Edmilson Costa*
Para compreendermos a sociedade em que vivemos atualmente e as condições de vida da população em geral, e dos trabalhadores em particular, é fundamental deciframos as encruzilhadas históricas de nosso passado relativamente recente e entendermos as raízes estruturais que forjaram o Brasil do século XXI. Supreendentemente, poucas pessoas imaginam que a maior parte dos problemas que a sociedade brasileira enfrenta hoje são decorrentes da maior derrota que as forças populares sofreram na história moderna com o golpe de 1964. A instauração de um novo modelo econômico e social, a partir da deposição do presidente João Goulart, semeou os fundamentos da desigualdade do Brasil atual.
É imperativo contextualizar a dinâmica da luta social e política, o papel dos movimentos sociais e populares, das forças democráticas, além dos intelectuais e militares nacionalistas, bem como o comportamento das forças conservadoras, da burguesia, da igreja e do imperialismo no Brasil, para entendermos dinâmica da luta de classes no início dos anos 60. Afinal, por trás da polarização daquele período, convergiam interesses poderosíssimos tanto do ponto de vista econômico quanto geopolíticos, posto que vivíamos naquela época a mais intensa disputa de interesses entre burguesia e proletariado no Brasil, além de uma luta surda entre o sistema imperialista e o bloco soviético.
A possibilidade de uma transformação política profunda em um País de dimensões continentais como o Brasil, onde as classes dominantes sempre procuraram afastar as massas populares das decisões econômicas e políticas, representava não só uma ameaça para as classes dominantes locais, mas também para os Estados Unidos, temerosos de perder sua influência na América Latina, uma vez que já tinham perdido Cuba para o bloco soviético e não poderia conceber um País dessas dimensões se incorporar ao bloco dos seus principais inimigos. Eles também suspeitavam que uma virada de mesa do Brasil levaria outros países da América Latina para o mesmo caminho. Esse era o temor não só da burguesia brasileira mas, especialmente, dos Estados Unidos. Vejamos a conjuntura daquele período.
No início da década de 60 estava em jogo dois projetos radicalmente divergentes: as reformas de base, que favoreciam os setores populares, e o projeto conservador, ligado ao capital internacional. As reformas de base buscavam a construção de um projeto de crescimento econômico com distribuição de renda e a incorporação das massas populares no desenvolvimento do País, mediante um conjunto de reformas que pretendiam mudar a estrutura econômica, social e política do País, tais como a reforma agrária, a reforma econômica, a reforma eleitoral, a reforma administrativa, a reforma educacional, entre outras.
O projeto conservador tinha como objetivos o estreitamento das relações com o capital estrangeiro, reformas econômicas e monetárias que fortalecesse o poder das empresas, redução do poder dos sindicatos e reformas das leis salariais, uma reforma agrária que facilitasse os projetos de construção de grandes empresas agropecuárias, além das costumeiras palavras de ordem clássicas da direita como a redução do papel do Estado na economia, denúncias da iminência de uma república sindicalista e o tradicional fantasma do comunismo.[1]
A disputa entre os dois projetos marcou um dos maiores quadros de confronto e polarização política e ideológica na sociedade brasileira. De um lado, apoiavam as reformas de base o movimento sindical urbano, o movimento liderado pelas Ligas Camponesas, o movimento estudantil, setores das forças armadas, intelectuais e artistas. O outro projeto era apoiado pelos setores empresariais ligados ao capital estrangeiro, pela maioria igreja católica, pelos latifundiários e setores conservadores das camadas medias urbanas, todos movidos pelo medo do comunismo.
À medida em que o debate se desenvolvia na sociedade, as reformas de base ganhavam mais adesões, principalmente porque o presidente da República, ao vencer o plebiscito em janeiro de 1963, intensificou seu discurso em favor das reformas. As pesquisas da época indicavam que a absoluta maioria da população apoiava o movimento pelas reformas e os setores organizados do movimento social e político exigiam a imediata implementação das reformas, através de grandes manifestações tanto nas cidades quanto no campo. Enquanto isso, a direita, que estava sendo vencida no debate político e perdendo cada vez mais apoio entre a população, intensificou a conspiração nos quartéis, entre o empresariado e setores religiosos, com o apoio político e financeiro da embaixada dos Estados Unidos.
