Catástrofe Humanitária no Iêmen: Unilateralismo Aumenta Violência. Entrevista com Timo Kivimäki
Esquecido pela mídia internacional, o Iêmen configura há décadas trágico palco de jogo de mesquinhos interesses estrangeiros, liderados pelos Estados Unidos e seus velhos fantoches regionais: Arábia Saudita e Israel.
No Mapa Global da Fome de 2021, o país situado na Peninsula Arábica ocupou o 115º lugar à frente apenas da Somália. Segundo a ONU e todos os organismos internacionais que analisam a alarmante situação iemenita, isto é consequência, sobretudo, da "guerra por procuração" na República do Iêmen.
Os crimes de guerra não cessam, ao mesmo tempo que os já excessivos números de vítimas apenas crescem. Mais de 150 mil pessoas morreram no país árabe desde que esta guerra teve inicio, em 2015, de acordo com a ONU.
Até o final deste ano, a guerra terá matado mais de 377 mil, direta e indiretamente. Considerando apenas fome contínua e falta de cuidados de saúde, a Guerra do Iêmen já causou mais de 227.000 mortos como resultado até agora.
Tudo isso, diante do mais completo abandono da denominada "comunidade internacional". A "superioridade moral" ocidental, de novo na história recente, na lama. Agora, o excessivo cinismo dos "guardiães" da democracia e dos direitos humanos globais com sede em Washington D.C., envolvendo os iemenitas em busca de interesses regionais e econômicos.
Na seguinte entrevista, exclusiva a Pravda.ru, o renomado cientista político finlandês Timo Kivimäki analisa, de maneira peculiarmente brilhante, como a nação médio-oriental chegou à presente catástrofe humanitária, e possíveis alternativas para uma solução.
Autor de diversos livros sobre política interacional, Kivimäki é especialista em conflitos internacionais, além de professor de Relações Internacionais e diretor de Pesquisa da Universidade de Bath, no Reino Unido.
Edu Montesanti: Como o Iêmen chegou a esta situação, e como a catástrofe que vive poderia ter sido evitada?
Timo Kivimäki: O conflito do Iêmen tem muitas razões internas, sobre as quais não sou especialista. Em geral, minha recente pesquisa mostrou que a violência organizada - conflitos, violência autoritária, terror e violência política sem envolvimento do Estado - no Oriente Médio e Norte da África (MENA na sigla em inglês, de "Middle East and North Africa"), possui raiz doméstica na fragmentação do Estado.
Isso significa que as pessoas sentem que o Estado serve a apenas alguns grupos do país, enquanto as elites políticas também usam o Estado para privilegiar seus próprios interesses étnicos, religiosos, regionais ou outros aspectos. Tal faccionalismo explica quase metade das fatalidades de violência organizada na região do MENA.
No Iêmen, e em outros lugares da região do MENA, há uma razão externa que explica como os conflitos se intensificam, uma vez que, muitas vezes, motivos internos os desencadearam. Devido a isso, grandes potências externas intervêm militarmente em certos conflitos, muitas vezes com uma agenda moral declaratória.
Muitas vezes, grandes potências saem em defesa das partes mais fracas em conflitos, e criam uma situação em que esta parte mais fraca tenha mais recursos para continuar a luta, que acabará sendo derrotada.
No Iêmen, as potências ocidentais apoiaram um “governo” que não tem legitimidade nem apoio suficientes para sequer ousar estar presente no país. Como resultado, seus oponentes precisaram do apoio militar da ditadura da Arábia Saudita que recebeu cerca de 90 por cento de suas armas dos EUA, e cerca de cinco por cento do Reino Unido.
Apoiar um frágil favorito em um conflito doméstico, muitas vezes enfraquece o Estado e o torna incapaz de oferecer serviços básicos e, mais ainda, de conter a violência criminal e política no país.
No Iêmen, o enfraquecimento do Estado também foi acelerado pelas operações militares dos EUA contra grupos terroristas, iniciadas em 2008. Quando uma potência estrangeira faz guerra em um país sem pedir permissão ao governo a cada operação, isso tende a humilhar o governo que deveria oferecer o monopólio da violência legítima dentro de seu território.
Para o Estados Unidos, a Guerra ao Terror era um projeto tão importante que não podia tolerar um governo que não aceitasse o papel militar independente americano, dentro do território do povo iemenita. Ao mesmo tempo, poucas pessoas aceitam esse papel por parte de qualquer potência estrangeira, o direito de um poder externo que decide quem deve ser morto por um ataque de drone e, portanto, não houve muita esperança de que qualquer governo iemenita fosse aceito tanto pelos EUA, quanto pelos próprios iemenitas.
Como resultado, o “governo iemenita” manteve-se, em grande parte da guerra iemenita, fora do território iemenita apoiado por um aliado americano, a Arábia Saudita, incapaz de criar um Estado que pudesse servir de instrumento do povo iemenita.
O impacto do envolvimento militar dos EUA após março de 2008 no Iêmen pode ser visto claramente no gráfico a seguir, que mostra o número de mortes mensais segundo pontos, e uma curva de tendência de escalada da violência logo após o envolvimento militar dos EUA no país.
