A globalização e a Covid-19
Por Arthur Soffiati*
Pelos meios de comunicação, sobretudo pelas redes de televisão, as informações sobre cuidados com a higiene pessoal e as orientações para não criar pânico invadem as residências mais que o próprio novo vírus Corona. Estamos tão imersos no dia a dia da pandemia que não nos interessam conhecer as causas profundas das doenças transmissíveis. As TVs dedicam tanto tempo insistindo no controle do pânico que as pessoas acabam concluindo que deve haver algo perigoso e que mereça pânico. Outros, céticos, atribuem o novo vírus a uma conspiração chinesa ou a uma informação falsa.
Em perspectiva histórica, as epidemias ganham terreno cada vez mais amplo quanto maior for a expansão de uma civilização. A peste negra, no século XIV, veio da Ásia e provocou mortandade em massa na Europa Ocidental. O contato principal entre oriente e ocidente era, então, feito pelos muçulmanos e venezianos. Foi por eles que a bactéria causadora da peste entrou na Europa e devastou sua população. Estima-se que morreram entre 75 milhões a 200 milhões de pessoas na Europa. Com os recursos da época, é praticamente impossível um cálculo preciso.
Os micro-organismos não eram então conhecidos. A medicina se confundia com o curandeirismo. A bactéria hospedava-se no rato preto e era passada dele para humanos pela pulga. De um catolicismo ainda muito supersticioso, a população julgou que a peste era um castigo de Deus ou maldição do Demônio. Bodes expiatórios foram logo eleitos pelo povo: os judeus, as mulheres consideradas feiticeiras e os gatos. Estes quase exterminados por serem animais diabólicos, quando, na verdade, combatiam os ratos.
A peste não alcançou a América e a Austrália por motivos óbvios: os dois continentes não estavam integrados ao sistema comercial eurasiano por serem desconhecidos. Com a expansão da civilização europeia e do seu sistema econômico, doenças para as quais o organismo dos ocidentais já havia criado imunidade manifestaram-se com virulência nos povos americanos, que as desconheciam, como a varíola, a sífilis, o sarampo, a tuberculose e a simples gripe. Houve extermínio em massa causado pelo mero contato ou propositalmente. As doenças viajavam de caravela naquela época.
Com a gripe espanhola, na segunda década do século XX, a viagem do vírus passou a ser mais rápida e confortável por meio de grandes navios. Ela não nasceu na Espanha, mas foi este país o primeiro a identificá-la. Ao que tudo indica, a gripe entrou na América com o retorno dos soldados que lutaram na Primeira Guerra Mundial.
E as epidemias-pandemias foram ganhando âmbito mais dilatado na medida em que o mundo foi se ocidentalizando e se comunicando com mais rapidez. Hoje, os micro-organismos patogênicos viajam de avião. Diante da pandemia do Covid-19, destacamos alguns pontos a serem observados em caráter explicativo e válidos para qualquer pandemia.
1- Contato promíscuo com a natureza: nunca a humanidade exerceu tanta pressão sobre os ambientes naturais como atualmente, agora, combinando costumes locais com economia global. Animais que portam vírus, bactérias e fungos e que são imunes a eles estão em contato muito próximo com humanos. Alguns servem de alimento para eles, como a civeta, os morcegos e o pangolim na China e nas Filipinas. Calcula-se que cerca de um milhão de exemplares de pangolim sejam retirados de seus ambientes para servirem de caro petisco nos países do extremo oriente. Daí ser ele a espécie mais ameaçada de extinção do mundo. A esta altura, os ambientes naturais deveriam ser protegidos das ações humanas destruidoras, mas isto não acontecerá, e novas epidemias/pandemias migrarão deles para os ambientes humanos. As origens do vírus ainda não estão devidamente esclarecidas. Como na Peste Negra e na Gripe Espanhola, busca-se um bode expiatório. Os Estados Unidos atribuem à China a responsabilidade de deixar escapar um vírus de laboratório. Indo mais adiante na caracterização do culpado, a China teria liberado o vírus para que ele provocasse uma grande depressão na economia e ele ganhasse dinheiro no fornecimento de produtos básicos de saúde, como equipamentos de proteção individual e respiradores. Tudo indica, porém, que o vírus tenha vindo da natureza.
2- Grandes concentrações humanas. A contaminação de algumas pessoas favorece a contaminação de muitas pelas grandes aglomerações humanas. Tudo indica que a atual pandemia do novo Corona vírus começou numa feira livre de Wuhan, centro industrial da China com cerca de 10 milhões de habitantes.
3- Comunicações velozes. As doenças contagiosas têm um período de incubação que pode durar algum tempo para se manifestar. Numa viagem longa, as pessoas contaminadas podem manifestar a doença ainda caminhando, montadas em cavalo ou viajando de navio. Agora, com os velozes aviões, uma pessoa é contaminada na China e manifesta a doença na semana seguinte nos Estados Unidos, contaminando várias pessoas que, por sua vez, contaminarão outras, em progressão geométrica.
4-Pobreza: médicos têm aconselhado a auto quarentena para as pessoas contaminadas, mas fica difícil o auto isolamento em comunidades pobres, onde o isolamento se torna praticamente impossível. Basta ver o caso das favelas: casas encarapitadas e falta de saneamento básico.
5- Economia: a economia de mercado, criada pelo ocidente e difundida por todo o planeta cria condições favoráveis ao surgimento de doenças contagiosas e a sua expansão. Pelo menos a indústria, o comércio e os serviços necessitam de concentrações humanas para a produção e o consumo. Mas as concentrações favorecem a disseminação de doenças. A economia de mercado vive um dilema: cria concentrações humanas que facilitam a eclosão e a propagação de epidemias. Para combatê-las, as autoridades desaconselham ou proíbem as concentrações, o que leva a profundas recessões econômicas. É ilustrativo notar que os epicentros da economia capitalista mundial foram também os epicentros da pandemia. A China, a Europa Ocidental e os Estados Unidos foram os três polos. Mas devemos considerar que, nos países periféricos, os epicentros econômicos também se constituíram no epicentro da virose, como é o caso de São Paulo.
6- Envelhecimento: a indústria farmacêutica tem auferido muitos lucros com medicamentos que prolongam a vida das pessoas, mas não eliminam as fragilidades inerentes ao envelhecimento, como doenças cardíacas e respiratórias tanto quanto a queda da imunidade. Assim, elas vivem mais desde que no ambiente não estejam circulando organismos causadores de epidemias. Observamos que o maior número de óbitos ocorre entre idosos, embora estejam ocorrendo mortes entre jovens e adultos com menos de 50 anos. O vírus não hesita. Embora seja uma partícula entre o não-vivo e o vivo, uma entidade sem qualquer laivo de consciência, ele sabe muito bem como atuar, afetando o organismo humano da cabeça aos pés, e não apenas os pulmões como inicialmente se pensava. Cientistas e médicos estão aprendendo a conhecer o vírus, enquanto que este sabe o que fazer quando contamina alguém.
Arthur Soffiati é Mestre e doutor em história ambiental pela UFRJ e autor de 24 livros sobre história, globalização, ciência e literatura, além de articulista de jornais e revistas.
Foto: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Coronavirus_patients_at_the_Imam_Khomeini_Hospital_in_Tehran,_Iran_--
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