A geografia social do Zika vírus no Brasil

Considerado uma ameaça à saúde mundial, o Zika vírus pode ser mais um indicador das desigualdades que persistem no Brasil, já que seus impactos são maiores em áreas mais pobres. O tema é discutido no artigo The Social Geography of Zika in Brazil (A geografia social do Zika vírus no Brasil), assinado pelo professor visitante do IEA Jeffrey Lesser, da Emory University de Atlanta, Estados Unidos. Publicado no número 48 da revista norte-americana NACLA Report on the Americas, o artigo tem co-autoria de Uriel Kitron, chefe do departamento de ciências ambientais da mesma universidade.

por Sylvia Miguel 

Em ano sabático pela Emory University, Lesser desenvolve no IEA a pesquisa Metrópoles, Migração e Mosquitos: Uma Historia de Saúde em São Paulo, Brasil. No ano passado, lançou pela Editora Unesp o livro  "A Invenção da Brasilidade".

Abordagens da saúde pública no Brasil, as atitudes da população sobre as formas de conter o mosquito transmissor do Zika, as campanhas governamentais sobre o Aedes aegypti e as condições socioeconômicas das áreas que Lesser visitou para a pesquisa são alguns dos tópicos tratados no artigo. A análise combina métodos interdisciplinares do campo da história, antropologia e epidemiologia, conforme a proposta do projeto financiado em parte pela Emory University e em parte pelo IEA-USP.

Em março de 2016, quando São Paulo ainda sofria os impactos da seca mais crítica de sua história, Lesser visitou o distrito de Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, acompanhado por agentes de saúde encarregados de orientar a população e de dedetizar possíveis focos do mosquito transmissor. Naquele período, grande parte da cidade era abastecida pelos caminhões-pipa. O problema é que a água armazenada pelas famílias em geral acabava se transformando em focos de reprodução da larva do mosquito, já que as condições de acondicionamento do líquido em geral eram muito precárias.

Segundo Lesser, os moradores daquela comunidade, com rendimentos médios mensais de cerca de dois salários mínimos e meio, tinham poucos recursos para reparar as caixas d´água ou comprar equipamentos vedantes para os tanques de armazenamento. Numa região em que a maioria das construções civis fica semi-acabada e o acesso a serviços básicos como coleta de lixo e tratamento de esgoto é irregular ou inexistente, a população termina com um fardo desigual, muitas vezes maior do que pode suportar, mostra o artigo.

A mulher pobre e grávida, moradora de áreas onde há surto da febre causada pelo Zika, também é mais penalizada. Tanto em relação ao homem, quanto em relação à mulher que pode pagar assistência médica particular ou mesmo sair da área de risco enquanto estiver grávida. "Oficiais de saúde recomendam que mulheres em áreas de risco devem evitar a gravidez e evitar intercurso sexual, mas em geral ignoram o papel do homem nessa questão", afirma o autor.

As campanhas governamentais, mostrando "mosquitos monstros" com presas e cara de mau, podem ser "resquícios" de materiais educacionais usados no século 19, analisa o autor. Esse tipo de imagem tem sido criticada por especialistas, diz Lesser, pois pode levar as pessoas a crerem que todo e qualquer tipo de mosquito pode ser um perigo iminente.

Além disso, a forma de conduzir as campanhas de contenção do mosquito assumem características amplamente paternalistas, como foram no passado. O uso de militares nas operações de saúde pública também traz desconfiança de uma parcela da população que está acostumada a lidar com a força policial especialmente em situações de confronto. Muitas pessoas acabam vendo os agentes de saúde como agentes sociais do estado incumbidos de controlar os indivíduos mais do que priorizar a saúde comunitária, mostra o autor.

Tais abordagens das campanhas governamentais e das "brigadas" contra o mosquito lembram as práticas higienistas do século 19 e início do século 20, que levaram a episódios que culminaram de fato em confrontos, como a Revolta da Vacina, ocorrida em 1904, no Rio de Janeiro, contra a vacinação obrigatória para varíola.

Fatores cruciais para a transmissão

A concentração de pessoas em áreas precárias, o planejamento de saúde pública feito por gestores sintonizados com políticas do século passado, e a distribuição irregular de água que torna os mais pobres dependentes de armazenamento em cisternas e caixas-d'água são três eixos cruciais do problema da transmissão do Zika evidenciados na pesquisa.

Esses fatores, conclui Lesser, mostram que a geografia da desigualdade no Brasil ainda persiste, tornando o pobre mais suscetível a um problema que não é novo, já que as epidemias causadas por mosquitos remontam ao tempo da descoberta da América.

No mesmo mês da publicação do artigo de Lesser, foi divulgada a descoberta de que o mosquito Culex quinquefasciatus, conhecido como muriçoca ou pernilongo doméstico, também pode transmitir o Zika vírus, causador da microcefalia e de malformações em bebês. A descoberta da bióloga Constância Ayres, da Fiocruz Pernambuco, tem o potencial de proporcionar um salto no conhecimento sobre o vírus e mudar radicalmente a estratégia brasileira de prevenção, uma vez que inexistem estratégias de controle do Culex no Brasil.

Ao contrário do Aedes, o pernilongo é mais ativo à noite, o que implicaria em campanhas de conscientização sobre o uso de repelentes e roupas compridas também nesse horário, especialmente por gestantes. Além disso, o pernilongo prefere colocar seus ovos em locais extremamente poluídos como esgotos, fossas e canaletas. Assim, as medidas de saneamento básico podem ser ainda mais urgentes para evitar a expansão de casos de Zika e microcefalia em bairros mais precários.

Ocupante da cátedra de Estudos Brasileiros na Emory, Lesser é autor de diversos livros lançados no Brasil, incluindo três premiados internacionalmente: "Uma Diáspora Descontente: Os Nipo-Brasileiros e os Significados da Militância Étnica, 1960-1980" (Paz e Terra, 2008), "A Negociação da Identidade Nacional: Imigrantes, Minorias e a Luta pela Etnicidade no Brasil", (Editora Unesp, 2001) e "O Brasil e a Questão Judaica: Imigração, Diplomacia e Preconceito" (Imago Editora, 1995).

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