As jornadas de junho, dez anos depois: a esfinge de 2013 e as perspectivas da luta social no Brasil

Edmilson Costa*

Os acontecimentos de junho de 2013 continuam sendo um fenômeno paradigmático na sociedade brasileira e tanto os estudiosos, analistas políticos em geral quanto as forças de esquerda em particular até agora não encontraram um denominador comum para explicar a emergência das manifestações populares e o desfecho dramático desse processo alguns anos depois. Como todas as revoltas espontâneas, muitas vezes emergem por motivos aparentemente simplórios, muito embora os elementos factuais sejam apenas a fagulha que veio detonar o processo de queima da pradaria. Geralmente, essas rebeliões populares liberam uma enorme intensidade de energia que se desdobra no curso da conjuntura da luta de classes e cujo desfecho tanto pode ser canalizado pelas forças progressistas ou revolucionárias quanto pela direita. 

A primeira constatação que podemos fazer é o fato de que as grandes manifestações, que envolveram cerca de 600 cidades no País e milhões de manifestantes, representaram uma enorme surpresa para todas as forças políticas do País. A segunda constatação é que foi um movimento que emergiu com elevado caráter de espontaneidade, sem que nenhuma força política possa reivindicar sua construção ou direção. Terceiro, as pautas oriundas das manifestações visavam claramente a melhoria dos serviços públicos e das condições de vida da população, especialmente a população periférica. Quarto, os protestos condensavam um processo de insatisfação que vinha se gestando há bastante tempo contra o sistema econômico e político brasileiro. Quinto, o desfecho desse movimento, alguns anos depois, que resultou no fortalecimento da extrema-direita, no golpe e na eleição de Bolsonaro, não tem relação com ímpeto inicial das manifestações.

Como elemento mais de fundo não podemos esquecer que as manifestações de junho de 2013 ocorreram em meio a três fenômenos básicos: a) após a crise sistêmica global de 2008, que abalou todas as estruturas do sistema de dominação capitalista e que até hoje os gestores do capital não encontraram uma fórmula para retomar o crescimento econômico e a estabilidade da conjuntura anterior; b) as manifestações ocorreram ao final de um longo ciclo de luta sociais a partir de 1978, processo dirigido fundamentalmente pelo Partido dos Trabalhadores (PT), e cujo desfecho ocorreu com o impeachment da presidente Dilma Rousseff; c) o transformismo do PT, de um partido combativo, que liderou grandes jornadas de luta dos trabalhadores e que aos poucos foi se amoldando à ordem até se transformar em partido da ordem mediante a busca da institucionalização da luta de classes, cooptação dos movimentos populares e sociais, apassivamento e despolitização da população em geral, especialmente da juventude.

O quadro anterior a 2013

Só poderemos compreender 2013 se verificarmos qual era o quadro da conjuntura nesse período, de forma a que possamos avaliar a origem, o desenvolvimento e o desfecho dessa extraordinária jornada de lutas.[1] Qual era exatamente a conjuntura do período das jornadas de junho? Para o governo e sua poderosa máquina de propaganda o País vivia uma espécie de conto de fadas com a eleição de Lula. O Bolsa Família, programa de distribuição direta de recursos para os mais pobres, retirara 40 milhões da pobreza absoluta e se mantinha como exemplo internacional de política social; outros tantos milhões, dizia-se, eram incorporados às camadas médias, resultado do crescimento econômico e do aumento extraordinário do emprego; o salário mínimo vinha obtendo ganhos crescentes, acima da inflação, pela primeira vez em muitos anos; além do fato de que o Brasil se destacava no cenário internacional, livrando o País das garras do Fundo Monetário Internacional e se posicionando como um player global ao participar dos BRICs.

