‘Sistema Eleitoral Precisa de Reforma’: Entrevista com David Walker

Nos Estados Unidos, mais vozes políticas ficaram de fora do que foram incluídas ao cenário eleitoral e midiático deste ano, como historicamente ocorre na “melhor democracia que o dinheiro pode comprar”, parafraseando o título do best-seller destacado por The New York Times, de autoria do jornalista investigativo norte-americano Greg Palast (The Best Democracy Money Can Buy).

Os dois partidos hegemônicos que se alternam no poder desta estranha democracia estadunidense, o Democrata e o Republicano, há muitas décadas tornaram-se duas faces de uma mesma moeda. Defensores de um mesmo sistema, os mesmos interesses dentro e fora de suas fronteiras.

Os debates presidenciais oficiais dos EUA têm sido realizados pela Comissão de Debates Presidenciais, corporação sem fins lucrativos patrocinada conjuntamente pelos partidos Democrata e Republicano. Parece que Greg Palast não exagerou em seu livro, começando pelo título.

“Temos uma república que não é representativa nem responsiva ao público em geral”, afirmou na entrevista a seguir David Walker, presidente do Tribunal de Contas do Estados Unidos de 1998 a 2008, nos anos dos presidentes Bill Clinton e George W. Bush.

Enquanto Donald Trump comemora seu retorno à Casa Branca, talvez de novo mais por rejeição dos eleitores aos democratas, cuja candidata Kamala Harris foi fracassadamente transformada em algo do tipo “política-fashion” pela mídia, não tantos cidadãos têm consciência de que tal vitória custou mais exclusão que inclusão nesta que se vangloria de ter sido “a primeira democracia das Américas”.

Lá tal qual cá, os maiores produtores de Frankeinsteins políticos estão mais perto de nós, do que muitas vezes imaginamos. 

‘É Muito Difícil Obter Informação nos Estados Unidos’

Em seu livro A Outra América: Apogeu, Crise e Decadência dos Estados Unidos, o jornalista brasileiro José Arbex Jr. credita o desinteresse crescente da sociedade norte-americana pela política, exatamente a esta “democracia bipartidária” em que democratas e republicanos quase em nada se diferenciam um do outro. E nenhuma opção resta ao eleitorado norte-americano. 

O fato apresentado por Arbex é confirmado ano a ano por importantes institutos de pesquisa dos Estados Unidos. Nada disso, minimamente questionado pela mídia estadunidense (sequer questionado). Sendo por isso tudo discutível se este sistema político pode realmente ser qualificado de plena democracia. Para Walker, seu país possui “um sistema bipartidário que precisa ser reformado”.

“Neste país, o mais poderoso do mundo, é muito difícil obter informação”, disse a jornalista estadunidense Amy Godman no documentário de 2012 Shadows of Liberty (Vultos de Liberdade, tradução livre) de Jean-Philippe Tremblay, que questiona o poder midiático norte-americano e a suposta “liberdade de imprensa” naquele país. A propalada “democracia” norte-americana só pode sobreviver, ainda que o que dela resta esteja agonizando, em um ambiente como este descrito por Goodman.

Walker, quem mediou em 23 de outubro deste ano o debate presidencial promovido pela Fundação Eleições Livres & Iguais dos EUA entre candidatos presidenciais estadunidenses à parte aos dois partidos dominantes, observa que mídia dos EUA atualmente, neste cenário eleitoral, “faz parte do problema em vez de fazer parte da solução”.

E acrescenta importante fato: “a confiança do público no governo e na mídia, está em ou perto de um nível mais baixo de todos os tempos”.

 

Governados pelo Menos Rejeitado

Nesta entrevista, Walker observa também que muitos nos EUA votam contra determinado candidato, mais por rejeição que preferência, propriamente.

Apontando também que “as últimas eleições presidenciais [que elegeram Donald Trump, Joe Biden e Barack Obama] não deram aos eleitores a escolha que eles queriam”.

Diante disso, haja visto ainda que George W. Bush precedeu Obama vencendo duas eleições de maneira no mínimo muito duvidosa do ponto de vista legal, a tal democracia estadunidense pode ser vista como um grande fracasso como observou o whistleblower (denunciante do Estado) John Kiriakou, jornalista, escritor e ex-agente da CIA em entrevista a este autor no ano de 2016.

‘Confetes’ como Arma contra o Pensamento

“Pensar é o trabalho mais difícil que existe. Talvez por isso, tão poucos se dedicam a ele”, disse certa vez Henry Ford. A fim de desviar as atenções e esconder toda esta pateticidade (para dizer o mínimo) que se tornou a “democracia” norte-americana, o sistema – prática típica de regimes autoritários – esforça-se estoicamente a cada punhado de anos a fim de tentar produzir ícones que, logo, revelam-se.  

