Dos portugueses que passaram por São Petersburgo, foi a cantora de ópera Luísa Todi quem deixou maior rasto deixou na história da cultura da cidade. No auge da sua carreira, o rouxinol de Setúbal lançou-se na aventura de actuar na Rússia, país que, nos finais do século XVIII, era considerado "distante" e "bárbaro" pelos europeus do Ocidente.
A sua voz permitiu-lhe não só cativar o coração de muitos russos como enfrentar e defender os seus interesses face a Catarina, a Grande, senhora absoluta e toda poderosa da Rússia. A correspondência, a que tivemos acesso, de Catarina II com Frederich Grimm, conhecido crítico literário e enciclopedista francês, permite-nos acompanhar as peripécias de Luísa Todi na distante e enigmática Rússia, desde a sua chegada em 27 de Maio de 1784 até à sua partida em finais de 1786.
Grimm escreveu que a vontade da cantora de actuar perante a imperatriz russa era tão grande que ela teria decidido partir para São Petersburgo sem qualquer tipo de contrato. Ao anunciar o envio da bagagem de Luísa Todi para a Rússia, o crítico francês escreve: "Acreditei poder chamar a mim esse serviço a uma cantora tão célebre, que o desejo de contemplar a glória de Catartina conduz a São Petersburgo, e que recusou todas as ofertas que lhe foram feitas aqui para ficar, a fim de seguir a voz do senhor de Bibikov [director dos teatros russos], que a convidou para ir, prometendo que ela seria perfeitamente bem tratada, mas sem ter assinado um contrato com ela, sem que ele lhe tivesse mesmo concedido dinheiro para a viagem".
A carta de recomendação de Grimm não podia ser mais elogiosa. Ele escreveu a Catarina II: "A senhora Todi obteve êxitos estrondosos em França, Inglaterra, Alemanha, Itália. Ela é portuguesa,... possui, além de um raro talento para a música, que Vossa Majestade ama com paixão, as qualidades de uma honestidade e mulher amável, feita para viver em boa companhia".
A czarina russa decide convidar a cantora portuguesa em Agosto de 1873. Então, ela escreve a Grimm: "O senhor de Bibikov perdeu a direcção dos teatros, à frente do qual está o senhor Olsoufief... Eu recomendar-lhe-ei a Senhora Todi".
Esta tarda a chegar e Catarina II escreve no mês seguinte: "Enquanto a Senhora Todi se encontra doente em Potsdam, pode-se desesperar de a ver". Em Abril de 1784, constata: "a Senhora Todi ainda está para vir" e, a 10 de Maio, volta a escrever a Grimm: "que eu saiba, a Senhora Todi ainda não chegou".
Luísa Todi chega a São Petersburgo a 27 de Maio de 1784 e actua perante Catarina II no dia 30. Alexandre Lanskoi, moço de câmara da czarina russa, escreve a Frederich Grimm: "a nossa graciosa Soberana ficou tão satisfeita com ela que ofereceu à dita Todi um soberbo par de braceletes guarnecidas com brilhantes".
A cantora portuguesa responde à "generosidade imperial" escrevendo o libreto da opereta "Pollinia", que dedica a Catarina II.
Mas os atritos entre Luísa Todi e a imperatriz não tardaram a aparecer. A razão foi o dinheiro. A 22 de Abril de 1785, Catarina escreve ao enciclopedista francês: "a senhora Todi só receberá a remuneração depois de regressar de Moscovo, onde ela ganhou muito dinheiro, que se diz que o senhor seu marido perdeu no jogo: assim, o que traz a flauta leva o tambor".
Em Agosto do mesmo ano, a imperatriz russa retrata assim a Grimm as suas relações com a cantora lusa: "A Senhora Todi encontra-se aqui, onde se passeia tanto quanto pode com o seu querido esposo; muito frequentemente, encontramo-nos frente a frente, sempre sem nos tocar. Eu digo-lhe: "Bom dia ou boa noite, senhora Todi, como está?", e ela beija-me a mão e eu a sua face; os nossos cães cheiram-se; ela pega o seu marido pelo braço, eu chamo os meus cães e cada uma continua o seu caminho".
A czarina russa só esquece os atritos com Luísa Todi quando a ouve cantar. A 24 de Setembro de 1786 escreve: "Castor e Pollux é um espectáculo soberbo; a Todi e Marcezini [cantor italiano] encantaram ao fazer desmaiar os amadores e os conhecedores; para os fazedores de comédia, uma grande ópera é um pouco dura para digestão".
Em 23 de Abril de 1787, Luísa Todi dá o seu último espectáculo na Rússia, em Moscovo, desempenhando o papel principal na opereta Pollinia, cujo libretto ela própria escrevera (quanto à música, persiste a dúvida: será do italiano Saccini ou do marido da cantora portuguesa?)
A ruptura entre Luísa Todi e Catarina II deu-se quando a cantora começou a exigir somas exageradas para permanecer na Rússia, pois tanto ela como o marido não olhavam a despesas.
Em Janeiro de 1787, a czarina russa queixava-se a Grimm: "o director [dos teatros] faz muito bem em não chamar a si mais despesas, porque eles estão endividados em oitenta mil rublos, que eu não pagarei nem pelo director, nem pela direcção, e são também inadmissíveis as suas condições de serem pagas pelo público sem querer aparecer perante ele".
Existe outra versão desta ruptura, quase uma lenda sob a forma de diálogo. Luísa Todi terá pedido uma remuneração tão grande a Catarina II pelas suas actuações que ela exclamou: "Mas eu nem sequer aos meus marechais pago tanto!". E a portuguesa terá respondido: "então os marechais que cantem para Vossa Alteza!"
O certo é que Luísa Todi partiu da Rússia sem se despedir de Catarina II. Esta escreve a Grimm: "diz-se em Petersburgo que a senhora Todi foi para Berlim... Em boa hora..."
No ano seguinte, porém, já a imperatriz tinha saudades. Em Abril de 1788, depois de ter assistido a uma ópera cómica, desabafou numa missiva a Grimm: "havia cantores detestáveis; os bons partiram todos. A senhora Todi encontra-se em Berlim".
José Milhazes Blog Da Russia
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