Parece que cada vez que chega ao fim um capítulo na guerra contra a Síria, novo fator vem à tona. Como aconteceu antes na guerra civil 1975-1989 no Líbano, e que começou com um confronto entre a Organização de Libertação da Palestina, OLP, e a milícia falangista libanesa de direita, e acabou com o Líbano invadido por Israel, a guerra contra a Síria é hoje guerra completamente diferente da que começou há sete anos. Ghassan Kadi, The Vineyard of the Saker
Com outros que vieram e já foram ou tiveram alterado o papel que lhe cabia na guerra, o único ator que continua aqui e não muda é, claro, o Exército Árabe Sírio, combatendo sempre pela integridade e a soberania da Síria. Nem se pode dizer o mesmo dos aliados, porque também os aliados do EAS mudaram.
Há muita especulação quanto a eventos recentes, muita guerra e propaganda para gerar medo, mas se se dissecam todos os elementos das potências que combatem hoje na Síria e se os analisamos, vemos claramente e sem dificuldade o que está acontecendo e quem está fazendo o que.
Antes de tentar compreender quem está fazendo o que e por que, comecemos por listar os principais players em solo e por trás das cortinas, desde o início e hoje. Eis uma lista curta:
Inobstante o papel continuado e a presença inevitável da própria Síria e das forças nacionais populares sírias aliadas na guerra contra o próprio país, é preciso reconhecer que Arábia Saudita e Qatar já desempenharam seu papel e saíram como derrotados. Com vistas à documentação para a história, é preciso deixar isso anotado, mesmo que, hoje, AS e Qatar não tenham qualquer influência ou poder.
Os Curdos têm papel que não pode ser discutido sem registrar o que fizeram entre 2011 e 2015-16. Combatentes curdos, separatistas ou outros, defenderam a integridade da fronteira norte da Síria no início, já em 2011, quando o Exército Árabe Sírio não tinha aliados em solo. E mesmo que combatentes curdos e soldados do Exército Árabe Sírio não tenham combatido fisicamente dentro da mesma trincheira, os curdos lutaram valentemente no norte, defendendo o solo sírio contra incursões que os turcos facilitavam e, depois, contra o ISIS.
Porém, quando se estabeleceram os movimentos curdos separatistas, e dado que não foram preventivamente abrigadossob o telhado de Damasco, algum lado teria de ceder.
Os Curdos separatistas farão qualquer coisa e acordos com não importa quem ou quando, para realizar seu sonho. A história já mostrou que estão preparados para se unir aos norte-americanos e até a Israel.
É preciso registrar que há curdos não separatistas, mesmo que não se conheça a porcentagem deles na população, assim como é impossível saber a porcentagem dos separatistas, e os não separatistas parecem não ter voz muito ativa na comunidade. Além do mais, parece que não há visão nacional inclusiva, sob cuja proteção os próprios curdos pudessem discutir e expor qualquer pensamento anti-separatista e arejar as próprias ideias, seus medos e apreensões como minoria, que inspiram o anseio por independência.
O papel da Turquia mudou com as marés ao longo dos últimos sete anos. Desde querer derrubar o governo do presidente Bashar al-Assad da Síria, com Erdogan rezando na Mesquita Omayyad como o conquistador de Damasco, Erdogan opera hoje em modo muito mais contido para controle de danos, na esperança de conseguir, pelo menos, impedir que se constitua um Estado curdo ao sul das próprias fronteiras. O vai e vem da guerra, e o pedido de desculpas a que foi obrigado, na luta para se reconciliar com a Rússia depois de a Turquia ter derrubado um Su-24 russo em novembro de 2015 puseram Erdogan na posição em que está. Mas Erdogan, islamista e nacionalista compulsivo, sempre tentará procurar oportunidades e aberturas, e não vacilará em apunhalar qualquer um pelas costas, porque seus sonhos de um sultanato muçulmano com base na Turquia são maiores que qualquer negócio ou acordo que ele assine com seja quem for.
Isso posto, Erdogan em nenhum caso aceitará solução que implique o estabelecimento de um Estado curdo. A menos que a maré vire a favor dele, é altamente improvável que venha a mudar de rota e exigir mais.
Verdade é que a guerra no norte da Síria é quase completamente separada da guerra que se trava no sul, com Israel.
Irã: O teatro sírio pôs o Irã fisicamente mais perto de Israel, de modo tal que abriu uma nova fronteira maior que a que o Hezbollah tem no sul do Líbano. Israel não tem privilégio recíproco. Assim, embora a presença de Israel não seja oficialmente reconhecida nos Estados do Qatar, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, não há praticamente qualquer dúvida de que a costa oriental do Golfo Persa/Árabe está sob controle direto ou indireto de israelenses em mais de um sentido.
