"Tempo de Problemas" na Transcaucásia (2/3)
3/10/2020, MK Bhadrakumar, Indian Punchline
A chanceler alemã, Angela Merkel, disse em Berlim, dia 2 de outubro, que a União Europeia busca "diálogo construtivo e agenda positiva" com a Turquia. Tinha acabado de retornar à capital alemã, depois de reunião de cúpula de dois dias, dos países da UE, em Bruxelas. A Alemanha desempenhou papel fundamental na cúpula, ao desviar o relacionamento UE-Turquia de um caminho de confronto para o qual se vinha encaminhando. (Veja em meu blog (ing.), EU marks distance from Indo-Pacific strategy, [UE marca distância da estratégia Indo-Pacífico].)
Merkel disse: "Tivemos discussão muito longa e detalhada sobre nossas relações com a Turquia. Concluímos que gostaríamos de entrar num diálogo construtivo com a Turquia, queremos uma agenda positiva". E acrescentou que a cúpula de Bruxelas abrira uma "janela de oportunidade" para cooperação mais estreita com Ancara.
Merkel divulgou que as negociações para alcançar cooperação mais estreita entre UE e Turquia nos próximos meses concentrar-se-ão em questões de migração, comércio, modernização da união aduaneira e regime de vistos liberalizado. Com efeito, Merkel defendeu o presidente turco Recep Erdogan em momento particularmente delicado para ele, quando há críticas crescentes na Europa às suas políticas regionais.
Em particular, um incidente desagradável envolveu recentemente as marinhas turca e francesa no Mediterrâneo Oriental. Foi incidente raro, talvez sem precedentes nas sete décadas de história da aliança ocidental, envolvendo duas potências da OTAN.
Mais uma vez, os EUA recentemente fortaleceram suas bases militares na Grécia e repetidamente pediram à Turquia moderação em suas disputas marítimas com a Grécia; e prometeram intervir política e militarmente nas tensões no Mediterrâneo Oriental.
Turquia e França apoiam lados opostos na guerra civil na Líbia, e os EUA estão alinhados com grupos militantes curdos na Síria - considerados terroristas pela Turquia. E quando o conflito eclodiu no Alto Carabaque[1] [ing. Nagorno Kharabach], a Turquia viu EUA, França e Rússia rapidamente se aproximando em formação, para repelir o forte apoio de Erdogan ao Azerbaijão, incluindo promessas de ajuda militar.
De fato, Merkel muito deliberadamente. Antes de partir para Bruxelas, Merkel dirigiu-se ao Parlamento alemão, onde se referiu a queixas contra os registros de agressão a direitos humanos pela Turquia; mas elogiou o desempenho "incrível e notável" da Turquia no acolhimento de refugiados, destacando que a Turquia está hospedando quatro milhões de refugiados.
Curiosamente, Merkel comparou, embora de longe, Grécia e Turquia. "Temos de pesar muito cuidadosamente o modo como resolver as tensões e como fortalecer nossa cooperação em assuntos de refugiados e tratamento humano aos refugiados" - disse ela. E passou a condenar o modo como a Grécia, arqui-inimiga da Turquia, está administrando o campo de migrantes em Lesvos (Grécia).
Com sarcasmo mordaz, Merkel observou, "nos últimos dias, vimos imagens horríveis do tratamento dado a refugiados. E não da Turquia, gostaria de enfatizar, mas de Lesvos (Grécia), de estado membro da UE."
Sem dúvida, a Alemanha levantou-se como amiga da Turquia, em momento em que o governo turco enfrenta crescente isolamento dentro da OTAN e da UE.
Eventos seminais
Em As Grandes Potências São Definidas por Suas Guerras, o conhecido professor americano da Escola de Governo John F. Kennedy da Universidade de Harvard, Stephen Walt, destaca que explicar a política externa de uma grande potência é questão perene para os estudiosos de política internacional; e que as grandes guerras têm efeitos poderosos e duradouros na subsequente política externa ou militar de todas as nação.
