Não há nada a perder
Os ricos, os grandes negócios e os políticos indolentes não entendem que as desigualdades são as geradoras dos protestos atuais. O discurso oligárquico não quer reconhecer que as desigualdades são o terreno fértil para a violência. A pobreza não gera violência, mas é estimulada por exclusões que crescem em meio à abundância.
Por Roberto Pizarro
Santiago está queimando. Estações de metrô destruídas e dezenas de ônibus pegando fogo. É a nossa Gotham City, com piadas que se multiplicam sobre os abusos de um sistema que rouba todos nós diariamente.
É um protesto contra tudo. Contra o aumento do transporte, mas também por causa das imensas distâncias que os pobres que precisam viajar todos os dias para conseguir um emprego, e receber um salário de merda. É contra o conluio dos preços das redes de farmácias que se aproveitam dos doentes, contra as empresas da família Matte, que, sem escrúpulos, conspiram para elevar os preços até das fraldas para crianças. É contra pedágios que aumentam de preço a cada ano. É contra a agressão de empresas de eletricidade, água e telefone, com cobranças abusivas e assédio aos consumidores.
O protesto também é contra as instituições que Pinochet inventou e que permanecem intocadas. Porque as AFPs (empresas de previdência privada) e ISAPRES (planos de saúde no Chile) nos enganam o tempo todo. As AFPs oferecem o paraíso aos aposentados, mas os condenam ao inferno de uma pensão de 150 mil pesos (750 reais) por mês - em média, há quem receba muito menos que isso. As ISAPRES desprezam as idosas e as grávidas, consideradas mentirosas. Os cartões de crédito, que Sebastián Piñera promoveu quando era somente um jovem liberal, endividavam os pobres com taxas de juros altíssimas. E os bancos dão um acréscimo miserável pelo dinheiro que depositamos, e por outro lado, cobram taxas elevadas por empréstimos ao consumidor e ao pequeno empresário, obtendo lucros estratosféricos.
Assim, a indignação se acumula e o protesto é inevitável. O Coringa se cansou. Ele resistiu a queixas e golpes durante anos, até explodir e se rebelar.
Não há mais nada a perder. O salário médio dos trabalhadores no Chile é de menos de 400 mil pesos (cerca de 2 mil reais), enquanto 1% por cento dos ricos recebem 33% da renda gerada no país. O que o establishment oferece à população um sistema no qual é preferível reduzir impostos aos ricos do que oferecer uma previdência social decente para os idosos. Porque não há nada a perder quando a educação é privilegiada para os filhos dos ricos, em detrimento de uma boa educação pública para todos. Porque não há nada a perder quando os cidadãos observam que militares e policiais roubam impunemente, enquanto os grandes empresários pagam aos políticos para fazer leis a seu favor e aumentar ainda mais seus lucros.
Novamente, são os jovens que se rebelam. Porque o resto dos habitantes do país foram transformados em escravos. Os empresários os submetem com salários de fome, os obrigam a dias intermináveis %u20B%u20Be os impedem de se organizar. Eles não têm tempo ou organização para se rebelar. Portanto, aqueles que representam os oprimidos são os estudantes, eles são os jovens. Eles são os mesmos que se rebelaram em 2006 e depois em 2011 por uma educação gratuita e de qualidade. Naquele então, conseguiram a renúncia do ministro da Educação.
O atual ministro do Interior do Chile optou pela mão dura contra aqueles a quem chama de "violinistas". Incapaz de uma autocrítica pelo erro de aumentar, sem compaixão, a tarifa do transporte público, exibiu linguagem provocativa, exigindo uma repressão aberta contra os protestos sociais. Os governos pós-ditatoriais, e em particular o atual governo chileno, mostram cegueira diante das desigualdades. O governo, antes de conversar com os atacados pelo aumento das taxas, preferiu colocar os militares nas ruas, tentando apagar o fogo jogando gasolina em cima.
Os ricos, os grandes negócios e os políticos indolentes não entendem que as desigualdades são as geradoras dos protestos atuais. O discurso oligárquico não quer reconhecer que as desigualdades são o terreno fértil para a violência. A pobreza não gera violência, mas é estimulada por exclusões que crescem em meio à abundância.
Hoje é Santiago que estremece com o protesto dos jovens. Não devemos nos surpreender se isso se estender a Valparaíso ou Concepción, e outras cidades do país. Porque o crescimento econômico e a modernização, que tanto os ricos quanto seus economistas gostam de enaltecer, não são garantia de estabilidade social, mas não estão ao alcance de todos. Esses protestos sociais não serão contornados com violência ou crime estatal, com um número maior de prisões. Somente políticas de inclusão e redução de desigualdades permitirão que jovens e idosos, mulheres e crianças, trabalhadores e empresários se reconheçam na sociedade chilena, para que todos a aceitem como sua.
O ressentimento e o protesto tornam-se inevitáveis quando a modernidade dos shoppings, supermercados e estradas estão disponíveis dentro de um quadro de desigualdades de renda, saúde, educação e exclusão cultural. É quando o Coringa e a Gotham City se mostram reais, inevitavelmente.
*Publicado originalmente em El Desconcierto | Tradução de Victor Farinelli
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Nao-ha-nada-a-perder/6/45527
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