Como se poderia explicar as manifestações daquela ordem e com tamanha radicalização no momento em que o País estava em condições tão excepcionais? Isso só pode ser explicado se verificarmos que essa conjuntura otimista representava apenas a aparência da realidade. As várias décadas de políticas neoliberais, não revogadas pelo governo petista, (que continuou mantendo o tripé macroeconômico dessa política)[2] representaram uma ofensiva brutal contra os direitos, salários e garantias sociais dos trabalhadores, redução da intervenção do Estado na economia e apropriação cada vez maior de parcelas do fundo público, cujo resultado se refletiu de maneira dramática na piora das condições de vida dos trabalhadores e da população em geral.

Essas décadas neoliberais deterioraram praticamente todos os serviços públicos, que já possuíam elevado grau de precariedade. Por exemplo, a mobilidade urbana nas grandes metrópoles, representada especialmente pelos transportes coletivos superlotados (ônibus, trens e metrôs) se transformou num caos cotidiano com os trabalhadores levando cerca de três/quatro horas para ir e voltar do trabalho; a saúde pública, cada vez mais privatizada por dentro do SUS, se tornou ainda mais precária, com filas intermináveis e pacientes postos em macas no chão nos hospitais públicos; a educação, em função da falta de verbas, relegara aos filhos dos trabalhadores um ensino cada vez mais de baixa qualidade, cuja repercussão se expressava no mercado de trabalho; a falta de moradia, que levou  vastos contingentes da população a viver em favelas e habitações precárias nas periferias das grandes cidades; e a violência policial exercida diariamente contra a juventude pobre e preta das periferias.

Enquanto isso, o grande capital nacional e internacional e o agronegócio nadavam em dinheiro e obtinham lucros cada vez maiores, fato que era enfatizado pelo próprio presidente, que as vezes se queixava em relação ao fato de que esses setores o criticavam mesmo ganhando tanto. As políticas governamentais fortaleciam, através do BNDEs, processos de fusões e aquisições de grandes grupos econômicos a juros reais próximos a zero, buscando construir as chamadas “campeãs nacionais”; os banqueiros nunca ganharam tanto dinheiro com as taxas de juros elevadas e a cobrança de tarifas de seus clientes; além disso, o agronegócio se transformou na menina dos olhos do governo, mediante também vasto financiamento governamental, mesmo sem produzir preferencialmente para o mercado interno, enquanto a reforma agrária era esquecida e líderes camponeses, religiosos e indígenas assassinados. Além disso, as denúncias de corrupção corroíam a administração governamental.

Ainda dentro dessa aparente realidade paralela, é fundamental constatar que os milhões de empregos criados pelo governo Lula não poderiam ser caracterizados como bons empregos, em função dos baixos salários. Estudos realizados por Pochmann revelam o seguinte: “Do total líquido de 21 milhões de postos de trabalho criados na primeira década do século XXI, 94,8% foram (contratados, EC) com rendimentos de até um 1,5 salário mínimo mensal.”[3] Um salário mínimo e meio para quem vive nas grandes metrópoles do País pode ser considerado um salário muito baixo, uma vez que um trabalhador com essa remuneração é obrigado a levar uma vida precária. Ou seja, na vitrine mais expressiva exposta pelo governo Lula a realidade era muito diferente da fantasia vendida pelo governo

Em outras palavras, enquanto o governo difundia um mundo cor de rosa em relação à conjuntura brasileira, a realidade sentida na pratica pela grande maioria da população, especialmente pela juventude estudantil e trabalhadora, era outra muito diferente. Ora, num ambiente de caos da mobilidade urbana, na indignidade da saúde pública, na falta de moradia e nos baixos salários, apesar do aumento do emprego, e na violência cotidiana contra a juventude preta e pobre das periferias, a explosão de indignação desse caldeirão social escandalosamente desigual mais dia menos dia iria se manifestar com a radicalidade própria dos explorados e oprimidos, afinal as classes dominantes ainda não conseguiram nenhuma receita para abolir a luta de classes.