Caso outrossim de Barack Obama (2009-2017), o Nobel da Paz que empreendeu guerras genocidas do início ao fim do seu mandato como poucos presidentes na história recente dos EUA. Tendo ainda obtido a inglória façanha de ter superado seu antecessor, o altamente belicista George W. Bush, no uso e abuso de drones assassinos, incrivelmente destrutivos mundo afora violando leis internacionais e internas, de Estados estrangeiros e dos próprios EUA em diversos aspectos.

O democrata Obama marcou na Casa Branca, superando qualquer outro inquilino daquela mansão presidenial, “caça” implacável a whistleblowers como John Kiriakou, Edward Snowden, Julian Assange e tantos outros. Tornando crime contra o Estado as denúncias, ao invés de se punir os criminosos de Estado.

Foi também durante o governo deste mesmo “democrata” tão adulado pela midia local e global, que houve a mais intensa espionagem a nivel mundial vitimizando desde chefes de Estado, até ativistas por direitos humanos e os mais simples cidadãos como denunciou Snowden, hoje exilado na Rússia.

Quando esses ícones made in USA dão com os burros n’água, o que é comum ocorrer e também fruto do cansaço de milhoes de cidadaos diante deste pobre espetáculo politico e midiático, o resultado da “festa da democracia” estadunidense costuma piorar.

A afirmação de Goodman corroborada por Walker certamente explica o porquê de, simplesmente, o advogado ambientalista Robert F. Kennedy Jr. ter sido candidato independente em alguns estados nas eleições presidenciais deste ano, de maneira completamente desapercebida. Assim como diversos outros candidatos “ocultos” que sequer puderam aparecer nas cédulas eleitorais de vários estados, nem muito menos expor ideais na tal “democracia mais avançada do mundo”. 

Democratas e Republicanos ‘Não Querem Competição’

Nesta entrevista, o fundador de Comeback America Initiative, co-fundador de No Labels e autor de America in 2040: Still a Superpower?, afirma que tanto republicanos quanto democratas desejam manter o status quo. “Os dois principais partidos políticos não querem mais competição”.

Ao mesmo tempo que observa, exatamente, a rejeição crescente do eleitorado de seu país aos dois partidos dominantes. “Temos muitos políticos de carreira, pouca competição real na maioria das primárias da Câmara, muitos ideólogos que não querem se comprometer, e poucos políticos dispostos a dizer a verdade”.

Certamente nem Machiavel ousaria qualificar de democrático um país onde, apenas para começar (democracia vai muito além do voto, mas aqui este sistema tem início), não há eleições livres nem iguais. Para nem se falar em sistema de justiça, fraudes eleitorais como nas eleições de George W. Bush, forte racismo, desigualdades sociais, desnutrição infantil, violência, roubos de terras estrangeiras e locais exterminando povos originários, agressiva e longa escravização de negros, devastação do meio ambiente líder mundial, crimes de guerra e golpes contra governos e democracias legítimas em todo o mundo, ano após ano ao longo de toda a história dos EUA.

Grandes e podorosos? Certramente, não fundamentalmente por meios democráticos embora, como Noam Chomsky apontou em entrevista de 2020 a este jornalista, os EUA são progressistas em muitos aspectos – mas muito regressivos em outros. “A cultura e a sociedade americanas não apagaram essas manchas profundas [de discriminação e “excepcionalismo”], algo totalmente óbvio no comportamento internacional e nos assuntos domésticos”, observou Chomsky.

Walker recebeu o Prêmio Medalha de Ouro de Distinção do Instituto Americano de Contadores Públicos Certificados, em 19 de outubro de 2008. Em 2010, ele foi incluído no Hall da Fama da Contabilidade, da Universidade Estadual de Ohio.

A seguir, a entrevista completa. 

Edu Montesanti: Honorável David Walker, primeiramente eu gostaria de agradecer ao senhor por, gentilmente, conceder-me esta entrevista, de grande importância para o mundo todo, é claro, e pessoalmente para mim uma grande honra, abrilhantando meu trabalho por sua excelente biografia como profissional dedicado à democracia, transparência e justiça.

Quais têm sido os obstáculos nos Estados Unidos “para abrir o sistema eleitoral a fim de que seja justo, transparente e inclusivo para todos os americanos”, como afirma o Free&Equal Elections Foundation?