Deve-se lembrar contudo que a questão que o Irã tem contra Israel é doutrinal, não é territorial.
Em resumo, a presença militar do Irã na Síria tem tudo a ver com o tratado de mútua defesa Irã-Síria, mas também visa a proteger interesses do Irã e a estabelecer presença militar e capacidades para lançamento de foguetes que estão a poucos quilômetros de importantes cidades israelenses, situação muito diferente da distância de praticamente mil quilômetros que separa Israel do Irã e mesmo das poucas centenas de quilômetros que separam a costa leste do Golfo Persa/Árabe das cidades do sul do Irã.
Dado que o Irã não é potência nuclear, e Israel sim, considerando o que se disse acima, qualquer confrontação militar convencional com Israel porá o Irã numa posição de vantagem.
O status do Irã na Síria não pode ser visto nem como ofensivo nem como defensivo vis-à-vis Israel. Parece ser mais provavelmente defensivo, e é pouco provável que o Irã venha a usar suas posições na Síria pra iniciar ataque não provocado a Israel, dado que Israel sempre contará com a força de contenção de seu arsenal atômico.
Hezbollah: Em vários sentidos, falando em termos ideológicos, o Hezbollah é uma extensão do Irã. Mas falando em termos estratégicos, o Hezbollah é parte do processo político libanês. Mas a questão do Hezbollah com Israel e doutrinal e também territorial.
O Hezbollah foi para a Síria para defender a Síria, claro, mas ao defender a Síria, o Hezbollah se autodefende e defende o Líbano.
As linhas de suprimento para o Hezbollah partem da Síria - o que não é segredo para ninguém. Mas ainda que o Hezbollah tenha tido de criar rotas alternativas depois de sete anos de guerra, mesmo assim permanece dependente da Síria para garantir a própria sobrevivência em profundidade, bem como sua capacidade de combate. Ainda que o Hezbollah penetrasse ainda mais e conseguisse estabelecer uma base de manufatura militar própria - o que absolutamente não é improvável - mesmo assim permanecerá conectado à Síria em níveis essenciais à própria sobrevivência e à própria continuidade.
Ideologicamente, Hezbollah é talvez mais próximo do Irã que qualquer outro aliado, mas estrategicamente não poderia estar mais próximo de qualquer outro aliado que da Síria. Esperar que o Hezbollah ceda à pressão e retire-se prematuramente da Síria é praticamente a mesma coisa que contar com que a Coreia do Norte entregue seu arsenal nuclear.
Israel: Não surpreenderia ninguém dizer que os EUA pós-Kissinger deixaram Israel sentir-se segura e privilegiada a ponto de se pôr a coagir a única superpotência mundial para que carimbasse qualquer coisa que Israel fizesse; ainda que fosse contra os interesses da superpotência.
Contudo, nem com todo o apoio que EUA deu a Israel a entidade sionista conseguiu fazer qualquer paz duradoura. Superioridade militar e paz são muito diferentes; os EUA tinham meios para garantir a primeira, a Israel; não a segunda.
Mas até essa superioridade militar que no início dos tempos significou que Israel era intocável acabou por ser erodida. A ascensão do Hezbollah ao poder, com capacidade para bombardear "Haifa e além de Haifa" em julho de 2006 causou calafrios aos estrategistas militares de Israel.
Israel agora não tem ideia de o que esperar se e quando houver outra escalada militar com o Hezbollah e hoje se prepara para o pior.
Dados os mais recentes confrontos com defesas aéreas sírias, Israel pôs-se em posição semelhante também em relação à Síria, sem saber tampouco o que esperar desse lado.
Os EUA: Apesar de tudo que os EUA fizeram no apoio inicial ao ataque Saudita/Qatari/Turco contra a Síria, só conseguiram derrota após derrota.
Se algum dia houve momento nos últimos sete anos para os EUA lançarem grande ataque contra a Síria, foi quando do ataque forjado, com armas químicas, apresentado como se tivesse sido cometido pelo Exército Árabe Sírio em Ghouta Ocidental. Mas Obama não caiu no golpe orquestrado pelos sauditas. Se há decisão política pela qual Obama deva ser lembrado positivamente quando toda a poeira afinal baixar, será aquela sua decisão de não atacar a Síria no início de setembro de 2013.
Mas os EUA de Trump herdaram uma Síria na qual os norte-americanos não têm nem presença nem influência. A nação decadente não quer ser vista como inerte, sem reação contra essa realidade.
