Desde o primeiro governo Lula, é corrente a narrativa petista de que Lula seria o herdeiro e continuador político de Getúlio Vargas. Para um partido, como o Partido dos Trabalhadores (PT), nascido e formado contra o legado de Vargas, tal proclamação constitui uma homenagem tardia ao grande estadista, que, muitas décadas após sua morte, continua sendo, inclusive para seus inimigos, a métrica de qualidade política.
Porém, Lula, em perfeito acordo com o PT, não é Vargas e nem se propõe a ser. Entre eles não há apenas uma diferença geracional, mas toda uma discrepância de princípios e concepções. Vargas foi nacionalista, Lula não é. Vargas encarnava uma visão imperial de Brasil, do Brasil como uma grande civilização territorial vocacionada à grandeza, enquanto Lula não manifesta nenhuma visão específica de Brasil, seja da sua essência, da sua formação ou do seu destino. Para Vargas, a soberania nacional era inegociável, para Lula, ela pode e deve ser frequentemente relativizada em nome da “governança global”, como se o Brasil fosse uma zona franca internacional. A política varguista era um instrumento de realização da unidade nacional a partir da construção de um Estado que representasse institucionalmente a Nação em sua vastidão e complexidade, enquanto a política lulista é uma aglomeração fortuita de grupos de pressão e de interesse em torno de agendas pré-definidas por entidades transnacionais.
Formalmente, há pontos de convergência entre Vargas e Lula, bastante explorados pelos advogados da tese do Lula sucessor de Vargas, como a defesa da estatalidade da Petrobrás e a justiça social. Em termos de conteúdo e de propósito, contudo, verificam-se notáveis diferenças, que impedem ambos de serem colocados no mesmo balaio.
Para Vargas, o controle da Petrobrás pelo Governo Federal servia para resguardá-la como patrimônio nacional e instrumento de alavancagem do desenvolvimento brasileiro, enquanto, para Lula, funcionava para utilizá-la como moeda de troca para acordos eleitorais e parlamentares. A nomeação, por Vargas, do udenista Juracy Magalhães para a presidência da Petrobrás não se deu por conchavo, mas pela excelência administrativa por ele demonstrada à frente da Vale do Rio Doce, também no segundo governo Vargas. O loteamento da Petrobrás a partidos da base aliada, no governo Lula, introduziu práticas estranhas à finalidade da empresa e preparou o terreno para os Estados Unidos, via lava Jato, atacarem-na e desmoralizarem-na.
Em termos sociais, Vargas vislumbrava a questão social como fator de integração e de desenvolvimento nacionais, de harmonização dos distintos interesses em prol de um sentido compartilhado de Nação, a ser construído pelo trabalho, transformado por Vargas em princípio de organização do Brasil. Para Lula, por outro lado, a questão social é um fator de adequação do Brasil a normatizações transnacionais, delineadas por instituições como o Banco Mundial, para “humanizar” o subdesenvolvimento brasileiro. O acanhamento prático das políticas lulistas é mascarado pela retórica inflamada e polarizante de Lula e do PT contra os setores sociais que não constituem sua base eleitoral, o que funciona como instrumento consciente de posicionamento eleitoreiro tanto do “nós” quanto do “eles”. O recrudescimento da tensão política nos recônditos da vida cotidiana e o estiolamento social daí decorrente são entendidos como “democracia em movimento”, em uma visão completamente imediatista e antinacional de política, exatamente o contrário do ideário conciliador e transformador de Vargas, que expressava a necessidade de colaboração social para a realização nacional, cabendo ao Estado o papel de mediador para a manutenção da coesão institucional e social, requisito fundamental do desenvolvimento econômico e social.
O trabalhismo varguista, voltado para a realização da justiça social a partir da nacionalização do Brasil, tem seu sucesso atestado pela mobilidade social ascendente sem precedentes, na qual massas até então despossuídas conquistaram sua independência econômica e liberdade social pela carteira de trabalho e pelos serviços a ela associados, como habitação, previdência etc., alçando-se à classe média no espaço de uma ou duas gerações. O assistencialismo lulista, apesar da contundência demagógica com que se apresenta e se diferencia dos seus adversários, nada realiza de parecido e ainda se vangloria de “tirar da pobreza” quem, de fato, nela permanece, pois, a eterna dependência de auxílios governamentais atesta a manutenção dos beneficiários em tal estado.
