As razões de Putin

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Eduardo Vasco *


No dia 24 de fevereiro completaram-se dois anos do início da intervenção da Rússia na guerra da Ucrânia. Todos os grandes meios de comunicação ocidentais – monopolizados por bilionários que usam a imprensa para manter a sua dominação – chamam a Operação Militar Especial, nome oficial da campanha russa, de “guerra”. Com isso, propagam a ideia de que foi a Rússia que começou a guerra.


Uma mentira que encobre (propositalmente) a culpa, não apenas do governo que hoje é encabeçado por Vladimir Zelensky, como, principalmente, das grandes potências ocidentais. A propaganda disseminada por esse gigantesco monopólio da imprensa tenta fazer uma lavagem cerebral nos cidadãos comuns, acusando a Rússia malvada de invadir a Ucrânia indefesa em uma criminosa guerra de conquista.


A verdade é que a guerra começou não há dois anos, mas há dez anos! E quem a iniciou não foi a Rússia, mas a própria Ucrânia. A Rússia sequer esteve envolvida diretamente no conflito. Quem desempenhou um papel fundamental para a eclosão dessa guerra foram precisamente os que hoje acusam a Rússia.


Vladimir Putin, o presidente russo, na sua entrevista com o repórter americano Tucker Carlson, recapitulou os dramáticos acontecimentos que levaram à guerra. Analisemos a história das relações do chamado “Ocidente” com a Rússia nos últimos 30 anos e veremos que, na verdade, a Rússia foi obrigada a se defender de uma guerra que já estava em curso contra ela.


O desmantelamento da União Soviética enfraqueceu a Rússia como jamais havia ocorrido na história. Praticamente de um dia para o outro os territórios periféricos que, durante séculos, haviam pertencido a ela, se tornaram independentes. O grande objetivo das potências imperialistas desde o início do século XX havia sido alcançado. A onda de separações incentivou ainda duas guerras na Chechênia nos anos 90 e 2000, ao mesmo tempo em que a política de choque neoliberal devastava a sua economia.


Além de ter perdido grande parte do território da antiga União Soviética, a Rússia viu esses novos países serem completamente dominados pelo imperialismo. Em 2004, uma “revolução colorida”, conhecida como Revolução Laranja, impediu a eleição de um presidente neutro na Ucrânia para garantir um fantoche dos Estados Unidos – Viktor Yushchenko – no poder. Em 2008, foi a vez da Geórgia ser capturada pelas nações ocidentais, o que fez a Rússia esboçar sua primeira resposta a essa asfixia que procuravam lhe impor, no que ficou conhecido como a Guerra da Ossétia.


Todos os antigos aliados da Rússia estavam sendo varridos do mapa. Os bombardeios da OTAN na Líbia, com a execução de Muammar Kadafi, em 2011, acenderam de uma vez por todas o sinal de alerta para Moscou. Quando os Estados Unidos, a Inglaterra e a França tentaram fazer o mesmo na Síria, logo em seguida, Putin aprendeu a lição líbia e vetou no Conselho de Segurança da ONU uma operação idêntica para derrubar o regime de Bashar al-Assad, além de apoiá-lo militarmente.


A gota d’água para os russos foi o segundo golpe na Ucrânia, iniciado no final de 2013. Viktor Yanukovich, que havia sido impedido de se eleger em 2004, estava no poder. Conduzia uma política amistosa com Moscou, embora fosse vacilante e negociasse com a União Europeia. Porém, no final das contas, ele não aderiu à última, preferindo as maiores vantagens que seu país teria ao manter relações privilegiadas com a nação irmã. A UE e os EUA não aceitaram essa modesta demonstração de soberania da Ucrânia e utilizaram, assim como em 2004, ONGs pagas por George Soros e pelo governo dos EUA para executar uma nova “revolução colorida” em Kiev (Moniz Bandeira, A Desordem Mundial, p. 275). Desta vez, contudo, grupos declaradamente neonazistas foram a tropa de choque das manifestações na Praça Maidan.


O resultado do golpe de Estado, consolidado no início de 2014, não foi somente a queda de um governo que dialogava com a Rússia para substituí-lo por um alinhado com o Ocidente. Foi mais que isso: subiu ao poder um regime apoiado nas mesmas organizações fascistas que lideraram o Maidan. O fascismo ucraniano sempre foi acentuadamente antirrusso e a sua influência no novo regime levou a uma perseguição a todos os ucranianos de origem russa – que representam a maioria da população em cerca de 40% do território do país. As regiões de Donetsk, Lugansk e Crimeia, onde 75% dos eleitores haviam elegido Yanukovich em 2010 e eram de origem russa, foram as mais perseguidas e se rebelaram. A Crimeia fez um referendo onde a esmagadora maioria da população escolheu se reincorporar à Rússia (à qual ela sempre pertencera), resultando em uma anexação realizada logo em seguida pela Federação Russa.


Putin, contudo, não fez o mesmo em Donetsk e Lugansk. Os povos dessas duas regiões declararam independência da Ucrânia e formaram duas autodenominadas repúblicas populares. Em armas, eles resistiram à invasão militar ordenada pelas novas autoridades de Kiev, que teve como ponta de lança milícias paramilitares fascistas como os famigerados batalhões Azov, Aidar e Setor de Direita.


