Iraci del Nero da Costa
Ao que parece, de maneira inconsciente, porém com elevado grau de inconsequência, Orson Welles ao realizar sua teatralização radiofônica de A Guerra dos Mundos, em 1938, estabeleceu o marco inicial da era em que ainda nos encontramos imersos, qual seja, a do espetáculo dominado pela mera aparência e pelo execrável culto narcisístico que perverte parcela substantiva da humanidade - conspurcando as distintas formas de expressão de que nos servimos no largo espectro que vai da arte à vida política -, atingindo, especialmente, solitários seres anódinos perdidos em seu anonimato do qual procuram fugir buscando a "celebridade" segundo métodos que percorrem o amplo caminho cujo nascedouro repousa nas mais diversas atitudes grotescas e cujo ponto final distingue-se pela dramaticidade envolvida nos recorrentes suicídios, os quais, por via de regra, veem-se conjugados ao assassinato de uma ou mais pessoas.
Como se pode concluir, não houve demonstração alguma de uma refinada inteligência nessa famigerada transmissão ocorrida num momento em que a radiofonia distinguia-se como o principal meio de difusão das notícias em tempo real; tratou-se, tão somente, de um mal pensado engodo pespegado em uma população desprevenida e crédula a qual, sentindo-se desprotegida, foi presa de imenso pavor em decorrência do qual algumas pessoas, cujo desespero tornou-se incontrolável, foram levadas ao suicídio. O autor da encenação, não obstante, tornou-se muito mais conhecido do que já o era, passou a integrar a galeria das personalidades famosas e foi tratado por muitos cronistas como detentor de uma inconteste genialidade.[i]
Emergiu, assim, um período caracterizado pela total ausência de princípios e despido de objetivos dignos; depois de sua consolidação nos vemos cercados por individualistas ávidos por alcançar o ganho fácil ou que almejam, tão só, "aparecer" a qualquer custo. Com essa busca desvairada pelos decantados quinze minutos de fama perdeu-se o norte e ganhou-se o nada.
A projeção desse desprezível mundo novo no meio universitário viu-se consubstanciada nos conhecidos episódios de plágio, na falsificação e distorção de dados e, em especial, na asquerosa prática da usurpação do esforço despendido por orientandos engajados nos programas de mestrado e de doutorado.[ii] Em muitas de nossas instituições de ensino tal apropriação indevida foi consagrada como obrigatória pela própria burocracia universitária a qual, cinicamente, a justifica alegando ser ela um meio eficaz de se garantir a qualidade dos estudos desenvolvidos pelos ditos estudantes.[iii] Assim, amiudadas vezes deparamo-nos com artigos e comunicações científicas encimados pelos nomes de seus reais, efetivos e únicos elaboradores acompanhados pelos nomes de seus orientadores os quais, em muitos casos, mais grotescos ainda, veem-se seguidos pelos de vários outros coautores.[iv]
Esta é a regra, dizem mestres e doutores que acabaram de defender suas dissertações ou teses que, por vezes, como os seus demais estudos, também são vilmente compartilhadas por terceiros, os quais deveriam adotar como mandamento maior o respeito absoluto pelo empenho de seus alunos e a proteção e clara identificação dos verdadeiros autores dos achados porventura existentes nas aludidas teses e dissertações.
Vergados a uma burocracia absolutamente apartada do autêntico espírito universitário e de qualquer compromisso com o alargamento e universalização do "saber pelo saber", tais pessoas, interessadas apenas em "construir" currículos formais com numerosos itens, não raro se unem com um alentado número de outros pretensos autores cujo contributo para a elaboração efetiva dos trabalhos em questão foi absolutamente nulo, todos a servirem-se da diligência de orientandos cuja autonomia vê-se manietada dada sua dependência com respeito a seus mestres.