David Walker: Os dois principais partidos políticos não querem mais competição. Eles gostam de manter as coisas simples, e simplistas. Fornecer apenas duas opções viáveis ​​e endossadas pelo partido aos eleitores facilita isso. No entanto, os eleitores registrados têm rejeitado cada vez mais essa abordagem, e cerca de metade deles agora não são filiados a nenhum partido, ou seja: independentes, incluindo eu mesmo.

Na minha opinião, atualmente temos uma república que não é representativa nem responsiva ao público em geral. Precisamos claramente de uma série de reformas políticas para revitalizar nossa democracia. Isso inclui mais competição por meio de reforma primária e acesso ao voto, reforma de redistritamento, reforma de financiamento de campanha e limites de mandato. A votação por escolha classificada também precisa ser considerada [em que se vota em diferentes candidatos, ordenando-os de acordo com a preferência do eleitor].

 

O senhor concorda com o termo “ditadura bipartidária” para definir o atual sistema eleitoral dos EUA?

Não concordo com o uso do termo “ditadura” em conexão com o sistema político dos EUA. Temos um sistema bipartidário que precisa ser reformado. Além disso, a Constituição dos EUA tem muitos freios e contrapesos para impedir que qualquer presidente tente se tornar um ditador.

 

Até que ponto o sistema eleitoral bipartidário potencialmente influencia, se é que ocorre isso a seu ver, um declínio dos Estados Unidos nas próximas décadas de acordo com sua pergunta levantada em Estados Unidos em 2040: Ainda uma Superpotencia? [America in 2040: Still a Superpower?], título de um de seus livros? Eu mesmo vejo o sistema atual como uma autoameaça permanente aos EUA: veja que muitos eleitores têm votado muito mais baseados em rejeição, que devido a uma efetiva preferência pelos que votam, o senhor não acha?

O sistema político atual claramente precisa de reforma. Na minha opinião, as últimas eleições presidenciais [que elegeram Donald Trump, Joe Biden e Barack Obama] não deram aos eleitores a escolha que eles queriam. Muitas pessoas votaram contra um candidato, em vez de a favor de um candidato na eleição geral.

Além disso, cerca de 70 por cento dos eleitores registrados queriam uma terceira opção viável para presidente em 2024, mas isso não aconteceu. Temos muitos políticos de carreira, pouca competição real na maioria das primárias da Câmara, muitos ideólogos que não querem se comprometer, e poucos políticos dispostos a dizer a verdade e fazer escolhas difíceis a fim de resolver grandes problemas bem-conhecidos e crescentes, antes que resultem em uma crise.

Isso é claramente verdade em conexão com a deterioração da posição financeira dos EUA, e a necessidade de reformar nosso sistema de Previdência Social.

 

O senhor acredita que a mídia americana questiona suficientemente o atual sistema bipartidário?

Não. A mídia dos EUA atualmente faz parte do problema, em vez de fazer parte da solução. A confiança do público no governo e na mídia, está em ou perto de um nível mais baixo de todos os tempos. A maioria dos meios de comunicação é tendenciosa em relação a um dos principais partidos políticos.

Em muitos casos, eles contribuem em vez de corrigir a desinformação. Temos muitos comentaristas políticos tendenciosos, e poucos jornalistas equilibrados e baseados em fatos. A censura por alguns meios de comunicação social também se tornou um grande problema.

 

O instituto de pesquisas estadunidense Pew Research emitiu recentemente pesquisa revelando que “apenas 20% dos eleitores [americanos] estão altamente confiantes de que a Suprema Corte seria politicamente neutra se decidisse sobre questões legais na eleição [dos EUA] de 2024”. Por que há tanta desconfiança na primeira democracia das Américas, dr. Walker, e qual sua posição sobre a segurança eleitoral dos EUA?

Infelizmente, o sistema político dos EUA tornou-se mais partidário e ideológico nos últimos 25 anos. Isso é especialmente evidente nas eleições presidenciais e do Congresso em nível federal. No entanto, também impactou as nomeações judiciais para os tribunais federais, incluindo a Suprema Corte.

A maioria das decisões da Suprema Corte não são controversas, mas outras são, especialmente quando abordam questões sociais altamente emocionais (por exemplo, direitos ao aborto) e campanhas políticas (por exemplo, Bush contra Gore). Algumas promovem a expansão do tamanho da Suprema Corte e/ou a imposição de limites de mandato aos juízes. Essas propostas provavelmente não terão sucesso no curto prazo.

Houve irregularidades eleitorais e violações da lei na eleição presidencial de 2020. No entanto, não acredito que tenham sido significativas o suficiente para mudar o resultado geral da eleição.

Acredito que uma série de medidas foram tomadas para melhorar a segurança eleitoral desde as eleições de 2020. O sistema nunca será perfeito, e esforços de melhoria contínua são apropriados.

