O absoluto ocidental e o relativo da realidade

“Somos tão presunçosos que gostaríamos de ser conhecidos por toda a terra e até mesmo por pessoas que virão quando já não mais existirmos”.

“Quantas vezes sonhamos como sonhamos, empilhando um sonho em cima do outro. Não pode ser que esta metade da vida seja apenas um sonho, no qual a outra é enxertada, e da qual acordamos na morte? E durante a vida da qual temos tão poucos princípios de verdade e de bem quando dormimos o sono natural? Todo este fluir do tempo, da vida, e estes vários corpos que sentimos, estes diferentes pensamentos que nos agitam, talvez sejam apenas ilusões semelhantes, ao correr do tempo, e os vãos fantasmas dos nossos sonhos. Acreditamos ver os espaços, as figuras, os movimentos, sentimos o fluir do tempo, medimo-lo e, por fim, agimos como se estivéssemos acordados. De modo que metade da vida é passada dormindo, por nossa própria admissão ou o que quer que nos pareça. Não temos ideia da verdade, todos os nossos sentimentos são ilusões. Quem sabe se essa outra metade da vida em que pensamos estar acordados não seja outro sono um pouco diferente do primeiro” (Blaise Pascal, “Pensées”, texto definido por Louis Lafuma, para o “Club du Meilleur Livre”, Paris, 1958, volume I, “Contrariétés”, em tradução livre).

 

O Ocidente, aqui entendido como pensamento e ação europeus, e do mundo colonizado pela Europa, tiveram na Grécia as bases do seu nascimento e desenvolvimento, com as questões da gênese e da razão. E foi conduzido de modo linear.

A escrita é a maneira de pensar, ou seja, o pensamento exige um idioma. E as normas deste idioma são restrições ou induzem as condições do pensar.

Isaac Azimov (“The Land of Canaan”, 1971, na tradução de Néstor A. Mígues para Alianza Editorial, Madrid, 1980) escreveu sobre os hebreus: “os chineses inventaram sua própria escrita, e o mesmo fizeram os Maias, da América Central”, surgido entre as avançadas culturas da Suméria e do Egito, “Canaan, a meio do caminho entre eles, floresceu”.

As diversas formas de escrever também significam diversas maneiras de pensar, e os europeus, tão logo conseguiram sair do desconfortável território da Europa, pelo clima e pelos recursos naturais, procuraram eliminar as escritas e os pensamentos diferentes dos seus pelo resto do mundo. As primeiras vítimas estavam no norte da África (Egito) e no Oriente Médio (Assírios, Sumérios e outros povos da Mesopotâmia). Os primeiros conquistadores foram os gregos, a eles seguiram os romanos.

O Oriente e a África não foram extintos, malgrado as diversas agressões e dominações, como ocorreu com os Maias. Mantiveram-se, mesmo submetidos aos povos europeus, e às suas condições do pensar.

Hoje, no século XXI, a China assume papel protagonista e sofre, por diversos modos, a agressão de uma Europa, em crise. A Europa teve sua cria nos Estados Unidos da América (EUA), igualmente decadente, como todo mundo onde as finanças apátridas assumiram o poder e governam.

À presunção, da literária citação de Pascal com a qual iniciamos este artigo, acrescentaríamos a arrogância de qualquer religioso que pretende ter a verdade. E de uma verdade que não está nele, pois que se coloca como um transmissor.

Porém o pensamento ocidental é de verdades: verdades absolutas e eternas.

O pensamento chinês não decorre da maneira linear ou dialética de expor: como de um Aristóteles, ou de um Heráclito. Ele é construído como um espiral.

“Ele delimita seu objetivo, não de uma vez por todas mediante um conjunto de definições, mas descrevendo ao redor dele círculos, cada vez mais estreitos. Isso não é sinal de pensamento indeciso, mas da vontade de aprofundar o sentido, mais do que esclarecer o conceito ou o objeto do pensamento” (Anne Cheng, “História do Pensamento Chinês”, tradução do original em francês, 1997, por Gentil Avelino Titton, para Editora Vozes, Petrópolis, 2008).

Pensamento grego e chinês têm, aproximadamente, a mesma idade, construídos pelos séculos sexto e quinto antes da Era Cristã. Se estabelecermos a síntese socrática, como referência do pensamento ocidental, e Confúcio, para orientação e compreensão do chinês, este pensamento oriental é quase 100 anos anterior. Sócrates nasce após a morte daquele que trouxe a reflexão do homem sobre o próprio homem; Confúcio que, no dizer da Anne Cheng, fez “a aposta no homem”.

O pensamento chinês é o pensamento sobre as realidades, do homem, da natureza, das sociedades. Não exige a iluminação extraterrena.  Este materialismo do pensamento chinês nada tem a ver com a influência marxista, da atual política de governo. Ele é milenar e está representado na estatística que aponta 52,2% da população “sem religião” e 21,9% com “religiões tradicionais” («The Global Religious Landscape», dezembro de 2012).

Ou seja, 74,1% dos chineses não acreditam em um Deus supremo e criador de todas as coisas. A “religião” mais professada é o budismo, 18,2%, que também não crê em Deus, segue a orientação espiritual de Sidarta Gautama, o Buda, que colocava no autoconhecimento a perfeição do homem.

Em resumo: 92,3% dos chineses acreditam em sua própria capacidade e honram seus antepassados (“religiões tradicionais” conforme Carl Jung, Sigmund Freud, Max Weber e Mircea Eliade não constituem “religiões”, mas rituais).

