“Os objetos não têm os aspectos que encontramos neles. A tela da memória volta para trás projetando ao contrário infinitos instantes. Cenas, coisas, fatos, que se superpõem sem se misturarem” (Augusto Roa Bastos, Eu, o Supremo, 1974).
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela” (Bíblia Novo Testamento, João 1:1-5, circa 80 d.C.).
“Se o Deus benevolente e justo é um substituto do pai, não é de admirar que também sua atitude hostil para com o pai, que é uma atitude de odiá-lo, temê-lo e fazer queixas contra ele, ganhe expressão na criação de Satã. Assim, o pai, segundo parece, é o protótipo individual tanto de Deus quanto do Demônio” (S. Freud, Uma neurose demoníaca do século XVI, 1923).
Nação e religião convivem e disputam o Brasil. A religião eram as Ordens, admitidas pela autoridade inconteste do Pontífice Máximo. Porém quem garantia a Nação? O Rei, o Imperador, o Presidente, representantes do poder político? os senhores da terra, do capital, das riquezas, donos do poder econômico, ou as forças armadas, explícitas agentes do poder militar?
A religião toma conta do Brasil. Com o poder do Estado colonizador português, chegou a religião para tudo que não fosse as finanças reais, a repressão interna e a defesa contra outras nações colonizadoras. A vida das pessoas, querendo ou não, era e será conduzida pela religião. É a razão pela qual a história constata, mas não questiona, que não houve povo na Independência?
A Independência do Brasil foi uma questão da aristocracia, dos poderosos, caso único no mundo em que a independência mantem regime e pessoas do sistema colonial. E pior, a compra ao colonizador por dois milhões de libras esterlinas que, não dispondo, submete a ex-colônia a outro colonizador: as finanças da Inglaterra, que governarão o Brasil Império e o Brasil Primeira República. Esta situação histórica volta com a redemocratização, ao final do século XX, atualizada pela ideologia neoliberal e pelas finanças euro-estadunidenses.
Também não houve povo, na proclamação da República. “O estudo da participação política dos militares no Segundo Reinado passa pelo reconhecimento sui generis que vivia o Império Brasileiro no tocante ao papel das Forças Armadas em seu contexto regional. Ao contrário de nossos vizinhos, onde a presença do exército na política tinha sido fundamental desde a independência, no Brasil essa presença foi declinante”. “A formação da academia militar do Império era fortemente marcada pela presença do ensino técnico. Estudos de mineralogia, geografia, matemática diferenciavam o modo do pensamento militar do pensamento típico dos bacharéis em direito que governavam o Brasil do século XIX”. “O exército se autoincumbia da missão regeneradora da nação que, em alguma medida, permanecerá por mais de um século, com consequências políticas sérias para a vida nacional” (João Daniel Lima de Almeida, História do Brasil, Fundação Alexandre de Gusmão, Brasília, 2013).
Não há causa única nos fenômenos sociais. Os militares se dividiam em “doutores” e “tarimbeiros”, os primeiros estudiosos, receptores de filosofias, como o positivismo, importadores de exemplos, como dos turcos de Mustafa Kemal Atatürk, fundador da República da Turquia.
Os tarimbeiros, nome originado de tarimba, ripa de madeira que formava o leito dos quarteis, tinham conhecimento empírico, eram os experientes.
O abolicionismo, com diversas percepções, foi um divisor de águas da sociedade escravista aristocrática com o exército. Esta situação tem um estopim: a recusa do Major Sena Madureira, professor de esgrima dos netos do Imperador, de colocar seu regimento à cata de negros fugidos, como desejava o Marquês da Gávea, Manuel Antônio da Fonseca Costa, rico carioca, conselheiro do Exército e comandante-superior da Guarda Nacional.
A insurreição de Sena Madureira ao Marquês da Gávea não foi seu único feito. Servindo na Escola Militar, nos primeiros anos da década 1880, recebe o jangadeiro cearense Francisco José do Nascimento (Chico da Matilde) que liderara os jangadeiros de Fortaleza a não transportar escravos do Ceará para o sul. Sena Madureira é punido, defendido por Deodoro da Fonseca, e divide os militares.
O Regimento Militar de Fortaleza é transferido para Belém, no Pará. Sena Madureira saiu da capital para o Rio Grande do Sul.
Os historiadores se dividem na questão do abolicionismo nos quarteis.