É bem verdade que todas as forças sociais e políticas brasileiras foram pegas de surpresa pelas manifestações de junho de 2013. Mas alguns sinais de insatisfação já eram emitidos pela população e mesmo pelos trabalhadores. Quando o governo anunciou que o Brasil iria sediar a Copa do Mundo em 2014 e que seriam construídos 12 estádios suntuosos em vários Estados, com gastos de bilhões de reais, começou um movimento de protesto, especialmente nos Estados que sediariam a copa. Mesmo considerado o País do futebol, os manifestantes realizaram vários protestos de ruas sob o argumento de que, se o governo tinha dinheiro para construir grandes estádios, porque negava verbas para a melhoria dos serviços públicos? 

Além dos protestos contra a copa do mundo, os movimentos sociais também intensificavam a luta pela moradia, ocupando prédios e terrenos para construção de casas populares. Um dos episódios marcantes da luta pela moradia foi o episódio conhecido como “massacre de Pinheirinho”, quando dois mil soldados da Polícia Militar, auxiliados pela Guarda Municipal de São José dos Campos, invadiram a ocupação e, com enorme truculência, desalojaram 1.800 família que viviam pacificamente no local há mais de oito anos. Esse episódio ganhou repercussão nacional e internacional em função da brutalidade com que as forças da repressão atuaram contra a população que vivia naquele bairro. No Norte do País os trabalhadores dos canteiros de obras da usina hidrelétrica de Jirau, Santo Antônio e Belo Monte se levantaram, quebraram as instalações e queimaram ônibus protestando contra as péssimas condições de trabalho.

Mesmo entre os trabalhadores com carteira assinada, desenvolvia-se também um aumento acentuado do movimento grevista. Por exemplo, em 2003, quando Lula assumiu, ocorreram 340 greves, com 15.805 horas paradas. Nos últimos três anos antes de 2013, as greves aumentaram de maneira acentuada. Em 2010 ocorreram 446 greves, com 44.910 horas paradas; em 2011, 554 greves, com 63.331 horas paradas; e em 2012 ocorreu um aumento acentuado: 873 greves (300 delas no setor industrial), com 86.858 horas paradas. Vale ressaltar que essas greves envolviam categorias de peso como metalúrgicos, bancários, professores, funcionários públicos (tabela 1). Ou seja, sinais não faltaram em relação à insatisfação popular.

Tabela 1 - Balanço das greves
 
e horas paradas (2003-2012)
 
Ano Número de greves Horas paradas
2003  340                       15.805
2004  302                        23.851
2005  299                        19.738
2006  320                        24.703
2007  316                        30.632
2008  411                         24.681
2009  518                          34.730
2010  446                          44910
2011  554                          63.331
2012  873                          86.858
      Fonte: Dieese. Balanço das greves.
 

As consequências do transformismo do PT 

Do ponto de vista político há um aspecto muito relevante para ser analisado. As manifestações surpreenderam a todos, especialmente ao PT, que até então se imaginava o proprietário das lutas sociais pelo seu passado, mas naquele momento já não possuía mais nem a liderança nem a disposição para a luta porque foi se amoldando á ordem num processo contínuo que levou essa organização a desfigurar-se completamente e contribuir para o apassivamento e despolitização de vastas parcelas dos lutadores sociais que emergiram no final dos 70 e início dos anos 80, bem como daqueles que se incorporaram ao partido nos anos posteriores. Rever essa trajetória pode contribuir para aclarar muitas das questões sobre as manifestações de 2013 e porque aquele movimento não se transformou num poderoso instrumento para mudar a correlação de forças entre a esquerda e as classes dominantes no Brasil.

O processo de transformismo do PT tem sua origem na própria trajetória do partido. Formado por lideranças operárias emergentes no processo de ascensão das lutas grevista no final dos anos 70 e início dos anos 80, esses líderes nunca buscaram a formação na ideologia do proletariado e Lula costumava dizer que nunca tinha lido um livro inteiro. Enquanto o movimento social estava em ascensão, o PT parecia realmente um instrumento de defesa dos trabalhadores, mas com o refluxo das lutas sociais, buscaram outras formas de atuar na conjuntura, privilegiando a luta institucional, particularmente as eleições. À medida em que foi galgando cargos nas administrações municipais e estaduais e no Parlamento, foi se adaptando à ordem e às formas de vida nos gabinetes institucionais e na burocracia sindical e adaptando o discurso político visando aumentar de qualquer forma sua influência institucional.