Três episódios simbólicos marcaram o clima de polarização e os últimos dias do governo João Goulart. Primeiro, no dia 13 de março de 1964 foi realizado um grande comício na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, com dezenas de milhares de participantes onde o presidente prometeu enviar logo ao Congresso o projeto das reformas. Segundo, enquanto os soldados, cabos e marinheiros realizavam assembleia no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio reivindicando seus direitos, os chefes militares mandaram prendê-los, mas os soldados indicados para realizar essa tarefa aderiram ao movimento, criando uma grave crise militar. Terceiro, a direita e a igreja em São Paulo mobilizaram dezenas de milhares de pessoas na chamada Marcha da Família com Deus, pela Liberdade e Contra o Comunismo mostrando também a força da direita no principal Estado do País.
O desfecho desse processo foi o golpe de 1964, realizado com apoio de toda a burguesia brasileira, da maior parte da imprensa e dos Estados Unidos, que enviou às costas do Brasil uma frota de navios de guerra, porta-aviões, além de cargueiros trazendo petróleo e munições para apoiar os golpistas, caso houvesse resistência contra o golpe por parte dos militares nacionalistas, que comandavam várias tropas e regimentos em diversas regiões do País, das forças populares ou mesmo diante uma guerra civil, numa operação que ficou conhecida com o nome de Brother Sam. Surpreendentemente, o novo regime se consolidou rapidamente e não foi necessária uma intervenção dos Estados Unidos simplesmente porque não houve resistência. As novas autoridades suprimiram as liberdades públicas, cassaram, prenderam e mataram milhares de oposicionistas e implantaram um novo modelo econômico, baseado no receituário ortodoxo e subordinado aos Estados Unidos.
Quais os fundamentos do novo modelo econômico e a filosofia do novo regime? Os seus principais teóricos formularam os fundamentos econômicos, sociais e políticos em um congresso realizado em 1963, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, ironicamente denominado Congresso para as Reformas de Base, onde foram elaboradas um conjunto de reformas, em cerca de 10 tomos e duas mil páginas, que iriam montar o alicerce do futuro regime. A relação entre esse congresso e o golpe pode ser definida no fato de que os principais líderes do congresso assumiram posteriormente, com a vitória do golpe, o comando das principais áreas da política econômica e social do governo, bem como a formulação das diretrizes no interior do aparelho do Estado.
A filosofia do novo modelo econômico e social tinha como objetivo modernizar, acelerar e racionalizar o processo de crescimento econômico, mediante um conjunto de reformas tais como a reforma bancária e do mercado de capitais, que reestruturou o sistema financeiro nacional, criou o Banco Central e impôs a fusão dos bancos brasileiros, de forma a que pudessem cumprir as necessidades do novo modelo econômico; a reforma tributária, que racionalizou o sistema, aumentou e centralizou as receitas no governo federal; a reforma administrativa, que unificou o sistema de saúde no INPS (Instituto Nacional de Previdência Social); criou o BNH (Banco Nacional de Habitação); e reforma salarial, que impôs o arrocho salarial ao longo dos 21 anos de ditadura e construiu no Brasil uma economia de baixos salários.
O objetivo dessas reformas tinham como prioridade o crescimento acelerado do País, a estabilização da economia, mediante uma luta permanente contra a inflação; a abertura da economia para o capital estrangeiro, para o qual o governo editou o chamado Acordo Para a Garantia dos Investimentos, visando estimular os investimentos estrangeiros; a modernização da produção no campo, através da implantação dos grandes projetos agropecuários, que posteriormente se transformou no que hoje se denomina popularmente de agronegócio; formação de grandes conglomerados bancários que pudessem estar à altura do novo modelo econômico; e uma política de confisco salarial que se tornou o fundamento do processo de acumulação predatória no Brasil.
Em outras palavras, essas medidas, a grande maioria efetivadas entre 1964-1967 no governo do general Castelo Branco, construíram as bases do modelo econômico que vigorou durante as mais de duas décadas de ditadura e que ainda hoje, em maior ou menor grau, se verifica no Brasil. Os fundamentos teóricos da economia, a política salarial e as instituições formadas naquele período, com poucas modificações, são muito semelhantes ao que continuou sendo efetivado nos governos democráticos posteriores ao final do ciclo de governo militares.
Como resultado dessas reformas ocorreu um período de intenso crescimento da economia, especialmente no período do chamado “milagre econômico”, quando as taxas de crescimento do produto alcançaram em média mais de 11% ao ano; intensificou-se a industrialização, especialmente na região Sudeste, o que posteriormente colocaria o Brasil entre as dez maiores economias do mundo; e realizou-se melhorias significativas na infraestrutura, em termos de estradas, portos e telecomunicações, de forma a suportar a dinâmica do crescimento econômico. A contrapartida dessa conjuntura foi uma brutal concentração de renda e a construção de uma economia de baixos salários.