O Prof. Walt explicou que as guerras são eventos seminais dos quais decorre o comportamento subsequente das grandes nações, independentemente de seu poder relativo, tipo de regime ou liderança. Para Walt, "Aqueles que lutam nessas guerras geralmente ficam marcados pela experiência, e as lições tiradas da vitória ou derrota ficarão gravadas profundamente na memória coletiva da nação. A experiência de guerras passadas é central para a maioria das identidades nacionais (...) Se se quiser entender a política externa de uma grande potência, portanto (e provavelmente de potências menores também), bom lugar para começar é examinar são as grandes guerras que ela tenha travado."
Memória histórica cara a Berlim, sem dúvida, que os otomanos tenham sido aliados da Alemanha em duas guerras mundiais, quando o país estava irremediavelmente isolado pelas potências ocidentais.
Por outro lado, vejam Rússia e Turquia. A Rússia travou uma série de doze guerras contra o Império Otomano, entre os séculos 17 e 20 - uma das mais longas séries de conflitos militares da história europeia -, que acabou desastrosamente para os Otomanos, e levou-os ao declínio e eventual desintegração.
A Rússia frequentemente lutou contra os otomanos em épocas diferentes, muitas vezes em aliança com outras potências europeias. É importante ressaltar que essas guerras ajudaram a mostrar a ascensão da Rússia como uma potência europeia após os esforços de modernização de Pedro, o Grande, no início do século XVIII.
Na psique muçulmana turca, no entanto, a Rússia figurou como protagonista que desempenhou papel histórico no enfraquecimento do Império Otomano na Europa Central, nos Bálcãs e na Transcaucásia.
A conquista russa do Cáucaso ocorreu principalmente entre 1800 e 1864. Naquela época, o Império Russo expandiu-se para controlar a região entre o Mar Negro e o Mar Cáspio, território que hoje é a Armênia, o Azerbaijão e a Geórgia (e partes do atual Irã e Turquia), bem como a região do Norte do Cáucaso da Rússia moderna. Várias guerras foram travadas contra os governantes locais das regiões, bem como contra o Império Otomano, até que as últimas regiões foram postas sob o controle russo em 1864, com a expulsão para a Turquia de várias centenas de milhares de circassianos.
Seguiu-se então a Guerra Russo-Turca (1877-78), quando a Rússia tomou a província de Kars e o porto de Batumi no Mar Negro. Na Primeira Guerra Mundial, alinhados com a Alemanha, os otomanos empurraram a Rússia até Baku (capital do Azerbaijão), mas depois se retiraram, sem forças para avançar mais. Subsequentemente, na confusão do pós-guerra, de alguma forma conseguiram reconquistar Kars.
Basta dizer que, em 1991, após o colapso da União Soviética, quando a Transcaucásia tornou-se independente, como estados da Geórgia, Armênia e Azerbaijão, muita história sangrenta envolvendo a Rússia e a Turquia serviu de pano de fundo.
A família de Erdogan, por exemplo, veio originalmente da província de Rize na parte oriental da região do Mar Negro da Turquia (onde o presidente foi criado), que foi um local de batalhas entre os exércitos otomano e russo durante a Campanha do Cáucaso na 1ª Guerra Mundial e foi ocupada por forças russas em 1916-1918, para finalmente ser devolvida aos otomanos, sob o Tratado de Brest-Litovsk em 1918. A União Soviética devolveu Rize à Turquia em 1921.
'O passado nunca está morto'
Em meio a tudo isso, uma característica interessante do fluxo da história é que, desde os dias do Império Romano, a Transcaucásia serviu de fronteira entre Constantinopla (Istambul) e a Pérsia. As áreas mudariam de um império para outro, seus governantes teriam vários graus de independência e muitas vezes foram vassalos de um ou de outro império, dependendo do tamanho e da proximidade do exército do suserano. Por volta de 1750, a área foi dividida entre os vassalos turcos e persas. Os dois terços ocidentais eram habitados por georgianos, antigo povo cristão, e o terço oriental principalmente por azeris, muçulmanos turcos. E a Rússia, é claro, estava avançando perto do mar Negro e do Cáspio contra os impérios otomano e persa.
