40 anos com Luiz Carlos Prestes

No Brasil, viúva de Luiz Carlos Prestes relata os 40 anos de convivência com líder comunista
 
Por ANTONIO CARLOS LACERDA
PRAVDA.RU
 
40 anos com Luiz Carlos Prestes. 16291.jpegRIO DE JANEIRO/BRASIL - A pernambucana Maria Ribeiro Prestes viveu por 40 anos com Luiz Carlos Prestes, dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB), 34 anos mais velho que ela. Os dois se conheceram quando ela, militante, foi destacada para fazer a segurança dele na clandestinidade, nos anos 50. Para enganar a vizinhança, o chamava de Pedro, apelido que ficou.
 
Em seu apartamento, no Rio de Janeiro, Sudeste do Brasil, cheio de recordações do exílio em Moscou, na Rússia, Maria Ribeiro Prestes lembrou passagens dramáticas de sua vida. A seguir, e na íntegra, o depoimento de Maria Ribeiro Prestes à jornalista Claudia Antunes, da Folha.
 
"Meu pai, João Rodrigues Sobral, era camponês de Poção (PE). Em Recife, trabalhou numa fábrica de óleo de mamona. Depois abriu um armazém. Ele muitas vezes contava que via pessoas pobres no bairro de Areias, onde eu nasci em 1932 e era o armazém, entrar e furtar feijão, farinha, um pedaço de carne. Ele ficava revoltado com a pobreza na região.
 
Ele e minha mãe tiveram dez filhos, cinco faleceram ainda pequenos. Esse armazém era frequentado por pessoas de ideias evoluídas, que o levaram ao Partido Comunista. Ele tornou-se um revoltado, como a gente dizia. Era analfabeto, eu ensinei meu pai a ler e escrever quando tinha 15 anos.
 
Fui criada nesse ambiente. Em 1935, minha mãe faleceu e teve aquele movimento em Recife [a intentona comunista]. Meu pai foi preso, torturado, arrancaram as unhas, quebraram os dentes. Foi jogado num canto coberto com um saco de estopa e chamaram os filhos para dizer que era a última vez que a gente estava vendo ele.
 
Eu e meus irmãos ficamos em casas de companheiros do partido. Resolveram deportar meu pai de navio para o Rio, onde já tinha outros presos considerados subversivos, incluindo o Prestes. Quando chegou à Bahia, ele se jogou no mar. Voltou para Recife a pé, por dentro do mato, comendo casca de pau e folha.
 
Quando ele chega a Recife, passamos à clandestinidade. Tivemos que nos mudar várias vezes. Vivemos num sítio que tinha uma gráfica clandestina e na casa da minha avó em Poção. Trabalhei de enxada, colhi feijão, colhi milho, tirava leite de vaca, tomava banho no rio.
Passamos também por Maceió, Aracaju, e depois veio a ordem do partido para ele ir para a Bahia. Ficamos de 1939 a 1945. Tínhamos uma oficina de ferraduras, que era a fachada legal. Ele botava aquele carvão coque e a gente rodava um fole para manter o fogo aceso.
 
Depois veio a anistia, voltamos a Recife, já entrei na Juventude Comunista, fazia agitação e propaganda. Quando tinha comício, palestra, encontros, eu distribuía volantes, fazia pichação. Tinha a campanha do petróleo é nosso, contra a bomba atômica. O governador Barbosa Lima Sobrinho perseguia muita a gente. Fui presa, rasparam a minha cabeça, levei algumas porradas na polícia. Mas quando saí continuei na luta.
 
Em 1945 foi quando vi o Prestes pela primeira vez, num comício na praça 13 de maio. Era a campanha dele para o Senado. Eu fui segurança dele com outros jovens. Tinha outras mulheres militantes, batalhadoras, a Julia Santiago, a Adalgisa Cavalcante, a Josefa Feitosa. São nomes que estão esquecidos e não podemos deixar de mencionar porque deram contribuição à nossa luta.
 
Aos 18 anos arranjei um primeiro marido, que não deu certo. Resolvi me separar e procurei o partido, dizendo que não podia continuar com uma pessoa em quem não confiava. O partido mandou me tirar de lá, eu fui para a Bahia, depois vim para o Rio de Janeiro. Meu pai já estava em São Paulo, doente, e me mandaram lá para a casa dele, que veio a falecer em 1952 de sequelas das torturas. Morreu incógnito porque usava outro nome (Câmara Lima). Até hoje não conseguimos localizar onde foi enterrado.
 
Nessa época o registro do partido já tinha voltado a ser cassado e o Prestes, que tinha sido eleito senador, foi cassado também. Depois da morte do meu pai me botaram para ser segurança do Prestes. Disseram: "Você vai morar numa casa para cuidar de um dirigente do partido". Só vi quem era no dia em que ele chegou. Ele ficou até 1959 sob minha responsabilidade e a polícia nunca localizou nem descobriu quem estava tomando conta dele.
 