A esse processo denominamos em nossa tese de doutorado de acumulação predatória, um tipo particular de acumulação baseada na superexploração do trabalho, onde a burguesia paga constantemente os trabalhadores abaixo do valor da força de trabalho. Isso significa que o modelo econômico estruturado no período Castelo Brasil e desenvolvido nos outros governos do ciclo militar configurou no Brasil um padrão de reprodução e acumulação de capital que produziu uma sociedade perversamente desigual, tendo como eixo central uma política permanente de arrocho salarial, que configurou o código genético da sociedade atual.
Como se desenvolveu esse processo do ponto de vista dos trabalhadores? Antes de tudo é necessário ressaltar que esses objetivos não poderiam ser alcançados num governo de plenas liberdades democráticas. Por isso a ditadura usou todo o seu poder militar e a truculência institucional para implementar a ferro e fogo a sua política econômica e social. Governou a partir de atos institucionais e decretos autoritários, repressão ao movimento sindical e aos trabalhadores e à juventude, além de cassações de representantes populares, prisões, torturas e assassinatos de opositores políticos.
Em termos políticos a ditadura cassou 595 representantes políticos, entre governadores, prefeitos e parlamentares e 1.530 funcionários públicos. Nas Forças Armadas o expurgo foi muito grande: no exército mais de 460 militares entre oficiais, sargentos e soldados; na aeronáutica 496 soldados, cabos e oficiais; na marinha 679 militares; na polícia militar, 92. Outras punições, entre prisões e suspensões atingiram 4.867 militares. O expurgo na burocracia civil atingiu 1.530 pessoas e na burocracia militar 1.228. A perseguição ao movimento sindical também foi devastadora: entre 1964 e 1979 ocorreram 1.202 intervenções nos sindicatos; 78 destituições de diretorias sindicais; além de 31 interferência em eleições sindicais, com anulação de pleitos e proibição de candidaturas e 254 dissoluções de entidades sindicais.[2]
Além disso, o governo editou um conjunto de leis salariais que se constituíram no fundamento do modelo da ditadura e que buscavam atingir os seguintes objetivos: a) baratear o preço da força de trabalho. Para tanto, o governo avocou para o Estado o poder exclusivo para fixar o preço da mão de obra, de forma a evitar qualquer surpresa que pudesse perturbar os objetivos macroeconômicos da estabilização e da acumulação; b) implementou uma legislação repressiva capaz de afastar da vida sindical os opositores do novo regime, bem como evitar que sindicalistas do período anterior voltassem a controlar as entidades sindicais; c) editou uma lei de greve que na prática impedia qualquer paralisação do trabalho; c) aprimorou a legislação trabalhista para disciplinar e cooptar dirigentes sindicais.
Entre as medidas específicas tomadas pela ditadura para disciplinar a força de trabalho estava o fim da estabilidade no emprego e sua substituição pelo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), o que quebrou a garantia do emprego, facilitou a rotatividade no trabalho e o cálculo empresarial e, consequentemente a queda nos salários. O governo definiu ainda que os reajustes salariais deveriam ser feitos pela média dos últimos 24 meses (posteriormente reduziu para os últimos 12 meses) e nem as empresas ou a Justiça do Trabalho poderiam conceder reajuste superior à queles definidos pelo governo.
Essas medidas foram fundamentais tanto para a aceleração do crescimento econômico nos moldes requeridos pela ditadura quanto para a construção de um modelo econômico que se constituiu no código genético de praticamente todos os problemas que a sociedade brasileira enfrenta até hoje. Um estudo comparativo entre as 40 maiores economias industrializadas sobre as taxas de lucros dos empresários e a situação salarial dos trabalhadores, realizados por João Furtado, constatou que o Brasil é uma espécie de paraíso empresarial, onde a burguesia obtém as maiores taxas de lucro do mundo industrializado, enquanto a remuneração dos trabalhadores é uma das mais baixos dos países referenciados na pesquisa.[3]
Enquanto o País crescia a taxas elevadas, os trabalhadores eram submetidos ao arrocho salarial, organizado e articulado pelo Estado, com pagamento dos salários abaixo do valor da força de trabalho. Como esses trabalhadores sobreviviam nessa situação? Quais as formas que encontraram para compensar essa dramática conjuntura? A pesquisa que desenvolvemos na tese identificou duas formas principais:
1) As longas jornadas de trabalho, com a institucionalização das horas extras, que passaram na prática a fazer parte dos salários dos trabalhadores e que atingiam a média de 12 horas diárias;
2) A segunda forma foi a incorporação de novos membros da família ao mercado de trabalho, processo viabilizado pelo crescimento econômico e aumento do emprego.