E a religião? Igreja e Império consolidaram relações muito próximas nas esferas políticas e religiosas portuguesas. No espaço colonial, membros da Igreja ocupavam posição de destaque auxiliando na administração e no regulamento dos costumes. Em contrapartida, o próprio Vaticano emitira, ainda no século XVI, autorização para que os reis portugueses pudessem tratar dos ordenamentos na Igreja, em regiões ultramarinas, pelo chamado Padroado Régio.
No entanto, durante o Segundo Reinado, grave crise se instaurou entre Pedro II e os clérigos católicos brasileiros. Tudo começou em 1864, quando o papa Pio IX enviou nova bula determinando que todos os católicos, envolvidos com a prática da maçonaria, fossem imediatamente excomungados da Igreja. O que atingia diretamente Dom Pedro II, que integrava os quadros da instituição censurada.
Desta situação decorre a Questão Religiosa, pois Pedro II não reconheceu o valor da ordem dada pela Santa Sé, o que não teria maiores repercussões, tendo em vista que a maioria dos clérigos brasileiros apoiava incondicionalmente o regime monárquico, se não fossem os bispos de Olinda e Belém preferirem acatar a orientação de Pio IX, promovendo a expulsão dos párocos envolvidos com a maçonaria.
Inconformado com a insubordinação destes bispos, o imperador reagiu com a condenação dos mesmos à reclusão e prestação de trabalhos forçados. Imediatamente, os membros da Igreja passaram a atacar o regime imperial dizendo que Pedro II cometera ato de extremo rigor e autoritarismo. Mesmo anulando a decisão, o governo imperial perdeu fundamental e influente base de apoio político ao regime (apud Rainer Sousa, Mestre em História).
Como se observa, por todos estes 450 anos, o enriquecimento produzido no Brasil foi, primordialmente, transferido para o exterior e apropriado por ínfima minoria de brasileiros, que combatiam qualquer perspectiva de mudança.
Neste minoritário tempo de nossa história, o Brasil foi dirigido em grande parte pelo Estado Nacional, satanizado por religiosos e por interesses estrangeiros. Considerando que apenas algumas religiões de matriz africana foram desenvolvidas no Brasil, pode-se, sem erro, afirmar que as religiões sempre representaram aqui interesses forâneos. Algumas, de cunho calvinista, como as neopentecostais, têm, como a católica, seus mais destacados chefes com residência no exterior.
O primeiro período se inicia com a Revolução de 1930 e dura 15 anos, aos quais se acrescenta o segundo governo Vargas, de 1951à sua morte, em 24 de agosto de 1954, totalizando 19 anos. O segundo período foi o curto Governo João Goulart, dois anos e meio. O terceiro vai da posse de Artur Costa e Silva, 1967, ao fim do Governo Geisel, em 1979, 12 anos. Ao todo 33 anos e meio de governos onde o interesse nacional prevaleceu para as decisões políticas (mar continental brasileiro), econômicas (criação de empresas estratégicas nacionais) e sociais (alfabetização e direitos trabalhistas e previdenciários).
No período complementar houve algum tipo de acomodação entre os interesses nacionais e as pressões estrangeiras.
Embora a divulgação de indicadores econômicos seja a mais habitual maneira de demonstrar o nível de um país, o indicador mais relevante é o da apropriação nacional da produção doméstica, tanto no setor econômico, quanto no intelectual e, principalmente, no social, o bem estar do povo.
A incorporação de setores pobres, trabalhadores, populares nas participações em políticas nacionais foi o grande feito da Era Vargas que perdurou por meio século. Este feito foi todo realizado nos 19 anos de Governo do Estadista Getúlio Dornelles Vargas. Inexistia no Brasil anterior, e foi sendo desfeito a partir do Golpe de 1964 até ser objetivo explícito de destruição com a conquista neoliberal do poder, na “redemocratização” dos anos 1980 e pelos governos que se seguiram.
A grande questão que nos é imposta não pode ser desprovida de significado intrínseco, como assinala Felipe Quintas (“Nacionalismo Brasileiro: Fundamentos, Intérpretes, História”, artigo no Monitor Mercantil, Opinião, 05/04/2023): “direita e esquerda representam uma topografia política que não faz jus à complexidade brasileira” ao que acrescento, e servem de ocultação a interesses alóctones, no mais das vezes intencionalmente encobertos.