Quando a gente suspeitava que a casa estava sendo observada, a gente saía. Moramos em Diadema, Jabaquara, Brooklin, Lapa, Vila Romana, Penha, quase a São Paulo inteira. Trocaram meu nome para eu não ser identificada. Antes era Altamira Rodrigues Sobral, e ganhei documentos em nome de Maria do Carmo Ribeiro, com ano de nascimento diferente, 1930.
 
Nessa época era o dirigente comunista Giocondo Dias (1913-1987) que nos dava assistência. Ele tinha trabalhado com meu pai na Bahia, onde éramos sempre convidados para participar de piqueniques com Dorival Caymmi e Jorge Amado, para fazer finanças para o partido. Só mais tarde, em 1979 em Paris, houve divergências e a separação (Dias foi eleito secretário-geral quando Prestes deixou o PCB, em 1980).
 
Eu tinha já dois filhos, o Pedro e o Paulo. Um belo dia Prestes propôs casamento, eu disse que já tinha sido frustrada com o primeiro, que não aceitava assinar papel com ninguém. Ele disse que tinha gostado de mim, que apreciava o meu trabalho, que eu era uma pessoa muito dedicada, e que achava que seria uma boa companheira.
 
Eu disse: "não posso ser uma boa companheira porque não sou intelectual que nem você, sou uma pessoa trabalhadeira, comum, e acho que esse casamento não vai dar certo". Ele disse: "Não tem problema porque eu estou convivendo com você e estou vendo a sua vivência. Se eu fosse casar com uma intelectual, os nossos pensamentos iam estar sempre em contradição".
 
Eu disse: "Não posso aceitar, vão dizer que eu sou oportunista, que eu estou me aproveitando da sua pessoa, eu vou consultar o partido". Naquela época tínhamos essa disciplina. O Giocondo apareceu lá e e disse, "é um problema pessoal, quem resolve são vocês". Eu disse, "então tudo bem, eu vou viver com você, mas no dia em que não der certo você vai para um lado e eu para o outro".
 
Nunca casamos no papel. Mas aí vivemos 40 anos, e nunca brigamos nem discutimos, qualquer divergência a gente sentava e conversava. Ele valorizava o trabalho da mulher e de mãe. Gostava de criança, era um bom cozinheiro, gostava de fazer biscoitos, doces. Gostava de preparar bacalhau à portuguesa, salada de frutas, descascava um bom abacaxi. Nos anos 1950, ele já fazia biscoito de soja para as crianças.
Ele me ensinou a ler os clássicos, Shakespeare, Dickens, Górki, Dostoiévski. Eu e o Giocondo toda semana tínhamos aula de leitura com ele. Até aula de astronomia ele dava.
 
Com a gente morava um motorista, o José das Neves, que fazia as vezes de meu marido. Aparecia mais comigo, com os meninos, como se fosse uma família comum. Para os vizinhos não perceberem que tinha mais uma pessoa na casa, a gente chamava o Velho de Pedro, mesmo nome do meu filho. Aí eu chamei ele de Pedro até o fim.
 
Nesse período eu tive o João, a Rosa, a Ermelinda. Quando veio a semilegalidade [no final do governo Juscelino Kubitschek], eu já estava no Rio e tive o Luiz Carlos, a Mariana, e depois a Zóia e o Yuri. Um dia eu disse, "vamos parar?". E ele: "Deus quer, né. Vamos ter filhos". Prestes gostava de família grande, achava que devia dar continuidade à vida.
 
Até 1959, quando eu ia para o hospital para ter criança era questionada, porque o pai não aparecia. Eu dizia, "o pai é marinheiro, só aparece de vez em quando".
 
Eu tomava conta para o Prestes não chegar junto da janela. Ele tinha um radinho que escutava muito Moscou, tinha mania de botar um volume alto e a gente tinha que controlar. O Prestes sempre foi muito disciplinado, a gente falava e ele cumpria.
 
Quando eu conheci o Velho, ele era muito tímido, reservado, usava camisa abotoada até o pescoço. Eu dizia, "não precisa usar a roupa desse jeito, umas roupas já, puídas". Ele dizia, "não, o dinheiro que a gente recebe vem do trabalhador, a gente não pode gastar com luxo". E eu: "A gente está lutando para o bem estar de todo mundo, a gente também tem que andar pelo menos com uma roupa mais decente".
 
Aos poucos fui comprando roupa e substituindo a que ele tinha, e quando ele percebia, dizia, "eu não quero que você faça isso, está gastando o dinheiro", e eu dizia, "eu estou gastando mas é em benefício, não é possível você andar que nem um mendigo dentro de casa, você parece um padre com a camisa abotoada até o pescoço".
 