Dessa maneira, passaram a reproduzir na ação institucional os mesmos vícios das classes dominantes, buscando construir uma máquina eleitoral para se contrapor aos partidos tradicionais. Nessa marcha, valia tudo para alcançar o poder, mesmo que se envolvesse com a corrupção para comprar partidos e parlamentares conservadores para garantir a governabilidade. Isso se tornou norma geral com a eleição do presidente Lula à presidente da República e, posteriormente, com o escândalo do mensalão. Imaginavam-se espertos o suficiente para tramar com a direita na lama e sair limpo desse processo. Foi um erro grave, pois ao longo da história a esquerda sempre construiu uma aura de honestidade, reconhecida pelos próprios inimigos. Mas essa crise roubou da esquerda em geral, e não somente do PT, um patrimônio de retidão ético construído há várias décadas. Em outras palavras, o transformismo do PT passou a se expressar no abandono de suas bandeiras históricas iniciais, na troca do trabalho militante pelo dinheiro fácil das grandes empresas, pelo marketing eleitoral e as alianças com a burguesia.

Em termos práticos, o PT no poder procurou ainda institucionalizar a luta de classes e buscar a paz social para não assustar seus novos aliados burgueses.  Desenvolveu um processo de cooptação, apassivamento e despolitização dos movimentos sociais e populares e de vastos setores da juventude e suas entidades, buscando como eixo estratégico de sua política transferir as manifestações populares nas ruas e as greves nos locais de trabalho para as estruturas institucionais. Renderam-se à boa vida e aos encantos da burguesia, desligaram-se das bases e, por isso mesmo, quando as massas se levantaram em 2013 já não reconheciam o PT como sua liderança e nem o PT tinha legitimidade para liderar qualquer levante social. 

Pelo contrário, o longo período de apassivamento e despolitização cobrou um preço alto não só para o próprio PT mas também para toda a esquerda. A prova disso é que a direita e seus meios de comunicação se aproveitaram habilmente dessa insatisfação contra o governo e passaram a estimular os manifestantes a condenar as bandeiras vermelhas e os partidos políticos em geral nas manifestações como se todos fossem farinha do mesmo saco. Em outros termos, o PT teve grande responsabilidade no processo de hostilização dos manifestantes aos partidos políticos e às bandeiras vermelhas durante as jornadas de junho, pois se não existisse base real para a insatisfação popular a direita não teria tido força para disputar as ruas com a esquerda, que ao longo da história sempre tiveram as ruas como um dos seus locais preferidos para exercer o direito de manifestar seus protestos.

As jornadas de junho

Foi nessa conjuntura que governos em vários Estados anunciaram o aumento de R$ 0,20 centavos nas passagens dos transportes públicos. Em tempos normais um aumento dessa ordem passaria quase despercebido pela população, mas em conjunturas como a do Brasil daquela época provocaram fenômenos sociais pouco esperados pela maioria das pessoas. Os vinte centavos na verdade foram apenas a fagulha que incendiou uma pradaria já cheia de indignação contra as precárias condições de vida da população. Poderia ter sido qualquer outro motivo, afinal as revoltas espontâneas emergem sem pedir licença para ninguém e representam a insatisfação popular acumulada ao largo de um longo período da vida de um País. 

Como nenhuma força política tinha papel ativo na preparação desse levante social, as massas se manifestaram da maneira que puderam, com seus métodos improvisados, suas contradições, suas formas e bandeiras de luta. Como todas as lutas espontâneas,  resultantes da indignação popular, ninguém tem o direito de cobrar daqueles milhões de manifestantes ações semelhantes às realizadas pela esquerda organizada e muito menos imaginar que aqueles manifestantes serviram de massa de manobra para os fascistas. Lutas sociais, levantes populares espontâneos ocorrem em função das condições objetivas gestadas no interior da sociedade e o curso dessas lutas e o seu desfecho é disputado tanto pela esquerda quanto pela direita.