No entanto, o governo desenvolveu uma abertura do leque salarial para os funcionários do capital, os diretores, chefes de produção, chefes administrativos, técnicos em geral e chefes de pessoal dos escritórios. Em consequência das funções que exerciam e pela própria necessidade de um trabalho especializado com o aumento da industrialização, esses funcionários passaram a ter os salários bastante diferenciados da grande maioria dos trabalhadores. Para o regime, isso era funcional, pois contribuiu para formar uma base social expressiva de apoio ao governo e um mercado consumidor para os bens duráveis e de luxo.
Em outros termos, nos 21 anos de ditadura o governo implantou institucionalmente o arrocho salarial, mediante uma política de Estado, visando depreciar o valor o preço da força de trabalho, de forma a que se consumasse de forma acelerada o crescimento econômico e a acumulação do capital, cujo resultado foi uma economia de baixos salários, uma sociedade perversamente desigual, com enorme concentração de renda e subordinação da economia brasileira aos centros capitalistas mundiais.
Como a história tem comprovado, a luta de classe não tira férias mesmo nos momentos mais difíceis para os trabalhadores. Como o proletariado brasileiro reagiu ao arrocho salarial?
Antes de analisarmos a resistência dos trabalhadores no período da ditadura, um fato chama muito a atenção: como os golpistas venceram tão facilmente, praticamente sem nenhuma resistência, se as forças populares e nacionalistas tinham apoio no movimento sindical, no movimento camponês e estudantil e vários comandantes de tropas no exército, aeronáutica e marinha eram nacionalistas, estavam de acordo com as reformas de base e muitos desses comandantes militavam no Partido Comunista Brasileiro (PCB)?
As principais lideranças do projeto de mudanças, especialmente o PCB, não compreenderam a gravidade da crise que o País enfrentava naquele período e, portanto, não prepararam para uma reação organizada ao movimento golpista. Não era segredo para ninguém que a direita estava preparando o golpe e que estava em articulação com setores militares e com a embaixada dos Estados Unidos. O presidente João Goulart tem grande responsabilidade nesse processo, pois não ordenou nenhuma forma de resistência, apesar dos apelos do governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, para que o presidente resistisse ao golpe e lhe nomeasse ministro do governo para enfrentar a quartelada. A resposta de Goulart foi a de que não queria derramamento de sangue e partiu para o exílio.
Mas o PCB tem uma responsabilidade especial porque, com sua longa experiência na luta de classes, não se organizou para resistir ao golpe mesmo sabendo que os golpistas estavam tramando a ruptura institucional. Um partido revolucionário não pode vacilar num momento tão grave da luta de classes, afinal o PCB tinha militantes em vários comandos de tropas do exército, da aeronáutica e da marinha, todos em condições de reprimir a coluna golpista de Mourão Filho, que saiu de Minas Gerais, e ainda estava a caminho do Rio de Janeiro antes da deposição do presidente. Um partido comunista não pode ser derrotado sem esboçar nenhuma resistência, principalmente quando possuía as condições políticas, orgânicas e militares para se contrapor ao golpe. Para o movimento sindical e popular, o golpe significou a mais profunda e extensa derrota em toda a nossa história moderna, chegando inclusive a mudar a correlação de forças na geopolítica internacional.
Mesmo diante da repressão e da legislação draconiana, muitos sindicatos protestaram contra o arrocho salarial, [4] ocorreram muitas lutas e mesmo algumas greves durante a ditadura. Em 1965 entraram em greve durante três semanas os sapateiros do Rio de Janeiro e também foram registradas paralisações em São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Durante os oito meses após o primeiro de abril ocorreram cerca de 20/30 greves segundo cálculos do historiador soviético, Boris Koval.[5]
Em 1965, sob a liderança dos comunistas, uma das mais expressivas greves foi a dos metalúrgicos do Rio de Janeiro. Para Koval, o total de grevistas nesse ano foi 100 mil trabalhadores. Em 1966, o descontentamento do movimento operário aumentou expressivamente, com a realização de muitas lutas operárias: cerca de 400 entidades sindicais assinaram um manifesto contra o arrocho salarial e contra a extinção da estabilidade no emprego. Na Baixada Santista, os portuários, em 1966/67, realizaram operação tartaruga, o que fez o governo baixar uma legislação específica, implantando nos portos uma lei de guerra.[6]
Ainda no final de 1966 ocorreu uma grande greve dos plantadores de cana-de-açúcar no Nordeste e na indústria metalúrgica de São Paulo. Ainda segundo os cálculos de Koval, em 1966/67, o número de grevistas ultrapassou 300 mil. Evidentemente que que essas lutas eram muito menores que no período anterior, mas o simples fato de estarem ocorrendo se constituíam um feito extraordinário, diante da grande repressão realizada pela ditadura. Ainda durante os anos 66/67 se registra também uma reanimação do movimento estudantil, mediante manifestações de rua contra o governo.
