufaturados com valor agregado, inserindo o país na Divisão Internacional do Trabalho configurada pelas potências.
Face às reiteradas intervenções diretas das potências européias, para imporem seus interesses à América Latina, os países da região tentaram formar uma União Panamericana, que, contudo, fracassou, devido à posição de países como a Argentina, cujo presidente, Mitre, rechaçou reiteradamente a adesão.
Antes da guerra, o governo de Mitre pediu um importante empréstimo a Londres, num total de 2,5 milhões de libras, gerido por Norberto de la Riestra seu ex-ministro da Fazenda e diretor do banco britânico, London Buenos Ayres & River Plate Bank Limited e pelo seu ministro da Fazenda, Lucas González, que tinha em seu poder a financeira, Murrieta e Cia., de Londres, (e que em 1880 formalizou o acordo que entregou ao estrangeiro terras públicas de Santa Fé como pagamento da dívida externa). Durante três anos de guerra, o governo continuou endividando-se com Londres para cobrir os gastos bélicos.
A Inglaterra (e outras potências européias), depois de terem desenvolvido suas indústrias sob o mais feroz protecionismo durante dois séculos, necessitavam, em toda a América do Sul, de Livre Mercado e da abertura ao capital e a investimentos estrangeiros. A indústria têxtil inglesa em particular, a de algodão foi prejudicada pela Guerra de Secessão (1861-1865), que unificou os Estados Unidos e implantou o Protecionismo. Ao ser derrotado, o Sul, que se manejava com o Livre Comércio, deixou de exportar algodão para a Inglaterra, o que levou esta potência a preocupar-se com a substituição da superfície de cultivo perdida na América do Norte, ao mesmo tempo em que se preocupava com a emergência de um país protecionista e industrializado na América do Sul, aspirando obter uma razoável autonomia na tomada de decisões. Concomitantemente, para o plano econômico da oligarquia de Buenos Aires (porto), não bastava pacificar o interior, mas também os povos da Banda Oriental (Uruguai), e terminar com a Ameaça dos López no Paraguai.
Dessa maneira, quando terminou a Guerra de Secessão nos EUA (1865), começou a Guerra do Paraguai. Três países, cujos governos os haviam inserido no modelo europeu do Capitalismo Liberal, com a Inglaterra por trás, entraram em guerra contra o Paraguai [Guerra da Tríplice Aliança (1865-1870)]. Os bancos de Londres, Baring Brothers e Rothschild, financiaram a Argentina, o Brasil e o Uruguai, com empréstimos que aprofundaram, por décadas, sua dependência econômica.
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