Chega-se mesmo a encontrar, na deplorável Plataforma Lattes, casos em que apenas o mestrado e/ou o doutorado são atribuídos exclusivamente ao autor pesquisado, pois em todos os demais trabalhos arrolados no "documento" faz-se presente um abundante número de coautores. Como dizem os entendidos, o trabalho em equipe é uma das mais expressivas conquistas de nosso mundo acadêmico. Impõem-se aqui a conclusão de que os solitários e ensimesmados Meneghettis são próprios de um passado definitivamente superado, pois nos admiráveis dias correntes nos defrontamos com o flamante e superior ludíbrio organizado.
Outro efeito deletério da corrida desenfreada em busca do "sucesso" rapidamente alcançável é dado pelo privilégio emprestado à aceitação de alunos diretamente nos programas de doutoramento sem previamente haverem cumprido o curso de mestrado. Este último, como sabido, foi relegado a um deprimente segundo plano, vendo-se desprezado tanto por alunos como por instituições acadêmicas, em algumas das quais, praticamente, foram extintos. Certa vez ouvi de uma colega responsável por cursos de pós-graduação: "esqueça o mestrado, ele morreu"!
Ora, se das teses de doutorado espera-se uma contribuição científica original; do mestrado - sem deixar de lado a exigência de uma dissertação de qualidade - deve-se esperar, essencialmente, a formação de um novo pesquisador, apto a formular e desenvolver integralmente um trabalho de mais largo fôlego. Assim, se o produto final da tese é um trabalho original, o produto último da dissertação é o próprio pesquisador. "Queimar etapas" representa, a meu juízo, um imenso prejuízo imposto não só ao orientando mas, sobretudo, à academia e ao desenvolvimento harmonioso e seguro do pensamento científico.
[1] A proposta de promover a tresloucada teatralização nem sequer foi original, pois baseou-se em fato verídico, qual seja a transmissão efetuada por um repórter que relatava, em 1937, a chegada à base de Lakehurst, em Nova Jersey, do dirigível Hindenburg, o qual, como sabido, incendiou-se; coube a esse repórter, descrever em tempo real o drama que se desenrolava ante seus olhos.
2 Sobre esta última questão escrevi uma crônica, divulgada na Internet, intitulada O plágio é apenas um detalhe.
3 A presença do orientador como garantidor da qualidade dos trabalhos realizados por seus orientandos poderia ser dada pela exigência de seu aval, em nota de rodapé, nos estudos e artigos elaborados por seus pupilos.
4 Evidentemente, não incluo neste rol os casos em que se dá uma correta e equilibrada conjugação de esforços de orientandos e seus respectivos orientadores. Participei pessoalmente de vários trabalhos com esta característica, ademais, por ter um currículo mais alentado do que o de meus orientandos ou demais coautores, sempre fiz questão de colocar seus nomes em primeiro lugar quando da publicação de nossos estudos conjuntos.
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[i] A proposta de promover a tresloucada teatralização nem sequer foi original, pois baseou-se em fato verídico, qual seja a transmissão efetuada por um repórter que relatava, em 1937, a chegada à base de Lakehurst, em Nova Jersey, do dirigível Hindenburg, o qual, como sabido, incendiou-se; coube a esse repórter, descrever em tempo real o drama que se desenrolava ante seus olhos.
[ii] Sobre esta última questão escrevi uma crônica, divulgada na Internet, intitulada O plágio é apenas um detalhe.
[iii] A presença do orientador como garantidor da qualidade dos trabalhos realizados por seus orientandos poderia ser dada pela exigência de seu aval, em nota de rodapé, nos estudos e artigos elaborados por seus pupilos.
[iv] Evidentemente, não incluo neste rol os casos em que se dá uma correta e equilibrada conjugação de esforços de orientandos e seus respectivos orientadores. Participei pessoalmente de vários trabalhos com esta característica, ademais, por ter um currículo mais alentado do que o de meus orientandos ou demais coautores, sempre fiz questão de colocar seus nomes em primeiro lugar quando da publicação de nossos estudos conjuntos.
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