Rússia: O papel da Rússia foi deixado para o final dessa reflexão, para poder enfatizar mais uma vez como já em outros artigos, que o papel da diplomacia russa está-se tornando mais e mais importante a cada momento na Síria e no Levante em geral.
Para poder ver no contexto adequado tudo que se disse acima, é preciso lembrar que está em curso uma guerra no sul da Síria, e que tem pouco a ver com a outra, que se trava no norte; e só a Rússia tem potencial para enfrentar o conflito.
Não há nem rastro de dúvida, para mim, de que a Rússia tem um plano de paz para o Oriente Médio.
Não tenho dúvidas tampouco de que a Rússia quer catapultar os EUA para bem longe do papel de negociador de conversações de paz no Oriente Médio. Afinal, os EUA permaneceram nessa função por mais de 40 anos, sem marcar qualquer ponto no tabuleiro.
Não se deve esquecer que, apesar de todas as concessões que os líderes da OLP fizeram a Israel, os EUA nem assim conseguiram (supondo que tenham tentado) oferecer qualquer paz à Palestina, tampouco a Israel, é claro. É altamente provável que até Israel já esteja farta das promessas de paz que os norte-americanos sempre repetiram e nunca cumpriram. A paz que os EUA prometeram a Israel sempre dependeu de os EUA esmagarem o Eixo da Resistência e plantarem em lugar dele governos-fantoches desdentados, que dançassem conforme a música dos EUA; com os norte-americanos obrigando-os a normalizar relações com Israel e a acabar com as ameaças contra a entidade sionista, hoje e para sempre.
Nesse quadro, a Rússia está fortalecendo sua posição no Oriente Médio, preparando-se para o momento de aparecer já como potência aceita por todas as partes envolvidas e único árbitro capaz de realmente construir acordo de paz amplo e inclusivo que atenda aos interesses de todos.
Todo o resto é encenação.
A recente escalada da guerra entre Síria e Israel não é prelúdio de guerra maior. Ninguém quer guerra; não agora, com todos dramaticamente conscientes do dano que qualquer guerra atrairá sobre eles mesmos e a região.
Israel continua sondando as águas, testando as capacidades de defesa dos sérios e, principalmente, testando a paciência dos russos e sua determinação na missão de construir real equilíbrio estável de poder no Oriente Médio.
Alguns árabes se sentirão desapontados por a Rússia não permitir a total destruição de Israel, mas a Rússia nunca prometeu isso. Por outro lado, contudo, a Rússia está empurrando Israel na direção de ser realista, e nunca prometeu a Israel qualquer apoio incondicional como fizeram os EUA, desde os dias de Kissinger.
Cabe a Israel se autoproteger contra os foguetes do Hezbollah, o que a Rússia não pode fazer por Israel. Em nenhum caso a Rússia iniciará guerra total nem contra a Síria nem contra o Hezbollah nem contra ambos. E sem esquecer a presença iraniana em solo na Síria, muito próximo das fronteiras de Israel.
Israel tem de aceitar que as regras do jogo mudaram; ou encarar uma escalada que custará danos gravíssimos à infraestrutura e aos cidadãos israelenses. A recente derrubada de um jato F-16 israelense pelas defesas aéreas sírias e a subsequente visita que Netanyahu fez ao presidente Putin é sinal claro de que Israel não está contente com o fornecimento de armas russas à Síria - e que sabe de que esse movimento dos russos está mudando o equilíbrio de poder.
Exame atento a eventos recentes verá necessariamente que a Rússia ainda tenta trazer Israel para conversações de paz baseadas num equilíbrio regional de poder. Mas Israel ainda não está convencida de que essa solução interesse a Israel, porque ainda não se convenceu, sequer, de que perdeu o controle militar que foi sua única força objetiva. Por outro lado, também é difícil para a Rússia convencer Síria, Hezbollah e Irã de que devem buscar a paz com Israel. E os EUA vão-se convencendo de que não têm presença na guerra no sul. Então se põem a usar o pretexto dos curdos para tentar ter 'uma' (qualquer!) presença no norte para evitar o pior: acabarem de fora de qualquer tipo de acordo que os russos consigam. Erdogan faz sua parte para impedir que se crie um Estado curdo na Síria. Exceto por isso, não tem qualquer papel a desempenar no conflito no sul.
No final do drama, os EUA apunhalarão os curdos pelas costas como já fizeram incontáveis vezes, o sonho independentista dos curdos será atrasado outra vez por muitas décadas, todos verão que o verdadeiro foco do conflito estará no sul. E chegará a hora de conhecer o plano de paz ainda não revelado dos russos e o papel que realmente cumprirão na reorganização do Oriente Médio.*****
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