As crianças não sabiam que ele era o pai, chamavam de tio. Todos só foram saber quando a gente estava em Moscou, nos anos 1970.
No período da semilegalidade nós viemos aqui para o Rio, até que teve terrorismo, invadiram nossa casa na 19 de fevereiro [Botafogo, zona sul] e o partido resolveu que a gente deveria voltar para São Paulo. Morávamos na rua Nicolau de Souza Queirós quando veio 1964.
A casa foi invadida e roubaram tudo o que a gente tinha. Louça, roupa, livros. Eu tinha voltado de uma viagem com Prestes à Rússia e tinha trazido aquele casaco de pele que aparece na foto que a Folha publicou, em Kiev. Levaram o casaco, a bota, o chapéu.
 
Prestes teve que se esconder de novo, mas eu não podia porque tinha os filhos em idade escolar. Tinha uma câmera em frente à nossa casa filmando quem entrava e saía. Éramos sustentados por companheiros que nos visitavam, Miguel Costa Filho, Eliza Branco, Dante Ancona Lopes. Traziam mantimentos, dinheiro para pagar o aluguel. A polícia ficava de olho, mas não podia fazer nada contra eles.
 
Mesmo vigiada eu me encontrava com Prestes. Até viajamos de novo para a Rússia. Fui para o Rio Grande do Sul e saímos pela fronteira. Foi num desses encontros que eu levantei a proposta de irmos embora. Fomos em 1970 para Moscou e nos deram um apartamento numa das ruas principais, de onde a gente via a Praça Vermelha. Tinha quatro quartos, sala, cozinha e banheiro. Em 1971 o Velho chegou.
 
Queriam que eu botasse os meninos numa escola especial para filhos de estrangeiros. Eu disse que preferia que fossem estudar com os filhos dos trabalhadores, as pessoas da região. Eles não sabiam uma letra de russo, mas o Comitê Central do PC soviético botou uma professora que ia três vezes na semana dar aula para todos nós.
 
Ainda falo russo. É um idioma muito sonoro, meigo, o nordestino aprende russo melhor que o pessoal do sul porque é meio cantado. Minhas filhas se formaram lá, em pedagogia, obstetrícia, química. O Yuri fez jornalismo e história, o Luiz Carlos fez cinema, história e jornalismo. O Pedro, que faleceu em 14 de novembro, estudou engenharia de aviação.
 
Sempre acompanhava o Prestes em congressos, conferências. Conheci todas as 17 repúblicas soviéticas, a Tchecoslováquia, a Alemanha, a Bulgária. Também conheci Paris e Roma, Moçambique, Angola, Cuba. Foi gratificante, é uma bagagem de cultura que você traz. Na Alemanha visitei a prisão onde a Olga [Benário, primeira mulher de Prestes] ficou, a fábrica que leva o nome dela.
 
Os meninos tinham muitos amigos, nossa casa era mais frequentada do que a Embaixada do Brasil. Era estudante alemão, búlgaro, cubano, peruano, mexicano, português. Fazíamos sempre uma feijoada tradicional.
 
A readaptação aqui foi mais complicada. A gente tinha o Comitê da Anistia que nos ajudava, o Oscar Niemeyer, o João Saldanha. Eu sempre digo que agradeço os dez anos que vivi na Rússia e principalmente a educação dos meus filhos. Hoje eles trabalham como qualquer brasileiro, lutando pelo pão de cada dia.
 
Acho que ainda sou comunista, sim. Acho que a exploração do homem pelo homem não acabou, e as idéias de Lenin e de Marx continuam. Eu vivi num sistema socialista onde não havia desemprego, havia outros problemas. Não havia essa industrialização, liquidificador, panela de pressão, máquina de lavar, tudo isso era precário. Mas o povo trabalhava e recebia seu salário. E a educação era muito boa.
 
Tenho 24 netos e nove bisnetos. Todo ano a gente se reúne no aniversário do Velho, em 3 de janeiro. Os meninos fizeram o blog, mas não gosto muito de me comunicar por ele. A internet facilita a comunicação, mas separa muito as pessoas. Elas não se encontram para conversar, discutir, curtir.
 
Ainda vou a atos políticos, homenagens. O exercício que faço é andar. Às vezes vou do Leblon a Ipanema a pé, ou da Gávea ao Humaitá. Quando vou para Saquarema, onde a gente tem uma casa, ando lá. Gosto de cinema, do Almodóvar. Esse filme "A Pele que Habito" é impressionante, nossa!
 
Fiz muitos amigos em Moscou e alguns deles sempre nos visitam. De vez em quando faço uma sopa russa de beterraba e convido minhas amigas. Tem que ser na época do frio, porque leva creme de leite. Convido meus filhos e a gente faz aqui uma noite de russo, meus filhos cantam em russo, recordamos alguns momentos.
 
Conheci muitas pessoas na Rússia que perderam a família inteiras na guerra e procuraram tocar a vida para a frente, não ter uma vida amarga, se torturando. Se fosse me preocupar com o meu passado, não era o que sou. Acho que a gente tem que ser otimista, almejar algo melhor".
 
ANTONIO CARLOS LACERDA é correspondente internacional do PRAVDA.RU
 

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