Crepúsculo do Ídolo

Vitor Augusto Faria Pereira[i]

Enfim, o início do fim? Juízes e membros do Ministério Público Federal desmoralizados e acusados de práticas que passarão para a história, na hipérbole cínica de um ministro da Suprema Corte brasileira, como sendo o “pau de arara do século XXI”.          

A assim denominada “Operação Lava Jato” de fato constituiu um fenômeno político-jurídico antológico. Assim como os grandes acontecimentos históricos, sem nenhum juízo de valor, nada mais foi como antes após as ações da autocompreendida República de Curitiba. O mais fascinante é que mesmo sem parir novidades na corriqueira atuação a margem da dignidade humana do aparato punitivo estatal, alguns anos depois de seu apogeu, com a descoberta do “modus operandi” empregado sob a chancelaria de Sergio Moro, a força tarefa lavajatista conseguiu escandalizar os juristas garantistas do país. Mas por que tanta indignação?

 Talvez nossos nobres juristas tenham se esquecido que medidas de exceção, arbitrariedades, messianismo, parcialidade e o “in dubio pro societate” sempre foram práticas comuns no sistema penal brasileiro. A diferença verificada, de fato, foi o objeto sobre o qual recaiu o furor do Judiciário nacional. Na Operação Lava Jato os corpos afligidos pelos dispositivos jurídicos foram os de Doleiros, Empreiteiros, Bilionários e Políticos muito bem experimentados de Brasília. Talvez neste ponto resida uma explicação plausível para a comoção dos insignes operadores do Direito, como os ilustres membros do Grupo Prerrogativas.

Estes corpos afligidos pela autofagia burguesa desconheciam a punição estatal, ou pelo menos, até então, possuíam as condições socioeconômicas para abster-se de tomar conhecimento empírico acerca do modelo arcaico do aparato punitivo do Estado brasileiro. Punimos desvios sociais e condutas antijurídicas exatamente como fazíamos há séculos atrás. Contudo, esta punição sempre foi cirurgicamente direcionada aos corpos marginalizados do mercado de trabalho e consumo, o que não causava grandes preocupações. 

É notório que a personalidade do agente como critério objetivo de análise na proferição de sentenças sempre foi uma realidade concreta e desabonadora para aqueles que praticam pequenos crimes contra o patrimônio ou atuam no pujante mercado varejista do tráfico de drogas nas metrópoles do país. Sob estes corpos recaem, desde muito antes da Operação Lava Jato, as circunstâncias judiciais subjetivistas expressas ao art. 59 do Código Penal do Brasil, principalmente a circunstância que diz respeito a já mencionada “personalidade do agente”, usada como critério, sem parâmetros quantitativos positivados em lei, para um eventual aumento da pena base em abstrato a ser imputada a um sujeitado pelo direito. Ou seja, o Presidente Lula definitivamente não foi o primeiro a ser vítima dos semideuses da justiça, tal como, “lawfare” e “fishing expedition” são conceitos vazios perto da realidade das varas criminais Brasil afora. 

É claro que jurisconsultos do âmbito do Direito Penal contra-argumentarão que a análise da circunstância judicial “personalidade do agente” leva em conta critérios rigorosos que fogem dos esteriótipos e preconceitos de toda a sorte, argumento tipico destes profissionais que possuem até a capacidade de acessar a “previsibilidade subjetiva” de um criminoso. Nosso compilado de leis penais visa atribuir aos juízes de Direito a capacidade, sobre-humana, de ter acesso, em tese, até aos “motivos” os quais levaram um indivíduo a praticar uma conduta delituosa, além de garanti-los o dom de determinar o que seria um motivo “fútil ou torpe” e de valorar a “conduta social” de um réu sem nenhuma fundamentação filosófica, sociológica ou econômica. Ou seja, a falta de rigor delimitativo da interpretação dos juízes acerca das leis penais fez com que os membros do nosso judiciário atuassem não só como carrascos punitivistas, mas sim como carrascos punitivistas imbuídos de poderes sobrenaturais.

Embora o conceito de luta de classes esteja convenientemente fora de moda, insta ressaltar que o Poder Judiciário é formado pela pequena burguesia nacional. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômico Aplicada, a média salarial dos magistrados e servidores do Judiciário no Brasil em 2019 era de R$12.115,00. Portanto, pequeno burgueses que escapam por um fio da condição de tomarem transporte coletivo superlotado diariamente e de ver seus filhos chorarem por falta de pão, porque tiveram a oportunidade e tempo de decorarem códigos de lei e repeti-los em uma prova de concurso público, não possuem condições cognitivas para compreender os fatos geradores dos crimes que causam o maior número de prisões no país, quem dirá de valorar as condutas dos que praticam tais crimes.

