Por Ignácio Ramonet - Le Monde Diplomatique (*)
Chávez não havia mandado disparar contra os manifestantes como alguns canais de televisão disseram de forma mentirosa (refiro-me às trucagens que a emissora Venevisión difundiu mundialmente). As provas de que ocorreu o contrário existem e mostram que os primeiros tiros foram dados contra os partidários de Chávez, vindos de franco-atiradores misturados aos manifestantes golpistas e fazendo quatro mortos.
Este gravíssimo golpe contra a democracia, com seu aspecto caricatural (uma junta militar presidida pelo chefe de uma associação patronal), fez a América Latina retroceder, durante 48 horas, a uma era política que pensávamos superada, os anos de pinochetismo e da repressão. Foi uma terrível advertência para todos os dirigentes latino-americanos que quiserem se opor ao modelo neoliberal. Essa advertência se dirige, em primeiro lugar, a Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do Partido dos Trabalhadores à presidência do Brasil, que as pesquisas de intenção de voto colocam como favorito para as eleições de outubro.
Toda essa conspiração se desenvolveu enquanto eu estava em Caracas, uma semana antes dela ser efetivada. A atmosfera era de extrema tensão, sentia-se que o golpe viria.
A Venezuela possui uma estrutura econômica escandalosamente desigual. 70% da população vive na pobreza. Durante quarenta anos, dois partidos, a Ação Democrática e o Copei, repartiram o poder e a riqueza nacional. Os níveis de corrupção alcançaram dimensões gigantescas.
Percorríamos à noite as ruas de Caracas e Hugo Chávez me dizia que a Venezuela havia recebido, de 1960 até 1998, o equivalente a quinze Planos Marshall em venda de petróleo. "Com um único Plano Marshall - me dizia Chávez - pode se reconstruir toda a Europa destruída pela Segunda Guerra Mundial. Com quinze Planos Marshall, só conseguimos que certos corruptos conquistassem algumas das maiores fortunas do mundo, enquanto a maioria da população vive na miséria".
Esse sistema de corrupção, combatido por Chávez, acabou de ser derrubado em 1998. Os partidos AD e Copei foram rejeitados e desapareceram. Chávez foi eleito presidente com um programa de transformação social e com o propósito de fazer da Venezuela um país mais justo e menos desigual. Alguns pensaram que, como tantos outros, uma vez no poder, Chávez se esqueceria de suas promessas e tudo seguiria igual. Mas esse comandante, de origem humilde, admirador dos grandes lutadores da liberdade na América Latina, estava decidido a não decepcionar seus eleitores, aqueles que viam nele a última esperança para sair da pobreza, da falta de educação e da humilhação. "A luta pela justiça, a luta pela igualdade e a luta pela liberdade - me dizia Chávez - alguns chamam socialismo, outros chamam cristianismo, nós chamamos de bolivarismo."
Seu governo lançou toda uma série de reformas sociais: escolas nos bairros esquecidos, realizações em favor dos indígenas, microcréditos para as pequenas empresas, lei de terras em favor dos camponeses sem terra, melhoras da infra-estrutura no interior do país etc. "Estamos diminuindo o desemprego", contava-me Chávez. "Criamos mais de 450 mil novos postos de trabalho. Nos últimos anos, a Venezuela subiu quatro posições no Índice de Desenvolvimento Humano. O número de crianças escolarizadas aumentou em 25%. Mais de 1,5 milhão de crianças que não iam à escola já estão integradas e recebem roupa, comida, material e merenda. A mortalidade infantil diminuiu. Estamos construindo mais de 135 mil moradias para famílias pobres. Estamos repartindo as terras aos camponeses sem terra. Criamos um Banco da Mulher que concede microcréditos. No ano de 2001, a Venezuela foi um dos países com maior crescimento no continente, cerca de 3%... Estamos tirando o país da estagnação e do atraso".
À medida que essas reformas entraram em prática, muitos dos que apoiaram Chávez deixaram de apoiá-lo. Tratavam-no como o "caudilho", chamavam-no de autocrata e essa liberdade de crítica jamais havia existido antes. Ninguém foi preso por crimes de opinião. Mas a minúscula classe rica e a classe média alta, essencialmente brancas, viam com pavor a perspectiva de ver subirem na escala social os negros e os mestiços que aqui, como em toda a América Latina, ocupam os lugares mais inferiores da sociedade. "Existe um racismo incrível em nossa sociedade", me dizia Chávez. "Chamam a mim de El Mono, ou O Negro, não suportam que alguém como eu tenha sido eleito presidente".
Assim se chegou à situação de 11 de abril. Uma situação de confrontação de classe contra classe. Por um lado, o presidente Chávez, apoiado por uma parte majoritária do povo comum, por outro, uma aliança neo-conservadora, a burguesia que ocupava as ruas do bairro rico com panelas, apoiada pela associação patronal, os meios de comunicação ferozmente hostis, mentindo de forma descomunal, inventando rumores e calúnias, falseando as evidências, e a camada aristocrática dos trabalhadores (do setor do petróleo), mobilizados pela CTV, a central sindical considerada a mais corrupta da América Latina.
Essa aliança reacionária declarou uma guerra sem quartel ao presidente Chávez, com o apoio de alguns meios internacionais (como, por exemplo, o canal CNN em Espanhol) e com o apoio dissimulado dos Estados Unidos. Washington, com sua vontade de dominar o mundo depois do 11 de setembro, não podia suportar, como declarou Colin Powell semanas atrás, a independência diplomática da Venezuela, seu papel na Opep, sua falta de apoio ao Plano Colômbia, sua atitude militante contra a globalização neoliberal.
Faz alguns meses, a administração Bush nomeou como subsecretário de Estado para Assuntos Americanos Otto Reich, antigo colaborador de Reagan, colaborador no caso Irã-contras, especialista na organização de sabotagens e de atentados, mestre na arte da contra-revolução. Otto Reich foi o arquiteto oculto da conspiração contra Chávez.
Essas más intenções dos Estados Unidos, na véspera do golpe, Hugo Chávez já percebia com enorme lucidez. "A greve geral de 9 de abril é só uma etapa da grande ofensiva norte-americana contra mim e contra a revolução bolivariana. E seguiram inventando uma série de coisas. Não me admiraria que amanhã inventem que escondo Bin Laden na Venezuela. Não estranharia que mostrassem algum documento com datas e provas de que Bin Laden e um grupo de terroristas da Al-Qaeda estão nas montanhas da Venezuela. Preparam um golpe e, se fracassam, preparam um atentado.
(*) Ignácio Ramonet é jornalista, sociólogo e editor do Le Monde Diplomatique. Texto publicado em 20/02/2008 na Revista Fórum. O texto foi republicado no Fazendo Media por conta dos 6 anos do golpe midiático contra o governo Chávez, que se deu em 11 de abril de 2002.
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