Do ponto de vista pessoal, tenho confiança na capacidade da Suprema Corte de agir de maneira consistente com a Constituição, e de maneira não partidária e não pessoal. Na minha opinião, é assim que precisa ser.

 

Quais as características que o senhor gostaria de destacar em relação ao último debate presidencial da Free&Equal Elections Foundation que o senhor mediou com Christina Tobin, e como o senhor acha que ele se diferenciou, se é que isso ocorreu, dos debates entre Kamala Harris e Donald Trump?

O último debate presidencial da Free&Equal foi civilizado e abordou as questões de maior preocupação dos eleitores americanos. Esteve focado no futuro, e orientado a fim de se buscar soluções.

Além disso, como moderadores, Christina Tobin e eu conduzimo-nos de maneira profissional e neutra. Os principais debates partidários devem adotar essa abordagem.

 

O que falta para haver eleições efetivamente livres e iguais nos Estados Unidos e, certamente uma pergunta que muitos fazem no exterior, quais grupos nos Estados Unidos mais se opõem e quais os que favorecem esta iniciativa, dr. David Walker?

Os Estados Unidos tiveram dois grandes partidos políticos durante a maior parte de sua existência. Partidos menores existiram ao longo do tempo, mas geralmente não ganharam apoio suficiente para ter chance de vencer uma corrida presidencial, obtendo pelo menos 270 votos no Colégio Eleitoral.

Por exemplo, Ross Perot concorreu sob a bandeira do Partido Reformista em 1992. Embora tenha obtido 19% do voto popular, ele não obteve nenhum voto eleitoral. É importante ressaltar que os candidatos de pequenos partidos podem ganhar apoio suficiente para mudar o resultado de uma eleição em um estado indeciso, o que pode mudar o resultado geral no Colégio Eleitoral. Isso aconteceu na Flórida na eleição presidencial de 2020.

Os dois principais partidos não apoiam mais escolha e competição. Em 2024, o Partido Democrata tomou uma série de medidas para se opor a esforços significativos de terceiros candidatos ou independentes a nível presidencial. Por exemplo, o esforço do No Labels [grupo polítio centrista], em apoiar a campanha de Robert F. Kennedy Jr, de Unity Ticket.

Há uma clara necessidade de se melhorar os esforços de acesso ao voto para aumentar a escolha e a competição. Outras reformas políticas são necessárias para tornar o sistema político americano mais representativo e responsivo ao público em geral. Isso inclui reformas no processo de redistritamento, sistemas primários, limites de mandato e leis de financiamento de campanha.

 

Como o senhor avalia a vitória presidencial de Donald Trump, e o que espera de seu segundo mandato?

O ex-presidente Donald Trump teve uma das maiores reviravoltas políticas de todos os tempos. Ele venceu tanto no Colégio Eleitoral quanto no voto popular. Embora nenhum dos principais candidatos presidenciais tenha enfatizado a necessidade de se colocar nossas finanças federais em ordem durante suas campanhas, Trump enfatizou a necessidade de grandes mudanças no tamanho e escopo do governo.

Ele também defendeu a extensão dos “cortes de impostos de Trump”, com vencimentos programado para o final de 2025, ao mesmo tempo em que acrescentou alguns novos cortes. O tempo dirá quais serão suas reais prioridades fiscais, e o que ele conseguirá aprovar no Congresso.

Em um aspecto muito importante, os republicanos retomaram o Senado e a Câmara, bom presságio por confirmar os indicados de Trump. Grandes mudanças exigirão o apoio de ambas as casas do Congresso.

Além das questões fiscais, Trump provavelmente agirá rapidamente para proteger a fronteira. Precisamos de imigração devido à nossa baixa taxa de natalidade e outros fatores, mas precisa ser uma imigração legal. Trumo tomará medidas contra o “status de santuário” de estados e cidades [limites impostos por jurisdição que impedem cooperação na troca de informacoes com o governo federal], promoverá mais produção de energia, reduzirá a regulamentação federal e deterá agressores internacionais. Muitas dessas ações não exigem ações do Congresso.

 

Há mais alguma coisa que o senhor gostaria de comentar sobre o sistema político dos EUA, especialmente sobre a promoção de eleições livres e iguais no país?

Os Estados Unidos são um país grande e poderoso, mas nosso sistema político precisa de reforma para aumentar a escolha, melhorar a competição, promover o compromisso e focar no futuro. Muitos políticos estão focados no hoje e estão hipotecando nosso futuro.

A Free&Equal Foundation é uma força positiva para ajudar a tornar as mudanças necessárias uma realidade nos Estados Unidos.

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Author`s name Edu Montesanti