As manifestações de junho (especialmente em São Paulo) seguiram o padrão histórico das revoltas populares. As manifestações iniciais, realizadas dia seis de junho, chamadas pelo Movimento Passe Livre, de São Paulo, reuniu apenas cinco mil manifestantes, com forte presença da juventude e de forças de esquerda. A segunda manifestação, dois dias depois, reuniu o mesmo número de militantes com a mesma composição política. Já na terceira manifestação, dia 11 de junho, o número de manifestantes saltou para 12 mil. Houve repressão e cerca de 20 manifestantes foram presos. A manifestação seguinte, dia 13, reuniu 20 mil manifestantes, e o governo resolveu acabar com o movimento autorizando uma repressão brutal, com milhares policiais, carros blindados,  tropa de choque, balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e a prisão de cerca de 230 manifestantes.[4]

 

Ao contrário do que o governo imaginava, a repressão gerou uma grande indignação na sociedade e os meios de comunicação passaram a divulgar a manifestação e condenar a repressão, mesmo porque muitos jornalistas foram atingidos pela polícia. Diante da repercussão negativa, o governo resolveu recuar e permitir uma nova manifestação, realizada em 17 de junho. Essa manifestação reuniu mais de 250 mil pessoas em São Paulo e no Rio de Janeiro um milhão de manifestantes ocuparam várias ruas da cidade, assim como em cerca de 600 cidades de várias regiões do País, transformando-se num gigantesco comovimento de caráter nacional envolvendo muitos milhões de pessoas e assustando as classes dominantes. 

 

Dois dias depois, os governos estaduais e municipais, diante da incapacidade de derrotar o movimento, resolveram ceder e cancelar o aumento dos transportes. Mas a partir daí as manifestações já tinham ganhado outro caráter, com a incorporação de pautas nacionais, com palavras de ordem como saúde e educação padrão Fifa, protestos contra a corrução, contra os gastos da Copa do Mundo e uma infinidade de temas que estavam represados e que emergiram nos protestos como sempre acontece no curso desse tipo de manifestação. Ou seja, aquelas primeiras manifestações com pouca gente serviram de elemento catalisador de uma enorme insatisfação popular que vinha ardendo no interior da sociedade e que explodiram em junho.

 

Importante verificarmos a composição social dos manifestantes. No início, as manifestações eram compostas por jovens das camadas médias urbanas, mas essa composição social foi mudando substancialmente à medida em que aumentavam os protestos. Quando as manifestações ganharam o caráter de massa, a absoluta maioria de seus participantes, conforme as pesquisas captaram, era composta de jovens oriundos da periferia, filhos de trabalhadores e assalariados precarizados da Grande São Paulo. Esses manifestantes poderiam não ter muita clareza dos objetivos que queriam alcançar, mas sua fúria se voltava contra o sistema em geral e as péssimas condições de vida em que viviam. Por isso, muitos depredaram os símbolos do capitalismo, como lojas, bancos, grandes empresas.

 

Também nas primeiras manifestações não se observava hostilidade contra partidos políticos e bandeiras vermelhas. Isso começou a acontecer quando as classes dominantes e seus meios de comunicação resolvem entrar na disputa pelos rumos do movimento, temendo que a esquerda passasse a comandar as manifestações. Para tanto, buscaram inverter as pautas iniciais e privilegiar a questão da corrupção, estimulando subrepiticiamente os manifestantes a hostilizarem os partidos políticos e a usarem bandeiras do Brasil e pintarem o rosto de verde e amarelo. Também deixaram de caracterizar os manifestantes como vândalos, baderneiros e marginais e passaram a legitimar as manifestações e condenar apenas uma minoria como arruaceiros. Era uma tática muito hábil. Até a Fiesp, a maior instituição empresarial do País, vestiu digitalmente seu imponente prédio de verde e amarelo na avenida Paulista, palco das manifestações. Para completar o processo, grupos fascistas foram mobilizados como uma espécie de tropa de choque das classes dominantes nas ruas.