Esse novo clima influenciou o curso do movimento operário, com a realização de duas greves históricas, em Contagem (MG) e Osasco (SP), que se transformaram nas maiores greves contra a ditadura, mas a partir daí começou o refluxo do movimento operário. Na greve de Contagem os operários da Belgo Mineira tomaram os diretores reféns e se declararam em greve. Posteriormente o movimento se espalhou pelas indústrias de toda a cidade. Pego de surpresa, o governo concedeu um abono de 10% para os operários grevistas, posteriormente estendido a todos trabalhadores, e os operários encerraram o movimento.
Mas a maior das greves realizadas em 1968 ocorreu em Osasco, onde uma direção jovem, eleita pela oposição sindical, baseada no trabalho de base no interior das empresas, comandou o movimento grevista. Essas lideranças iniciaram a greve com elevado nível de organização dos trabalhadores, que parou praticamente todas as indústrias da região, sendo que as grandes fábricas foram ocupadas pelos trabalhadores. O governo agiu de forma truculenta: invadiu as fábricas com tropas do Exército e ocupou militarmente a cidade com tropas de choques e brucutus e montou barreiras para controlar a entrada e saída da população da cidade.
No segundo dia de greve o governo decretou a intervenção no Sindicato dos Metalúrgicos e prendeu todos os dirigentes sindicais. O interventor foi até o sindicato com um pelotão da Força Pública mas não conseguiu assumir, diante da resistência dos trabalhadores. Somente na madrugada a polícia invadiu o sindicato e prendeu 80 trabalhadores que se encontravam lá dentro. A partir daí o movimento entrou em refluxo e a greve começou a ser derrotada, mas significou a mais alta expressão da luta operária naquele período.
Mesmo com todo o heroísmo, essas greves não tinham condições de mudar a política econômica e salarial do regime, pois grande parte dos sindicatos estavam sob intervenção, a maioria dos dirigentes sindicais combativos estavam na prisão e no exílio, a repressão era permanente, ou seja, as condições objetivas para a luta foram mudadas radicalmente.
Ainda em 1968, outras formas de lutas eram realizadas contra a ditadura, particularmente pelo movimento estudantil, mediante manifestações de ruas em todo o País. A maior dessas manifestações ocorreu a partir da morte do estudante Edson Luís de Lima Souto, no restaurante do Calabouço. Indignados com o assassinato, os estudantes realizaram grandes manifestações por todo o País, sendo que a maior delas, conhecida como a passeata dos 100 mil, realizada no Rio de Janeiro, realizada com ampla presença inclusive de intelectuais e artistas. Posteriormente, o governo editou o AI-5, o que representou um golpe dentro do golpe e significou o período mais duro da ditadura, conhecido como anos de chumbo.
A partir daí o movimento operário e popular entrou num grande refluxo, mas ainda continuaram ocorrendo lutas, muito embora em outras condições. Nos anos de chumbo os trabalhadores resistiram de forma modesta, como a recusa em fazer horas-extras, operações tartaruga, falta organizada ao trabalho, pequenas greves por atraso de pagamento. Eram formas criativas de luta operária diante da brutal repressão desencadeada pela ditadura contra os trabalhadores e todos que lutavam por liberdades democráticas.
Vou relatar dois fatos históricos que, apesar de terem sido publicados academicamente há cerca de quase 30 anos, até agora ainda não foram reconhecidos pela história. Trata-se do trabalho paciente e perigoso realizado pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) para organizar os trabalhadores, sintetizado num documento denominado Plano de Construção do Trabalho nas Grandes Empresas, operado inicialmente no centro dinâmico industrial do ABC e em alguns outros Estados. O Objetivo era criar uma rede de organizações operárias clandestinas no interior das fábricas, especialmente nas grandes empresas, de forma a reconstruir o movimento operário a partir das bases.