Estes rituais de culto aos antepassados foram intensos no período da Dinastia Shang, do século XVIII a.C. ao século XI a.C., conforme pesquisas arqueológicas revelam. Uma civilização refinada, com sistema político bem elaborado, que foi destruída por invasões de guerreiros, vindos dos confins do ocidente, rudes, de nível cultural inferior aos Shang.

Porém cuidemos somente do passado mais recente. Nosso objetivo é esclarecer o “pensar”, pelo qual poderemos conhecer a eventual influência da China, no mundo do século XXI d.C.

As palavras servem para pensar e exprimir os pensamentos. A imensa riqueza do idioma chinês obriga o entendimento daquelas fundamentais para compreensão do seu pensamento.

Duas palavras dão significado ao homem, ao humano, à sociedade humana (ren). São elas a verdade (tao) e a virtude (te). Porém, nos círculos de aproximação a estes pictogramas, vamos desvendando sua compreensão.

A verdade é o caminho, na compreensão básica do pictograma, é algo que se constrói, que significa o esforço comum a todos e único meio do conhecimento. A estrada, coloca Confúcio, só chega ao fim com a morte (Analectos, livro VIII, 7).

O “te” é o céu que habita em cada um, é a virtude, a moralidade, a correção que habilita o homem a conhecer corretamente o “tao”, a verdade.

Assim, o pensamento de Confúcio nada promete, não há recompensa neste ou em outro mundo. É o homem quem alarga o “caminho”, e não o “caminho” que amplia o humano (Analectos, XV, 28). É desse modo que o “ren” é a qualidade humana.

“Quando se passeia, mesmo que a três, cada um está seguro de encontrar no outro um mestre, considerando o que há de bom para imitá-lo e de mau para corrigi-lo, e a si mesmo” (Analectos, VII, 21).

Lao Zi ou Lao Tze é personagem coevo de Confúcio, a quem se deve as “Escrituras do Caminho e da Virtude” ou “Tao Te Chíng”.

O que é governar? Lao Zi responde no Capítulo 11 do “Tao Te Chíng”: “aquele que governa seu corpo deve eliminar emoções e desejos, para que seus cinco órgãos receptores (audição, olfato, paladar, tato e visão) estejam vazios e possam, então, ser preenchidos com o novo. Aquele que governa um feudo tem capacidades limitadas, porém, ao reunir a multidão de fracos, eles o apoiarão e desse modo fortalecerão seu domínio”.

O pictograma shen (corpo) também se refere ao corpo social, a participação na sociedade.

Outra importante lição dos Analectos está na concepção instrumental da linguagem.

Citamos novamente Anne Cheng: “os pensadores chineses, que refletiram sobre a linguagem, interessaram-se mais pelo aspecto pragmático da relação entre a linguagem e seus usuários do que pelo aspecto semântico de sua relação com a realidade extralinguística”. Ou seja, não buscam verdades universais e absolutas, que privilegiam a herança aristotélica, mas o efeito sobre os comportamentos. Especialmente importante no mundo contemporâneo da comunicação eletrônica, virtual, de algoritmos.

O que foram as palavras de Xi Jin Ping, no 19º Congresso Nacional do Partido Comunista da China (PCCh), senão a consolidação do princípio da participação de todos, das bases do PCCh, na formulação das estratégias e metas para a “Governança da China”.

Deixar entrar o novo, para preencher a capacidade do Estado. Pensamento de dois mil e seiscentos anos enunciado por Lao Zi e Confúcio (Kong Fu Zi).

O que doutrina a Wikipédia, no entanto (copiado em 03/05/2023, às 15 horas, negritos nossos): “A China segue oficialmente o ateísmo de Estado. Muitos cidadãos chineses, incluindo membros do Partido Comunista da China (PCC), praticam algum tipo de religião popular chinesa. A civilização chinesa é historicamente o berço e anfitrião de uma variedade das mais duradouras tradições religioso-filosóficas do mundo. O confucionismo e o taoísmo, mais tarde unidos pelo budismo, constituem os "três ensinamentos" que moldaram a cultura chinesa”.

O leitor deste artigo já sabe que Confúcio teve existência conhecida. Lao Zi existiu, contemporâneo de Confúcio, escreveu o livro que citamos, mas sua vida não gerou o mesmo conhecimento, a ponto de se aventar a possibilidade de ser um conjunto de pensadores e não uma pessoa.

Giorgio Sinedino, sinólogo brasileiro residente em Macau, que preparou a edição que tomou o título “Dao De Jing”, tendo por autor Laozi (Editora UNESP, São Paulo, 2016), escreveu na “Introdução” a esta obra: “O paradoxo mais fundamental está em que a China ganhou ao insistir no modelo “superado” de Estado-Nação, submetendo a economia aos próprios interesses (geo)políticos e fomentado um tipo de culto à nação cujas consequências internacionais, potencialmente ominosas, ainda são ignoradas ou enjeitadas como nonsense”.

Realmente para a arrogância europeia, para o rápido fracasso do neoliberalismo, para a derrota militar dos EUA no Afeganistão, na Síria, como já ocorrera no Vietnã, e ocorrerá certamente na Ucrânia, a emergência do multilateralismo, o já se antevê para África, só pode deixar frustrados e irados os que têm a mente dominada pelas ideologias excludentes e pensamentos teístas ocidentais.

Seria extraordinária arrogância e total falta de discernimento nosso imaginar que em cinco páginas (1747 palavras) pudéssemos resumir o riquíssimo pensamento chinês.

Mas acreditamos que, em meio às inúmeras lacunas, comprovamos ser a emergência chinesa o resultado da busca pelas origens da sua cultura nacional, esta é a lição para o rumo da constituição de novo Estado Nacional, soberano, efetivamente participativo, e cidadão, que cada um deseja para seu País.

Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado, atual presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás – AEPET.

 

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