Adelto Gonçalves (*)
Em Portugal tem havido, por séculos, um silêncio temeroso e cúmplice em relação a Galiza. E tudo isso, compreende-se, foi ditado pelo receio que Portugal independente sempre sentiu em relação às intenções (e ao paralisante poder) de Castela. Como se sabe, em princípios do século XVI, Castela liquidou numa última batalha, na região do Lugo, as derradeiras resistências galegas.
Por muitos anos, chefes políticos galegos derrotados optaram pelo exílio em Portugal, inconformados com a sujeição de sua pátria aos reinos de Castela e Aragão. Um desses exilados foi avô paterno de um poeta que, hoje, tem o seu nome ligado indissociavelmente à Língua Portuguesa: Luís Vaz de Camões (1524-1525?/1580). Se as circunstâncias políticas fossem outras, com certeza, Camões também seria reverenciado como o maior poeta da língua galega, ao lado de Rosalía de Castro (1837-1885).
Ao contrário de outras línguas que desapareceram, a galaico-portuguesa na Galiza dobrou-se, mas não morreu, embora massacrada pelo dominador castelhano desde o século XVI e, especialmente, durante a ditadura do galego traidor Francisco Franco, que não só proibiu que fosse ensinada nas escolas como falada nas ruas, nos lares e até mesmo nas homílias nas igrejas. Nada disso deu resultado. Porque o galego, na democracia implantada hoje na Espanha em que algumas regiões continuam a mandar e outras a obedecer, ressurge cada vez mais forte.
Um exemplo marcante disso é o livro Periferias, do galego Carlos Quiroga, que, publicado em Santiago de Compostela em 1999, sai agora em edição brasileira, antes mesmo de conhecido em Portugal. Periferias é um romance assim mesmo, entre aspas que está dividido em três partes independentes, mas que se relacionam entre si, na medida em que estão imersas no mundo galego e lusófono. Como observa na apresentação que fez para este livro o escritor Luiz Ruffato, autor de Mamma, son tanto felice e Eles eram muitos cavalos, constitui uma viagem pelos subúrbios da história humana, que é também um passeio pelas reentrâncias da alma.
A primeira parte de Periferias é um relato datado de 1499 de um negro levado das terras de Manicongo para Lisboa para ser exibido na corte, ditadas a um criador chamado Baltazar. Num texto eivado de expressões quinhentistas, o narrador narra as aventuras dos portugueses na África e suas conseqüências na vida do escravo anônimo.
Na segunda parte, 500 anos mais tarde, um estudante galego percorre a rota de Santiago de Compostela a Lisboa em cima de uma motocicleta em busca de um ideal indefinido. A terceira parte avança até 2099 e é constituída pelo relato da bisneta deste estudante que, como ficamos sabendo, é o autor do primeiro relato. Brasileira, mas nascida nos Estados Unidos, essa estudante sai em busca da língua de seus ancestrais, que estiveram também na África. E essa língua-mãe é a galaico-portuguesa.
As três partes de Periferias narram três viagens diferentes em tempos diversos que têm como ponto de chegada Lisboa, mas que partem de locais bem distintos: do Congo, da Galiza e de uma América do Norte imaginada ao final do século XXI. Os três relatos podem ser lidos isoladamente, mas, unidos, complementam-se no sentido de que a viagem metafórica que contam é a da língua nascida nas terras da Galiza cuja sobrevivência hoje depende muito mais do Brasil com seus 180 milhões de habitantes.
Carlos Quiroga, 45 anos, nascido em Vilazante, é professor de Literaturas Lusófonas na Universidade de Santiago. Além de Periferias, que ganhou sua primeira edição pela Laiovento Edicións, de Santiago de Compostela, em 1999, e teve segunda edição (edição de livro virtual) pela RBL Editora, do Rio de Janeiro, em 2000, já publicou G.O.N.G (poesia e fotografia, 1999), A Espera Crepuscular (fotografia, poesia e narrativa, 2002), O Castelo da Lagoa de Antela (teatro, 2004) e O Regresso a Arder (fotografia, poesia, narrativa, 2005).
Com Periferias, obteve o Prêmio Carvalho Calero, distinção que acaba de ganhar novamente com a narrativa Inxalá, a ser editada em 2006. Fundador de várias revistas, atualmente é diretor e criador da Agália Revista de Ciências Sociais e Humanidades, da Associaçom Galega de Língua. É autor de traduções, ensaios e trabalhos de investigação, tendo participado de vários congressos e seminários acadêmicos.
Um desses trabalhos, Lexicometria e Vocabulário, está incluído em Pessoa Ortónimo e Heterônimo, de 1995, prêmio extraordinário de doutoramento. Foi bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian, da Universitá Italiana per Stranieri e do antigo Icalp, atual Instituto Camões.
Colabora com freqüência na imprensa galega e portuguesa, escrevendo sobre literatura e lusofonia. Como em Periferias, em seus textos para os jornais, procura aproximar a realidade cultural galega de Portugal, contestando a absorção de espanholismos pela língua galega em razão dos anos em que o seu idioma esteve subjugado por Castela.
Continua a defender a liberdade e o final da censura promovida por aqueles setores comprometidos com os interesses político-econômicos de Madri, apesar das últimas mudanças políticas que permitiram ao galego pelo menos recuperar suaauto-estima.
Essa liberdade, obviamente, só será completa quando a Galiza puder se filiar como nação independente à Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), integrando-se ao mundo lusófono de mais de 200 milhões de pessoas, já que os galegos continuam a ser portugueses que ficaram além do Minho como os portugueses são galegos que ficaram do lado de cá.
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PERIFERIAS, de Carlos Quiroga. Vinhedo-SP: Editora Horizonte, 111 págs., 2006. E-mail: [email protected]
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]
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