“Durante a Primeira República, os principais atores da vida política nacional eram os Estados da Federação e, dentro destes, suas respectivas oligarquias. A Federação era, em realidade, uma união de estados hierarquizados, com poder desigual” (L. R. Pecoits Targa, “Gaúchos e Paulistas na Construção do Brasil Moderno”, Mottironi Editore, Torres, 2020).
Após a Revolução de 1930 tem início o processo de centralização que ganha força com a Constituição de 1937. Esta centralização é desfeita com a Constituição de 1946, mas retomada com a Constituição de 1967. Não é portanto de se admirar que os períodos de maior desenvolvimento brasileiro tenham ocorrido nas vigências das Constituições de 1937 e de 1967. Usando a terminologia atual, os governos dos “centrões” foram os mais corruptos, pois exigiam troca de favores e de poderes para manter as oligarquias estaduais que os mantinham; a Constituição de 1988 só por piada pode ser denominada “cidadã”, pois é introdutória do afastamento do povo da participação política, quer pela alienação dos currículos escolares, por ação das igrejas, em especial a neopentecostal, quer pela falta de instrumentos que vocalizem as questões de efetivo interesse popular, pelo monopólio das comunicações.
A sucessão do Presidente Geisel foi a primeira intromissão efetiva do neoliberalismo na política brasileira. A partir desta tomada do poder político, o Estado Nacional vem perdendo soberania e o povo brasileiro cidadania.
No Governo Sarney (1985-1990) 18 estatais, avaliadas na época em US$ 533 milhões, foram privatizadas, outras 18 estatais foram transferidas para governos estaduais, duas estatais foram incorporadas por instituições financeiras e quatro fechadas. As maiores estatais privatizadas no período foram a Riocel e a Aracruz Celulose, ambas na área de celulose; a Sibra (maior empresa produtora de ferro-liga), a Caraíbas Metais (metalúrgica de cobre) e a Companhia Brasileira de Cobre – CBC.
O Governo Fernando Collor (1990-1992) prosseguiu com as privatizações como parte de seu programa econômico, ao instituir o PND – Programa Nacional de Desestatização, pela Lei n.º 8.031, de 1990. 18 foram efetivamente privatizadas, pois Fernando Collor teve sua ação obstaculizada com os problemas surgidos na privatização da Viação Aérea São Paulo – VASP. Na área siderúrgica, foi extinta a empresa holding Siderurgia Brasileira S.A. – SIDERBRAS, após absorver os passivos das empresas subsidiárias e privatizada a USIMINAS (1991). O Grupo Gerdau, que adquiriu a maior parte das empresas siderúrgicas, foi naquela época o maior beneficiário.
O Governo Itamar Franco (1992-1995) privatizou a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Aço Minas Gerais (Açominas), a Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) e a Embraer.
Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), adotou as recomendações do Consenso de Washington (1989) e do Fundo Monetário Internacional (FMI) mostrando seu propósito de implementar amplo programa de privatizações. A grande mineradora, Companhia Vale do Rio Doce, a Telebrás, monopólio estatal das telecomunicações, e a Eletropaulo, foram assim subtraídas do povo brasileiro.
O governo Lula (2003-2010) foi responsável pela concessão de cerca de 2,6 mil quilômetros de rodovias federais, leiloadas em 9 de outubro de 2007, para explorar, por 25 anos, os pedágios nas rodovias. As estradas concessionadas e os respectivos concessionários são:
BR-381 Belo Horizonte (MG) – São Paulo (SP) - grupo OHL; BR-393 Divisa (MG-RJ) – Via Dutra (RJ) – Acciona; BR-101 Ponte Rio–Niterói (RJ) – (ES) - grupo OHL; BR-153 Divisa (MG-SP) – Divisa (SP-PR) - BR VIAS; BR-116 São Paulo (SP) – Curitiba (PR) - grupo OHL; BR-116 Curitiba (PR) – Divisa (SC-RS) - grupo OHL e BR-116/376/PR-101/SC Curitiba (PR) – Florianópolis (SC) - grupo OHL. O governo Lula privatizou a Hidrelétrica Santo Antônio, a Usina Hidrelétrica de Jirau e a Linha de Transmissão Porto Velho (RO) – Araraquara (SP).