 

A tática das classes dominantes deu resultado porque a partir de determinado momento os manifestantes, estimulados pelos fascistas e pela propaganda da direita, começaram efetivamente a hostilizar os manifestantes de esquerda, partidos políticos e quem estava com bandeiras vermelhas. Houve confrontos em várias regiões do País porque a esquerda também se organizou e continuou participando das manifestações, mas era minoritária entre os manifestantes e não tinha condições dirigir a insatisfação popular.

 

Mas esses episódios merecem duas constatações: primeiro, não se poderia exigir daqueles manifestantes a organização e as palavras de ordem semelhante aos militantes experimentados da esquerda; segundo, o processo de apassivamento e despolitização política implementado pelos governos do PT também contribuiu para essa conjuntura. Para aqueles manifestantes com pouca clareza política, os partidos políticos e as bandeiras vermelhas eram sinônimo de PT, todos eram iguais. Ou seja, é incorreto cobrar daqueles manifestantes recém chegados à luta social a diferenciação entre o partido no governo e os revolucionários que mantinham uma postura crítica ao próprio governo do PT.

 

Inicialmente, os governos estadual e municipal de São Paulo, mesmo com as manifestações crescentes, se recusavam a revogar o aumento das passagens e diziam que não dialogariam com quem praticava a violência. No governo federal, dia 18 de junho, a presidente Dilma disse que escutou a voz das ruas e propôs cinco pontos para enfrentar a conjuntura, entre os quais investimentos em saúde, educação e mobilidade urbana, incluindo o direcionamento de parte da renda do petróleo para esses programas e a convocação de uma constituinte para reformar o sistema político eleitoral, além do compromisso de manter os gastos do governo sob controle. Em termos práticos,  nenhuma dessas medidas foram efetivamente implementadas. Com o aumento das manifestações, os governos cederam e revogaram o aumento, mas as manifestações continuaram com bandeiras muito mais abrangentes.

 

2013, dez anos depois: quais as perspectivas?

 

A primeira reflexão a se fazer pode ser considerada clássica: os levantes populares espontâneos não têm donos e não são propriedade de nenhuma força política. Ocorrem quando as condições de vida das massas chegam a ponto de insatisfação que explodem nas ruas. Além disso, é importante também enfatizar que os levantes sociais espontâneos não obedecem a um manual ou figurino preestabelecido, da mesma forma que não pedem licença para emergir no cenário político com toda sua fúria, problemas e contradições. Como essas manifestações não foram construídas por ninguém, mas resultado de acúmulo de problemas sócio-econômicos e políticos, emergiram da forma que puderam e tornaram difícil sua condução pela esquerda, afinal  quem não ajuda a construir um movimento desse porte não é reconhecido nem tem legitimidade para comandar o levante. 

 

As manifestações de junho também não podem ser consideradas o ovo da serpente que gerou o fascismo. Argumentações desse tipo são equivocadas e buscam justificar os erros e desvios do projeto de conciliação de classes, da cooptação dos dirigentes movimento social e popular, da institucionalização da luta de classe, do apassivamento e despolitização da sociedade do período petista. Levantes sociais dessa ordem só ocorrem porque existiam condições objetivas para sua emergência, da mesma forma que não necessitam de aviso prévio para se colocar na conjuntura. Não se pode esquecer que a luta de classe não tira férias. Além disso, esses argumentos escondem tanto um temor em relação ao movimento de massas quanto a possibilidade de perder o controle desse movimento no curso das manifestações. Preferem que tudo se resolva dentro da institucionalidade. Essas teorias da conspiração querem transferir os erros da política interna para um inimigo externo fantasmagórico com poder sobrenatural para provocar levantes como se tivesse uma varinha mágica para controlar a realidade. 