Esse foi o verdadeiro início da guerra atual na Ucrânia, que, até o começo da intervenção russa, havia custado a vida de mais de 14 mil pessoas – a maioria delas morta pelas forças invasoras ucranianas.


Ao mesmo tempo em que tudo isso ocorria, a Rússia via uma aproximação sucessiva da única verdadeira aliança militar do pós-Guerra Fria, a OTAN. Ao invés de deixar de existir, já que a desculpa oficial para sua existência – a “ameaça” soviética – havia desaparecido, a Organização do Tratado do Atlântico Norte se expandiu para a Europa Oriental desde meados da década de 1990, traindo as promessas feitas à Rússia.


Essa expansão significa a integração de novos países à aliança – incluindo antigos membros do Pacto de Varsóvia, a aliança liderada pelos soviéticos, e as próprias ex-repúblicas soviéticas do Báltico. E essa integração significa que esses países passaram a instalar armas pesadas em seu território e a sediar exercícios militares com a participação dos exércitos dos EUA, da Inglaterra, da França e da Alemanha. A parceria com a Ucrânia a partir do golpe de 2014 deixou claro para Putin que ela seria utilizada para um ataque contra a Rússia – a grande meta da OTAN.


Durante os oito anos que se seguiram, a Rússia se preparou econômica e militarmente para esse ataque. Se adaptou às sanções econômicas impostas por EUA e Europa devido à reincorporação da Crimeia e acelerou o desenvolvimento e a modernização de seu poderio bélico. A população russa, contudo, não demonstrava tanta frieza quanto o seu governo. Ela via seus irmãos – a maioria dos russos têm algum familiar ou amigo que vive na região separatista ucraniana do Donbass – serem mortos pelos usurpadores do poder em Kiev, que transformaram a Ucrânia em uma ditadura militar protofascista. Os clamores para que o exército russo fizesse alguma coisa aumentavam.


Finalmente a Rússia interveio, logo após reconhecer oficialmente a independência de Donetsk e Lugansk (aprovada por voto popular ainda em 2014) e estabelecer um pacto com seus governos em que a Rússia se comprometia a proteger os novos parceiros em caso de agressão externa. Ora, essa agressão já vinha ocorrendo há oito anos.


Antes da entrada da Rússia na guerra, as forças ucranianas já haviam ocupado mais da metade do território de Lugansk e quase todo o território de Donetsk. A situação era dramática para aqueles povos. Se fossem conquistados por Kiev, perderiam todos os seus direitos, como a filiação a partidos políticos de esquerda e pró-russos e o direito de falar seu idioma original (como havia ocorrido no restante da Ucrânia).


Para os povos do Donbass, a chegada das tropas russas foi uma salvação semelhante à realizada pelo Exército Vermelho na Segunda Guerra Mundial contra a invasão nazista. Os militares russos foram considerados libertadores pela maioria dos civis com quem conversei.


Hoje, dois anos após o início da intervenção russa, a relação de forças foi drasticamente modificada. A Rússia desequilibrou o conflito, mesmo com todo o apoio militar e econômico da OTAN a Kiev. Graças à intervenção russa, a República Popular de Lugansk foi totalmente libertada da agressão de Kiev em agosto de 2022. Em setembro, Lugansk e as parcelas de Donetsk, Kherson e Zaporizhia (outras duas regiões ucranianas de maioria russa com movimentos separatistas) realizaram referendos onde a maioria votou pela integração à Rússia – voltando ao seu território original, ao qual haviam pertencido por séculos.


Embora desde então a guerra quase não tenha saído do lugar, todos os analistas sérios que acompanham o conflito concordam que a Rússia leva vantagem sobre Kiev. A recente libertação de Avdeyevka foi uma vitória importante para os russos, que possibilita uma maior segurança para a cidade de Donetsk – a qual continua sofrendo bombardeios diários da Ucrânia, principalmente a civis, causando mortes constantes.


Não há perspectivas de que essa guerra, que entrou em seu décimo ano, termine tão cedo. Mas o principal objetivo da Rússia está sendo alcançado aos poucos: primeiro, a proteção do Donbass, em seguida a paulatina dissolução das organizações neonazistas e a desmilitarização da Ucrânia, na prática expulsando a presença militar imperialista.


Apesar de, aparentemente, estar longe de seu fim, é notório que a grande vitoriosa já é a Rússia e a grande derrotada não é nem mesmo a Ucrânia – ou melhor, o regime presidido por Vladimir Zelensky. Mas sim as próprias forças imperialistas que tanto fizeram para esmagar a Rússia no último século, particularmente nos últimos 30 anos. O mundo não é mais o mesmo nos últimos dois anos. Os países do chamado “Sul Global” vêm se unindo contra a dominação imperialista a partir desse duro golpe que esta sofreu com a ação russa. Rússia e China, essa aliança fantástica, aumentam sua influência a cada dia. 


A intervenção russa na Ucrânia para se defender da OTAN evidenciou aos povos do mundo todo que é possível lutar e vencer as poderosas forças opressoras das nações pobres. Os movimentos populares do Oriente Médio, encabeçados pela Resistência Palestina, pelo Hezbollah e pelos houthis, entenderam isso perfeitamente. Mais pessoas entenderão e agirão para quebrar os grilhões que lhes acorrentam.


* Eduardo Vasco é jornalista, trabalhou como enviado especial no início da intervenção russa na guerra da Ucrânia e escreveu o livro "O povo esquecido: uma história de genocídio e resistência no Donbass"

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