A Petróleo Brasileiro S.A. PETROBRÁS, a maior empresa brasileira, criada em 1953 por Getúlio Vargas, que transformou o Brasil de importador de derivados de petróleo em País autossuficiente em petróleo e derivados vem sendo privatizada aos pedaços, pois é grande demais para ser vendida de uma só vez. Todos os governos da era neoliberal deram alguma contribuição para a entrega a terceiros deste símbolo da capacidade brasileira.
Nos três últimos governos foram privatizados, conforme Privatômetro:
Total de desinvestimentos da Petrobrás (valores de 06/2022)
Presidente
Valor (R$ milhões)
Relação ao total (%)
Dilma Rousseff (PT)
28.948
10,8%
Michael Temer (PMDB)
76.502
28,4%
Jair Bolsonaro (PSL, PL)
163.566
60,8%
A mesma fonte apresenta, por área de atuação, as privatizações realizadas na Petrobrás.
“Maior parcela do que foi vendido é da área de Exploração e Produção (E&P). São ativos como: (i) 25% do Campo de Roncador e o (ii) bloco exploratório BM-S-8, na Bacia de Santos, ambos vendidos para a Equinor; (iii) participação de 10% no Campo de Lapa, vendido para a TotalEnergies; e (iv) participação de 50% na Petrobrás Oil & Gas B.V. (PO&GBV), empresa com ativos na Nigéria, vendida para holding holandesa.
O segundo setor com maiores privatizações foi o de Transporte, neste caso transporte de gás natural. Este setor é o responsável pelo transporte via gasodutos de gás natural no país. A Petrobrás vendeu a Nova Transportadora do Sudeste (NTS) e a Transportadora Associada de Gás (TAG), que, juntas à Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil S/A (TBG), detêm praticamente toda a malha dutoviária de gás natural do Brasil. Como são empresas gigantes, as privatizações da NTS e da TAG somaram em valores atuais quase R$ 70 bilhões, um quarto de toda privatização fatiada da Petrobrás.
O terceiro setor que mais sofreu com privatizações foi o da distribuição e revenda. Neste setor foram vendidas três empresas fundamentais para a economia brasileira: a BR Distribuidora (maior distribuidora de combustíveis líquidos do país), a Gaspetro (distribuidora de gás natural que detém participação em grande parte das distribuidoras estaduais de gás natural do Brasil) e a Liquigás (maior distribuidora de gás de cozinha – GLP do Brasil, vendida para uma das concorrentes).
Na quarta posição temos o refino. Este é um setor estratégico no plano de privatizações dos últimos governos e da Petrobrás. A Refinaria Landulpho Alves (RLAM), na Bahia, foi a primeira refinaria estatal vendida e única que já está em operação privada. Renomeada como Refinaria Mataripe, está sob gestão da Acelen desde dezembro de 2021, empresa criada pela Mubadala Capital, subsidiária de gestão de ativos da Mubadala Investment Company, dos Emirados Árabes. Além da RLAM já tivemos a assinatura de venda da Reman (Amazonas) e Lubnor (Ceará), além da venda das refinarias estrangeiras de Pasadena (EUA) e Nensei Seikyu (Japão).
Por fim, ainda temos privatizações na área de Biocombustíveis, Petroquímica e Geração de Energia” (Fonte: Privatômetro, atualização realizada em 1º de agosto de 2022).
Assim se esvai a Soberania, advinda do petróleo do Brasil, para o Canadá (22,7%), a França (19%), a Noruega (11,2%), os EUA (5,9%), o Japão (5,3%), os Emirados Árabes (4,5%), a Espanha (3,5%), a Malásia (3%), a Argentina (2,1%), a Austrália (1,8%), o Reino Unido (1,6%), o México e o Paraguai (0,9%, cada) e Portugal (0,01%).
A Cidadania se foi com o Micro Empreendedor Individual (MEI) sem direitos trabalhistas nem previdenciários, a nova escravização. O neoliberalismo faz o Brasil empobrecer, o operário ficar sem emprego, a família sem comida e a doença e a fome tomarem conta do país que tem a maior riqueza natural do planeta.
“Espero que o sinhô
Tenha tirado uma lição
Que a terra é do homem
Num é de Deus nem do Diabo” (Glauber Rocha e Sérgio Ricardo, Romance do Deus Diabo, 1964).
Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado, atual presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás – AEPET.
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