A experiência pioneira desse plano foi realizada inicialmente na Volkswagen, na região do ABC, entre o final dos 60 e início dos anos 70, e depois se espalhou para as outras grandes empresas da região. Segundo Lucio Bellentani, militante do PCB no período e secretário político do Comitê de Empresa da Volks, a organização de base no interior da Volks foi realizada ao longo de vários anos, com um trabalho de formiguinha, que envolvia organização e formação dos operários que aderiam à organização do PCB. Esse trabalho foi desenvolvido com êxito e só foi desbaratado completamente com a grande repressão que atingiu o Partido nos anos 1974/75, conforme depoimento de Bellentani, falecido recentemente:
“Entrei para a Volks em 1964 e lá já havia alguns companheiros comunistas, mas não existia um trabalho organizado. Fomos discutindo com os operários e construindo uma organização mais efetiva, procurando inserir o partido na classe operária. Nosso trabalho foi crescendo e terminou servindo de exemplo para que o próprio Partido elaborasse uma linha política de construção nas grandes empresas. Para Bellentani, dessa forma o PCB dava uma resposta a todas as outras forças políticas do acerto da linha política de concentrar o trabalho na classe operária, construída no VI Congresso”.[7]
O trabalho realizado pelos comunistas no ABC obteve grande êxito: “Em 1970/71 chagamos a ter como militantes, pagando regularmente suas mensalidades, cerca de 150 companheiros só na Volks. Todos recebiam a Voz Operária e em alguns momentos chegamos a distribuir 300 jornais na fábrica. Além disso, tínhamos organizações de base em outras grandes empresas como a Willys, Motores Perkins, Chrysler, entre outras, além de companheiros em Santo André e São Caetano. Um fato curioso desse período é que nossa organização na Volks era maior do que o Partido no município”, conta Bellentani.
Essa organização totalmente clandestina, assistida diretamente pelo Comitê Central, era formada por células estanques, onde os militantes de uma célula não conheciam aqueles que militavam em outras células no interior da empresa. “Cada célula tinha um responsável que fazia a ligação com a instância superior. A direção do Comitê de Empresa era composta por seis companheiros, cada um responsável por uma área de atuação, como formação, agitação, etc. Tínhamos um jornal legal, o Zé Povinho, que tirava mensalmente milhares de exemplares que eram distribuídos no interior da Volks e em outras fábricas da região. Não tinha evento operário na região em que não estivéssemos presentes”, relata o dirigente comunista.
Um exemplo da organização dos comunistas naqueles anos iniciais da década de 70 pode ser avaliado pelo seguinte fato: “Em 1971 organizamos uma chapa de oposição ao sindicato, em aliança com a Ação Popular (AP), dissidentes da própria diretoria e outras correntes contra o Paulo Vidal, que era o presidente do Sindicato e a quem chamávamos de dedo-duro. A chapa foi derrotada por cerca de mil votos, não só porque naquele período era difícil enfrentar a máquina sindical, como também em função da fraude. Mas as eleições demonstraram tanto a nossa força quanto a força da oposição sindical”, diz o líder sindical.
Esse trabalho começou a ser desmantelado em 1972 quando a repressão passou a suspeitar que existia alguma coisa organizada na Volks, uma vez que num dia em o ditador Garrastazu Medici foi inaugurar a fabricação do milionésimo automóvel a empresa foi panfleta com denúncia contra a ditadura e um dos panfletos ficou rodando na esteira enquanto Médici falava. “Cerca de um mês depois um companheiro foi preso e não suportou as torturas e entregou vários companheiros que conhecia na empresa, inclusive o próprio Bellentani e a direção do Partido na empresa”, conta Bellentani
Todos esses camaradas foram presos e torturados durante várias semanas. Bellentani começou a apanhar ainda dentro da própria empresa. Mas como a organização era compartimentada, parte da militância foi preservada. Somente com a Operação Radar, nos anos 1974/75, a repressão conseguiu desbaratar completamente o trabalho do PCB entre os operários do ABC. Possivelmente, a história do movimento sindical seria outra se a ditadura não tivesse tido êxito na repressão ao PCB. Golbery sabia quem era seu inimigo estratégico.
O segundo episódio, resultado do trabalho de construção do partido nas grandes empresas, ocorreu em São Paulo. Naquele período a CMTC (Companhia Metropolitana de Transporte Coletivo) era uma empresa municipal e a maior nos transportes de São Paulo. O Partido construiu uma expressiva organização no interior dessa empresa e, a partir daí, conseguiu ganhar o Sindicato dos Motoristas e ter muita influência na Federação dos Trabalhadores dos Transportes no Estado. A história oficial costuma contar que a primeira grande greve após 1968 foi realizada na Scania, em São Bernardo do Campo, mas isso não corresponde à verdade. A primeira grande greve contra a ditadura ocorreu no transporte de São Paulo, em 1974, dirigida pelos comunistas. Como foi realizada essa greve que a história oficial até agora não reconheceu?