Em palestra ministrada recentemente no auditório da Ordem dos Advogados do Brasil, subseção Maringá, o professor, criminólogo e advogado Marco Alexandre de Souza Serra explicitou, com maestria, o legado maldito deixado pela Operação Lava Jato ao sistema jurídico nacional, demonstrando cabalmente que a docência e a advocacia de fato não são profissões adequadas para covardes. Afinal, falar em Lava Jato em algumas partes do país ainda é um ato de coragem. Mesmo anos após sua apoteose, não obstante a atual degradação da imagem do maringaense que dirigiu a força tarefa da Operação Lava Jato, ainda é arriscado tecer críticas em terras maringaenses ao ex-juiz, ex-superministro, ex-bolsonarista, ex-exemplo moral e ex-herói nacional Sergio Moro.

Incontestavelmente há um legado maldito. Basta uma rápida análise do cenário nacional para encontrarmos milhares de membros do estamento judiciário advogando em favor de medidas de exceção incompatíveis ao Estado Democrático de Direito previsto na Constituição Federal. Todavia, o ponto que o presente texto pretende levantar é que estes infames operadores do direito sempre estiveram à espreita, melindrosos de se mostrarem a luz do dia - é verdade - porém, já vagavam pelos corredores de escritórios, instituições de ensino superior e gabinetes a muito tempo antes do início da operação Lava Jato em março de 2014.

Embora a análise de que o lavajatismo contaminou o mundo jurídico seja valida, a grande maldição a ser combatida está fora do destinto círculo social do Judiciário. Afinal, juristas vivem em sua ideologia particular, creem em seus mitos sobre a igualdade perante a lei, liberdade e razão; já estão perdidos. O grande combate, digno de ser travado, está em meio ao povo. Como explicar para os Joões, Pedros, Marias, Anas e Josés, que acordam 5 horas da manhã para a humilhação diária mediante contrato de trabalho e nunca ouviram falar dos princípios do Direito, tão bem defendidos por Ronald Dworkin, que tudo o que foi feito no âmbito da operação Lava Jato foi prejudicial ao país? Nesta pergunta reside o termo “krisis”, ou seja, decisão entre vida e morte. Vida ou morte para a esperança de derrotar o grupo que a tanto atrasa nosso país. É um momento de decisão, pois, pode-se, de uma vez por todas, enterrar os protagonistas da novela curitibana e todos os seus sectários, mas para isso é preciso convencer quem realmente interessa, o povo. 

O real legado maldito está na crise econômica que a 13ª Vara de Curitiba inconsequentemente nos lançou. O verdadeiro legado maldito foi a quebra da Indústria Mecânica Pesada, Petroquimica e de Construção, desenvolvidas com anos de maciço investimento público e destruída pela vaidade de um mero juiz de piso. Objetivamente, o ponto é que o ultraje a ser explicitado não é a lesão ao devido processo legal ou aos princípios da ampla defesa e do contraditório, tudo isso são abstrações e ficções jurídicas e já foram incontestavelmente demonstradas ao longo dos últimos anos. A lesão ao bom direito não é nada frente aos estragos gerados pelos Governos que vieram como fruto da Lava Jato e das reformas que condenaram o nosso povo à morte sem aposentadoria e ao perverso processo de precarização do trabalho. O legado maldito lavajatista para os brasileiros não foi a midiatica e inescrupulosa condução coercitiva em 4 de março de 2016 determinada pelo ex-juiz politico, ou o powerpoint infantil feito pelo também ex-procurador cristão de Curitiba. Há de ser dito que o derradeiro legado maldito foi a mais profunda e duradoura queda do nível de atividade econômica desde o término da Segunda Guerra Mundial. 

Explicar o porquê de a prisão de poderosos ter sido prejudicial ao Brasil é complexo e perigoso. Embora imprescindível à democracia, não há tempo a ser perdido descrevendo nulidades processuais fora de simpósios acadêmicos e salas de aula. Defender que processos devem ser anulados devido a ilegalidades pode até cativar advogados legalistas e intelectuais progressistas, porém, não convence o povo.

A defesa do devido processo legal, embora necessária e democraticamente essencial, para as massas significa defender a impunidade. Precisamos aprender a calibrar o discurso para demonstrar que fenômenos como a Lava Jato podem até fazer com que poderosos eventualmente cortem na própria carne, transmitindo a falsa sensação de que todos são passíveis de punição judicial, mas não promovem mudanças concretas. Mudam-se os reis e se mantêm a espada.

 


 
[i] Acadêmico de Direto na Faculdade Maringá; membro e secretário do Grupo de Pesquisa Constitucionalismo, Desenvolvimentismo e Autoritarismo no Brasil; e-mail: [email protected].

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Author`s name Vitor Pereira