 

O inimigo realmente existe, mas não teve o papel determinante no levante de junho. A serpente cresceu e se fortaleceu com os erros do governo, principalmente após a segunda vitória de Dilma. Senão vejamos: em 2013 as greves continuaram aumentando. De acordo com o Dieese, nesse ano ocorreram 2.050 greves, 54% das quais no setor privado, com 111.342 horas paradas, número muito maior que em 2012.[5] Além disso, não podemos esquecer que Dilma venceu as eleições em 2014 com um programa que procurava se diferenciar claramente das propostas do candidato da direita. Portanto, se a teoria da conspiração estivesse correta essa vitória não teria acontecido. O que mudou a correlação de forças a favor da direita foi o estelionato eleitoral de Dilma Rousseff, ao levar o banqueiro Joaquim Levy para o ministério da Fazenda e realizar um brutal ajuste fiscal, que jogou o País na recessão e duplicou o desemprego. Com essa medida, a presidente desmoralizou seus eleitores, que esperavam um governo diferente, e criou as condições para a direita dar o golpe de 2016. 

 

As jornadas de junho demonstraram também a crise de representatividade do País, uma vez que a maioria da população já não se sentia mais representada pelo aparato institucional (Executivo, Legislativo, Judiciário, Polícia, a maioria dos partidos políticos), fato que posteriormente abriu espaço para entrada em cena de aventureiros de extrema-direita fantasiados de lutadores anti-sistêmicos. A crise de representatividade é perfeitamente compreensível, não só em função de que esse aparato representa as classes dominantes, responsável pelas dramáticas condições de vida da população, mas principalmente por que esses aparelhos são executores das políticas antipopulares, da repressão contra os trabalhadores, contra os protestos de rua e as greves, pela violência generalizada, especialmente contra a juventude pobre e preta das periferias, pela corrupção e pelo descaso com que tratam o dinheiro público. 

 

A grande maioria dos que se manifestaram em junho contra os partidos e suas bandeiras vermelhas não eram fascistas. Tratava-se de uma massa enfurecida que estava nas ruas em busca de melhores condições de vida. Como a direita percebeu a incapacidade da esquerda em dirigir o movimento, colocou todo o seu aparato para disputar aquelas manifestações mediante uma intensa campanha nos meios de comunicação e com sua tropa de choque fascista nas ruas incentivando a hostilidade contra a esquerda. Isso também pode ser explicado: como o PT era considerado de esquerda, não resolveu os problemas da população, praticou a corrupção e utilizava também a bandeira vermelha,  no imaginário popular todos que estavam com esses símbolos eram iguais. Essa era a consciência possível daqueles manifestantes indignados com o desleixo com que foram tratados ao longo dos anos. 

 

Um elemento da conjuntura daquele período pouco observado é o fato de que, enquanto os milhões estavam protestando nas ruas, o proletariado das fábricas, que vinham num ascenso de lutas nos locais de trabalho, não se levantaram em solidariedade aos manifestantes nas ruas. Embora empregados, estavam também sofrendo a ofensiva das classes dominantes contra seus direitos, salários e garantias sociais. Mas isso é compreensível, tanto pelo fato de que seus principais organismos de direção estavam apassivados ou cooptados no interior da institucionalidade, como também porque o tempo das ruas e o tempo das fábricas são diferentes. Nas ruas, a juventude e a população em geral têm mais mobilidade e mais liberdade para se manifestar, enquanto nas fábricas as imposições e vigilância do capital, associados à ameaça de desemprego, retardam a possibilidade de entrada em ação do proletariado. No entanto, quando amadurecem as condições no chão das fábricas, não há força capaz de deter o proletariado, como ocorreu no ascenso das lutas grevistas no final da década de 70 em plena ditadura. 