O movimento grevista foi desencadeado contra um aumento de salário definido pelo Tribunal Regional do Trabalho que não correspondia às reivindicações dos trabalhadores. Já existia grande insatisfação dos motoristas e cobradores, tanto que ocorreu uma pequena greve na Empresa Alto Pari, articulado pelos cobradores. O movimento cessou em virtude de o governo prometer dar um aumento de salários para os trabalhadores e também pela repressão policial. Como o governo não cumpriu a promessa, os trabalhadores resolveram decretar a greve.
O governo fez tudo para impedir o êxito do movimento, como relatou o jornal clandestino do PCB, Voz Operária. “Desde o dia anterior os agentes do DOPS procuraram motoristas e cobradores em suas casas a fim de ameaçá-los e levá-los ao trabalho. Todos os motoristas da polícia e da prefeitura foram mobilizados para conduzir os ônibus. Em muitos casos isso não deu certo, pois a maioria não conhecia o itinerário das linhas de ônibus. A polícia também prendeu dezenas de motoristas e cobradores que considerava os cabeças da greve”.[8]
Eis o relato da greve, segundo Voz Operária, cujo redator parecia estar muito próximo da organização da greve; “No dia 2 de maio a cidade de São Paulo foi parcialmente paralisada por uma greve de motoristas e cobradores das empresas particulares. Esse movimento teve profunda repercussão, pois milhares de operários não puderam ir ao trabalho. A greve foi total nas seguintes empresas: Alto do Pari, 11 linhas; Empresa Paulista de ônibus, 5 linhas; Viação Urbana Penha, 5 linha; Empresa São Miguel, 10 linhas; Companhia Auxiliar, 9 linhas; Viação Itaquera, 2 linhas, Vila Carrão, 9 linhas; Empresa Penha-São Miguel, 328 ônibus fiaram estacionados na garagem”.[9]
Segundo Paulo Mariano, diretor da CMTC, a greve atingiu uma área de 360 quilômetros, onde vivem dois milhões de pessoas. “Pelos cálculos da CMTC só na Zona Leste deixaram de circular 1.282 ônibus. Segundo um assessor da Federação das Indústrias, o movimento grevista representou uma queda razoável na produtividade de centenas empresas. Milhares de estudantes não puderam ir às aulas ... O Parque D. Pedro, onde se localiza o ponto final do ônibus da Zona Leste, foi ocupado militarmente pela cavalaria e pela Polícia militar, a fim de impedir protestos populares”, relata a Voz Operária. Os jornais, rádios e TVs foram proibidos de noticiar a greve, mas a BBC de Londres noticiou o movimento.
Posteriormente, todos os dirigentes sindicais foram presos e o trabalho que o partido tinha entre os motoristas foi desbaratado com as prisões de 1974/75. Mas a realização de uma greve com essa dimensão em pleno período mais duro da ditadura representou uma façanha heroica que deve ser incorporada à história das grandes lutas do proletariado brasileiro. Esquecer essa grande greve dirigida pelos comunistas naquele período é um preconceito e um sectarismo que não faz justiça à verdade histórica.
A luta de classes não é um jogo de pôquer, na luta de classes não pode ter blefe. As forças que apoiavam as reformas de base tinham a ilusão, muito propagandeada naquele período, de que existia um dispositivo militar para barrar qualquer tentativa de golpe. Prestes teria dito nos dias próximos ao golpe que se a direita levantasse a cabeça teria a cabeça cortada. Todo isso se transformou num conto de fadas com o golpe de 1964. Um grupo de militares mal armados marchou do interior de Minas até o Rio de Janeiro e não encontro nenhuma resistência ao longo dessa marcha. Bastaria o lançamento de algumas bombas lançadas pela aviação legalista para deter o golpe, mas nada aconteceu. Os militares direitistas até poderiam tentar novamente outro golpe como correu no Chile, mas as forças populares e os militares legalistas já estariam em alerta e organizados contra a ofensiva golpista. O golpe não teria sido um passeio como foi!
Mesmo que o imperialismo tenha articulado forças para apoiar os golpistas, isso não justifica a passividade com que os comunistas se comportaram em 1964. Um partido revolucionário, que está disposto a tomar o poder, deve estar preparado para qualquer situação da luta de classes, principalmente se reúne condições objetivas para realizar essa tarefa. Se não age dessa forma comete um grave erro e causa enorme prejuízo ao proletariado. Por não ter compreendido a situação da luta social na primeira metade dos anos 60, não elaborou uma estratégia para enfrentar os golpistas e, dessa forma, tem responsabilidade sobre o desfecho do que aconteceu em março de 1964. Portanto, essa é uma lição que deve ser apreendida pelos novos dirigentes, de forma a que, caso se apresenta uma situação semelhante, o partido não seja pego novamente de surpresa.