Porém, nada representa mais cruamente a diferença entre Vargas e Lula do que a questão da Amazônia. A região compreende nada menos do que 61% do território brasileiro, o que a coloca como absolutamente central para toda e qualquer definição de Brasil. Não há Brasil sem Amazônia, de modo que não é lícito falar de nacionalismo sem a defesa incondicional da soberania brasileira sobre a sua fatia da região.
Vargas combatia expressamente a internacionalização da Amazônia e defendia uma “Amazônia bem brasileira”, rechaçando a presença estrangeira na região. Para isso, delimitou a Amazônia Legal pela Lei Nº 1.806/1953 e criou, nesse mesmo ano, a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), com o intuito de ocupar e desenvolver a área.
As palavras de Vargas a respeito, em discurso de campanha em 1950, são claríssimas: “Em vez da Amazônia internacionalizada, que pretendem alguns poucos brasileiros mal orientados, levarei avante a ideia antiga de uma Amazônia bem brasileira, interessando as nações fronteiriças e promovendo a integração econômica e social da bacia do grande rio. Não é com europeus ou povos de outras latitudes que domaremos o caudal gigantesco e o séquito dos seus poderosos afluentes. Será entre nós, com os brasileiros de todo o país, gente adaptada ao solo e à natureza peculiar da linha equatorial, que dividiremos os encargos atuais”.
Por outro lado, Lula, ao instituir o Fundo Amazônia, privatiza a gestão territorial de mais de 2/3 do Brasil, inviabilizando a soberania nacional e fazendo do País uma zona de intervenção estrangeira consentida e permanente. A recente visita de Lula a Joe Biden, repleta de entregas e concessões e carente de ganhos e contrapartidas, reforça o viés não-nacionalista de Lula, incapaz de dar ao Brasil a força diplomática e geopolítica que o País, pelas suas dimensões, deveria ter. Por alguns punhados de dólares, Lula permite aos países da OTAN decidir sobre os rumos de toda uma continentalidade alheia, evidentemente em benefício deles. Em um momento histórico no qual as antigas colônias africanas e asiáticas fecham suas portas às antigas metrópoles, essas se voltam para a América do Sul, particularmente ao Brasil, para controlarem, sob os auspícios venais do governo Lula, reservas de matérias-primas inexistentes ou há muito esgotadas em seus próprios territórios. As guerras imperialistas que a Europa e os Estados Unidos ocasionaram na Ásia e na África tornam-se desnecessárias no Brasil porque o governo Lula aluga o Brasil.
Ressalte-se-, ainda, os apelos de Lula pela “governança global” do clima e da saúde, o que submeteria o Brasil ao controle direto do grande capital transnacional, com o Estado brasileiro se reduzindo a função de gerente de decisões tomadas do exterior. É verdade que o nacionalismo não propõe a autarquia e a xenofobia e aceita a cooperação internacional para assuntos de interesse comum, mas é incompatível com qualquer projeto de subjugação nacional a ditames externos. A cooperação internacional pressupõe sempre a autodeterminação nacional, a autonomia para o País aceitar ou rejeitar propostas conforme o seu interesse e a suas realidades internas.
Nada disso significa que toda a obra de Lula seja condenável e que ele não possa, agora, fazer um bom governo. O terceiro mandato de Lula está apenas começando, e muitas possibilidades estão em aberto, a depender das circunstâncias políticas e da correlação e forças no jogo do poder. Porém, do que se tem de real e concreto até agora, não cabe qualquer paralelismo entre Lula e Vargas. O último presidente varguista brasileiro respondia pelo nome de Ernesto Geisel, e, desde a sua saída, o Brasil se distancia progressivamente do ideário e da estrutura que caracterizaram a Era Vargas. Lula é parte da desvarguização do Brasil e do consequente afastamento da política brasileira dos imperativos e exigências nacionais.
Na atual quadra histórica, quando Lula volta ao poder com o apoio dos mesmos grupos que, poucos anos antes, decidiram pela sua prisão e pela deposição do PT, só resta uma certeza: Lula terá que trair alguém, ou o consórcio oligárquico imperialista-juristocrático-midiático que o apoia ou o Brasil que, novamente, nele depositou suas esperanças. Se trair o primeiro, poderá gravar seu nome como líder nacionalista, não como sucessor de Vargas, mas como seu discípulo tardio. Se trair o segundo, apenas confirmará o que sempre foi, um símbolo e representante da desistência nacional.
Felipe Maruf Quintas, mestre e doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
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