 

Que fazer para não ser surpreendido novamente

 

Dez anos anos após as manifestações de junho, do ponto de vista social, a constatação que poderemos fazer é a de que nenhuma das questões levantados pelo movimento de 2013 foram resolvidas. Pelo contrário, as políticas desenvolvidas pelos governos após o golpe de 2016 aumentaram exponencialmente o estoque de problemas sociais. Em algum momento da conjuntura essa insatisfação voltará à tona com uma radicalidade possivelmente muito maior que em 2013 porque continua latente entre a população um sentimento anti-sistêmico difuso e as condições de vida só pioraram na última década. As manifestações de 2013 também demonstraram que o mito de que o povo brasileiro é ordeiro e pacífico e que afoga suas insatisfações no carnaval, no samba e no futebol não passa realmente de um mito vendido pelas classes dominantes para anestesiar o movimento popular. A nossa história é feita de muita resistência popular em todos os momentos de nossa história, mas infelizmente apagada da história oficial.  

 

Com o golpe de 2016 as classes dominantes implementaram um programa puro sangue e uma ofensiva brutal contra os salários, os direitos dos trabalhadores e o saque ao fundo público, processo que se aprofundou perigosamente com o governo Bolsonaro, cujo governo transformou o fascismo, o obscurantismo, as pautas comportamentais reacionárias como política do governo. Depois de quatro anos dramáticos, o povo brasileiro encontrou forças suficientes para derrotar eleitoralmente Bolsonaro e abrir espaço para que os trabalhadores possam lutar num ambiente de liberdades democráticas, muito embora o atual governo continue praticando a mesma política de conciliação de classes que fracassou no passado e que teve imensa responsabilidade pela emergência dos anos terríveis após o golpe de 2016. Espero que os trabalhadores e a população possam se colocar novamente em movimento para evitar o pacto das elites e derrotar a política antipopular que a décadas vem sendo implantada no País.

 

Passado o período mais difícil do governo de extrema-direita, a história está generosamente proporcionando uma nova oportunidade às forças da esquerda classista e revolucionária de se preparar de maneira mais efetiva para as novas lutas que virão, até porque a crise orgânica do capitalismo brasileiro, aliado ao estoque de insatisfação aumentado após junho de 2013, vão exigir das forças revolucionárias uma imensa capacidade de se voltar para o trabalho de base visando estreitar os laços com as massas insatisfeitas. Porque só assim serão capazes de captar os momentos históricos em que as massas emergirão para a luta e, dessa forma, não serão pegos de surpresa como foi em junho de 2013. As classes dominantes estão buscando fortalecer o poder burguês, com a ajuda da política de conciliação de classes, mas a nossa tarefa é colocar de maneira clara que só o poder popular e o socialismo serão capazes de construir um novo rumo para o País. Essa é a nossa tarefa nesse ciclo que se abriu com a eleição de Lula! 

 

 

Edmilson Costa, é doutor em economia pela Unicamp, com pós-doutorado no Instituto de filosofia e Ciências humanas da mesma instituição. É autor de vários livros, entre os quais A política salarial no Brasil, 19641985 (Boitempo), A globalização e o Capitalismo contemporâneo (Expressão Popular), A crise econômica mundial, a globalização e o Brasil 9 (Edições ICP) e Reflexões sobre a crise brasileira (Edições ICP), além de vários ensaios publicados em revista e sites nacionais e internacionais. É secretário-geral do PCB. 


[1] Brasil: extraordinária jornada de lutas. Esse é o título de um longo ensaio que fiz no período e que foi publicado em resistir.info e posteriormente em livro (reflexões sobre a crise brasileira. Edições ICP, 2020)
[2] O tripé macroeconômico é caracterizado pela política de metas de inflação, ajuste fiscal e câmbio flutuante.
[3] Pochmann, M. Nova classe média. O trabalho na base da pirâmide social brasileira. São Paulo, Boitempo, 2012.
[4] As informações sobre as datas e número de manifestantes em São Paulo estão baseadas no infográfico divulgado pelo Movimento Passe Livre. As informações sobre as outras cidades são da imprensa.
[5] Dieese. Balanço das greves em 2013. 

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Author`s name Edmilson Costa