O golpe de 1964 mudou a correlação de forças a nível internacional e alterou a geopolítica mundial, tanto que o subsecretário de Estado para assuntos interamericanos dos Estados Unidos, Thomas Mann, em telefonema para Lyndon Johnson, afirmou que o golpe foi a coisa mais importante que ocorreu no hemisfério. Realmente, para o imperialismo estadunidense foi uma vitória estratégica, pois a partir do golpe no Brasil ocorreu golpe na Indonésia, no qual foram mortos mais de 750 mil comunistas e simpatizantes, e posteriormente ocorreu o ciclo golpista na maioria dos países da América Latina, com as consequências dramáticos que reverberam ainda hoje. Portanto, deve-se ficar sempre em alerta com relação às tramas dos Estados Unidos, principalmente agora que o imperialismo está em crise e declínio hegemônico em todo o mundo.
A ditadura construiu um modelo econômico perversamente desigual, com uma política econômica e social, implementada para realizar um processo de acumulação predatória, baseado na depreciação do preço da mão de obra, mediante um permanente arrocho salarial, o que se transformou numa espécie de código genético da estrutura socioeconômica brasileira. Os sucessivos governos democráticos que substituíram a ditadura, em maior o menor grau, mantiveram esse modelo econômico e as instituições constituídas no período da ditadura continuam até hoje. Portanto, os problemas que a população brasileira enfrenta atualmente, especialmente os trabalhadores, tem sua origem naquele período e só uma mudança de fundo poderá alterar o padrão de reprodução e acumulação do capital que vigora no País.
Entre as forças que apoiavam as reformas de base, especialmente entre o PCB, existia a ilusão de que vários setores da burguesia brasileira eram nacionalistas, tinham contradições com o imperialismo e poderiam desempenhar um papel positivo na conjuntura caso as reformas fossem vencedoras. Era realmente apenas uma ilusão, pois toda a burguesia brasileira apoiou entusiasticamente o golpe, bem como as medidas antipopulares e entreguistas realizadas pelo novo governo. Isso mais uma vez veio comprovar que a burguesia brasileira, desde sua formação, sempre esteve ligada ao capital internacional. Isso se tornou ainda mais claro com o processo de internacionalização da produção e do capital. Por isso, os setores da esquerda que teimam em apostar em alianças com a burguesia estão não apenas repetindo um erro crasso, mas principalmente cavando a sua própria sepultura política.
Por último, é importante rememorarmos as lutas anônimas realizadas nos períodos mais difíceis da ditadura porque organizar os trabalhadores, realizar uma greve ou lutar contra a ditadura naquele período significava colocar em risco a própria vida. Nesse sentido, reverenciar os trabalhos desenvolvidos para a construção do Partido nas grandes empresas no início dos anos 70, tendo como símbolo a figura de Lúcio Machado Bellentani, ou a greve dos motoristas e cobradores em 1974, nos anos de chumbo, é uma tarefa que não pode ser esquecido por esta e pelas novas gerações.
Edmilson Costa é secretário-geral do PCB
[1] As reformas de base e o projeto conservador podem ser melhor observados em nossa tese de doutorado no Instituto de Economia da Unicamp, denominado A política salarial no Brasil, 21 anos de arrocho salarial e acumulação predatória, defendida em 1996.
[2] Moreira Alves. M. H. Estado e oposição do Brasil, 1964-1984. Rio de Janeiro: Vozes, 1984.
[3] Furtado. J. Participação dos salários no produto indústria: uma comparação internacional. São Paulo: Instituto de Economia da Unicamp, 1988.
[4] Um estudo mais pormenorizado das greves no período pode ser encontrado em Costa, E. A política salarial no Brasil. São Paulo: Boitempo, 1997. Em um dos capítulos desse trabalho realizo um mapeamento das greves no período da ditadura, a partir dos jornais das organizações clandestinas que atuavam no Brasil na época.
[5] Koval, B. História do proletariado brasileiro – 1857-1967. São Paulo: Alfa-ômega,
[6] Koval, op. Cit.
[7] Depoimento de Lúcio Bellentani ao autor.
[8] Voz Operária, órgão oficial do PCB. Número 112, junho de 1974.
[9] Voz Operária, op. Cit.
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