Naquele ensaio, o professor Walt citou frase famosa do romancista americano William Faulkner: "O passado nunca está morto. Sequer passou." De fato, para Rússia, Turquia ou Irã, os atuais desenvolvimentos na Transcaucásia fazem parte de um vasto evento coletivo que molda suas percepções de perigo e definições de heroísmo, sacrifício e até mesmo sua identidade.
Na verdade, a formação atual na situação em desenvolvimento em torno da Turquia fala por si: Alemanha expressa simpatia pela Turquia e oferece parceria aprimorada; França critica e pede sanções da UE contra a Turquia; França denuncia o envio de combatentes sírios de Ancara para Alto Carabaque; Alemanha elogia a ação da Turquia no enfrentamento da crise de refugiados que atinge a Europa; França coordena com a Rússia no mais alto nível de liderança para pressionar a Turquia sobre o Alto Carabaque; OTAN e EUA juntam-se ao apelo de Rússia e França pelo fim dos combates na Transcaucásia; Irã mantém a neutralidade e sugere esforço conjunto com Turquia e Rússia, para resolver o conflito entre Armênia e Azerbaijão.
Enquanto isso, Moscou superou a ambivalência inicial e está entrando na arena ao lado da Armênia, expressando "séria preocupação em relação às informações recebidas sobre o envolvimento em hostilidades ,de homens armados de unidades armadas ilegais do Oriente Médio" - em palavras simples, censurando o apoio da Turquia ao Azerbaijão. E o presidente Vladimir Putin ressalta que manifesta posição comum com "os presidentes dos países que co-presidem o Grupo de Minsk da OSCE" (Rússia, França e Estados Unidos). Simplificando, a "rivalidade competitiva" da Rússia com a Turquia só cresce.
Curiosamente, o presidente turco Recep Erdogan chamou abertamente a atenção para o contexto regional e geopolítico mais amplo no qual várias potências não identificadas estão manobrando e coordenam-se secretamente para cercar a Turquia. Erdogan disse dia 2 de outubro: "Se conectarmos as crises no Cáucaso, na Síria e no Mediterrâneo, vê-se que está em curso uma tentativa de cercar a Turquia".
Não é preciso muita engenhosidade para descobrir a identidade das potências estrangeiras que Erdogan tinha em mente, e que estariam tentando "cercar" a Turquia - França, Estados Unidos e Grécia (todas potências da OTAN) e Rússia, o flagelo do Império Otomano.*******
[1] Colegas da Tlaxcala Rede Internacional de Tradutores ensinam, sobre Nagorno Karabakh: Nagorno deriva do russo nagorny=montanhoso (nesse sentido, também, (território) "alto", "de altitude"; Leṙnayin em armênio; e Dağlıq Qarabağ em azeri); e Karabagh significa literalmente "jardim preto" (kara = preto, em turco, e bagh = jardim, em persa).
No Brasil, não encontramos NENHUM estudo linguístico prestável nesse campo. Seguimos então nessa tradução a toponímia definida para o português de Portugal, a qual acompanha, nas grandes linhas, a lição de Tlaxcala. Nagorno-Karabakh é traduzido ao português de Portugal como "Alto Carabaque" (CORREIA, Paulo, Outono de 2008). "Geografia do Cáucaso", pág. 10-13 (PDF). Sítio web da Direcção-Geral da Tradução da Comissão Europeia no portal da União Europeia. A Folha - Boletim da língua portuguesa nas instituições europeias (n.º 28): 11-13. ISSN 1830-7809. Consultado em 1/10/2020 [NTs].
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