Como o senhor vê a presença de militares estrangeiros no Iêmen, envolvendo bilhões de dólares em uma catástrofe humanitária? O senhor acredita que se trata de uma guerra por procuração dos Estados Unidos e sauditas, contra o Irã?
Acredito que há várias guerras no Iêmen, algumas internas e outras externas. Um dos elementos da guerra externa é a competição de poder entre a Arábia Saudita e o Irã, com as forças sunitas e xiitas do Iêmen. No entanto, para considerar a guerra principal como um conflito entre a Arábia Saudita, apoiada pelos EUA, e o Irã, provavelmente exageraria o papel iraniano em tudo isso.
Embora os bombardeios sauditas constituam a maior parte do violência organizada no país, o papel dos rebeldes houthis e, principalmente, o apoio que estes recebem do Irã, é muito menor. É por isso que prefiro ver esta guerra como a que a Arábia Saudita é a principal agressora em um país que não possui um Estado funcional.
Durante a campanha presidencial, Joe Biden prometeu não apoiar a Arábia Saudita no Iêmen. Logo após ter assumido o poder, o presidente Biden mudou completamente a postura justificando o apoio dos EUA com o discurso de "armas defensivas aos sauditas": “Manter o compromisso do presidente, de apoiar a defesa territorial da Arábia Saudita”, disse um porta-voz da Casa Branca. Como o senhor vê a mudança do presidente americano, e acredita tais armas servem apenas a fins defensivos como alegadas?
Isso é algo que me intriga. Durante a presidência de Nixon, muitas das ações agressivas da administração vieram do presidente enquanto a administração tentou, então, introduzir razão e contenção à formulação das políticas.
Nixon, por exemplo, ordenou um ataque nuclear contra a Coreia do Norte, algo que a burocracia de Kissinger simplesmente ignorou por um tempo até que o presidente refletiu, e acalmou-se.
Durante o novo milênio, o papel da burocracia desempenha papel oposto. Cada um dos presidentes do novo milênio conquistou a presidência através de campanhas que prometiam desmilitarizar a política externa dos EUA.
Bush e Trump queriam concentrar-se em problemas dos próprios Estados Unidos, e reduzir o intervencionismo moralista de seus antecessores, enquanto Obama e Biden prometeram acabar com os métodos de tortura de Guantánamo, e colocar em ordem o aparato militar e a inteligência dos Estados Unidos.
No entanto, todos eles acabaram aumentando os esforços militares dos Estados Unidos. Com exceção de Trump, todos iniciaram novas guerras e recuaram da retórica de paz das campanhas presidenciais. Por que desta maneira? Alguns afirmam que é o poder do capital no sistema político americano.
Mas, certamente, os enormes gastos militares que a política externa dos Estados Unidos impõe aos contribuintes corporativos, deveriam desencorajar 90 por cento dos proprietários de capital americanos em relação a essas guerras imprudentes, e às aventuras militaristas da política externa estadunidense.
O complexo militar-industrial é apenas uma pequena minoria dos proprietários de capital americano, o único que se beneficia dessa carga tributária.
No entanto, parece que o sistema obriga os presidentes, eleitos baseados em promessas de paz, a escolher uma política de guerra. Será que o sistema político seja comprado pelos traficantes de armas, pode ser que a corrupção e a atitude relaxada em relação ao “lobbying” corrupto, seja a explicação?
Sinceramente, não sei. No entanto, é intrigante por que Biden e Trump almejavam abandonar os crimes da guerra iemenita, visto que eram candidatos presidenciais e, no entanto, tomaram parte plenamente nisso tudo, uma vez eleitos.
Falando de solução, a "aplicação da lei cosmopolita", termo que o senhor aborda na pesquisa First Do Not Harm: Do Air Raids Protect Civilians?, parece o caminho correto rumo à saída para a catástrofe humanitária que enfrenta o Iêmen?
Há uma forte vontade popular contra o tipo de versão unilateral e egoísta da aplicação da lei cosmopolita, o direito que as grandes potências adquirem para si através da força. Uma vez que esse unilateralismo, como meu gráfico mostra, também tende a prejudicar as pessoas que se alega proteger, estou certo de que deve ser possível persuadir governos a não apoiá-la.
O que precisamos é de bons dados, e uma exposição das consequências dos esforços internacionais das grandes potências para decretar suas próprias interpretações de justiça. Deveríamos encorajar os governos a contar com a ONU e as instituições da ONU a fim de “executar as normas humanitárias”, poderes unilaterais não têm justificativa para isso.
Os esforços unilaterais tendem a escalar a violência como vimos no Iêmen, enquanto meu livro recente mostra que esforços por manutenção da paz pela ONU têm sido excepcionalmente bem sucedidos na redução da violência, e na resolução de problemas de crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
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Professor doutor Timi Kivimaki: [email protected]
Jornalista Edu Montesanti: [email protected]
"É impossível progredir sem mudança, e os que não mudam suas mentes não podem mudar nada", George Bernard Shaw
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