Resistir às chantagens do mercado com as massas exigindo mudanças e avançar para as transformações sociais!
Edmilson Costa*
Dia 30 de outubro pode ser considerada uma data histórica no Brasil, porque neste dia a maioria do povo brasileiro sentiu um enorme alívio e imensa alegria por ter derrotado eleitoralmente o neofascismo. Não foi uma tarefa fácil porque o inimigo utilizou de todas as manobras para continuar no poder, tais como o uso integral da máquina governamental para ganhar votos, a liberação de benefícios assistenciais às vésperas das eleições, a utilização de prefeitos, governadores e empresários assediando os trabalhadores e beneficiários do Bolsa Família a votar no genocida, a rede de igrejas pentecostais transformando o púlpito em comitê eleitoral, uma milícia especializada em espalhar fake news contra a oposição, além da Polícia Rodoviária Federal realizando blitzen nos Estados do Nordeste, onde Lula tinha grande vantagem, para intimidar eleitores, dificultar a votação e reduzir o número de votantes. Mas o povo brasileiro soube encontrar forças para impor sua vontade à máquina infernal da extrema-direita e infringir uma derrota a Bolsonaro, com repercussões tanto interna quanto internacionalmente.
A vitória de Lula viabiliza a garantia das liberdades democráticas nos próximos anos, quando as forças de esquerda poderão lutar em melhores condições tanto contra eventuais ataques aos trabalhadores quanto em busca de um novo rumo para o país na perspectiva do poder popular e do socialismo. A derrota de Bolsonaro também deverá produzir uma mudança na conjuntura, não só no que se refere ao ambiente político, nas pautas governamentais, mas principalmente na retirada dos fascistas do aparelho do Estado.
Os últimos quatro anos foram terríveis para o povo brasileiro. O governo realizou um permanente ataque aos trabalhadores e trabalhadoras, indígenas, quilombolas e à juventude pobre e preta das periferias, tendo sido o principal responsável pelas mais de 680 mil mortes na pandemia, ao atrasar a compra de vacinas e fazer propaganda de medicamentos ineficazes. Além disso, foi um governo que legalizou o uso de armas, especialmente para suas milícias, desenvolveu uma política de ódio entre a população, uma pauta de costumes ultrarreacionária, como o racismo, o preconceito contra as mulheres, os nordestinos, gays, além da destruição do meio ambiente.
Realmente, essa foi uma vitória importante, mas não podemos nos contaminar pela euforia porque os próximos meses e anos serão marcados pelo acirramento da luta de classes. O inimigo foi derrotado nas eleições, mas ainda conta com apoio entre vastos setores da burguesia, especialmente na área do agronegócio, sistema financeiro, transporte de carga e a pequena burguesia do comércio e serviços, em setores das Forças Armadas, das polícias militares, de setores médios urbanos assustados pela propaganda anticomunista e ainda parcelas do proletariado e do lumpesinato, além de apoio institucional no Congresso e entre governadores de vários Estados.
Os bloqueios das estradas logo após o anúncio do resultado eleitoral, as manifestações em frente aos quartéis, a violência nas ruas contra manifestantes que votaram em Lula são apenas a ponta mais visível do iceberg da tentativa da extrema-direita em deslegitimar as eleições e desestabilizar o futuro governo. Até agora as ações desesperadas desses setores fracassaram em função da falta de maior apoio interno e externo, além do fato de que um golpe nessa conjuntura não teria condições objetivas de sustentação, mas essas forças deverão manter um prolongado período de provocações buscando tumultuar a conjuntura.
Não podemos também esquecer que a vitória de Lula não encerra a crise orgânica do capitalismo brasileiro, que se expressa na crise econômica, social e política atual. A disputa acirrada entre Lula e Bolsonaro é apenas a face mais dramática dessa crise. Quais são os principais vetores da crise orgânica: primeiro, o país registra há quatro décadas um processo de estagnação econômica. Se levarmos em conta que a economia brasileira cresceu a uma média de 6% ao ano entre 1930 e 1980, essa performance a partir dos anos 80 é inteiramente atípica, com impactos devastadores, tais como um processo de regressão industrial, atraso em relação às fronteiras tecnológicas do capitalismo atual, como tecnologias da informação, inteligência artificial, engenharia genética e biotecnologia, nanotecnologia, microeletrônica, entre outros. Essa regressão abriu espaço para o aumento da influência dos setores agrário-exportadores, bem como àqueles ligados às atividades baseadas na renda da terra na economia e na política do país. Como sabemos, a dinâmica econômica virtuosa de uma nação deve ter como motor principal a atividade industrial, a única que gera valor. Quando esse setor desacelera, ocorrem os impactos negativos em todas as outras variáveis da economia.
Segundo, um dos impactos mais dramáticos dessas quatro décadas de regressividade pode ser verificado na área social. O desenvolvimento industrial brasileiro foi realizado não só em marcha forçada, mas principalmente com enorme restrição salarial, o que resultou numa economia de baixos salários, especialmente com o golpe militar de 1964, que aprofundou a miséria no país. O processo de desigualdade social se acelerou de maneira acentuada com a implantação do neoliberalismo a partir do início da década de 90 e chegou a níveis dramáticos após o golpe de 2016, especialmente com o governo Bolsonaro. Atualmente o Brasil possui 33 milhões de pessoas passando fome, disputando ossos e pelancas de carne nos lixões, 36 milhões de trabalhadores na informalidade e cerca de 18 milhões de desempregados, se somarmos o desemprego oficial com o desemprego oculto, além de milhões de sem teto, sem terra e outros tantos milhares vivendo como mendigos nas cidades. O levante social de 2013 já tinha escancarado a situação social do país, mas esse quadro se tornou muito mais grave nos últimos nove anos com os ataques à classe trabalhadora e a precarização do trabalho, recessão e desemprego realizado pelos últimos governos.
A crise econômica e social se tornou mais grave em função da crise sistêmica do capitalismo mundial, cujos reflexos no Brasil foram bastante severos, levando à grave crise política, particularmente quando o boom das commodities desacelerou e as classes dominantes brasileiras exigiram um ajuste econômico e social radical do governo do Partido dos Trabalhadores, o qual, em função de sua base social, não estava em condições de realizar na velocidade e profundidade exigida pelo chamado mercado. Foi nessa conjuntura que a burguesia organizou o golpe, tendo como mote a surrada luta contra a corrupção encabeçada pela Operação Lava a Jato. Posteriormente se descobriu que essa operação não passou de um conluio criminoso entre as classes dominantes, um juiz ladrão e procuradores inescrupulosos para derrubar Dilma Rousself, prender Lula, afastá-lo da disputa eleitoral, abrir espaço para o ajuste radical realizado pelo governo Temer e, posteriormente, para a eleição de Jair Bolsonaro, cujo governo aprofundou ainda mais a barbárie social.
Em síntese, a crise brasileira não é uma simples crise cíclica, mas uma crise orgânica profunda que não pode ser resolvida com a conciliação de classe nem com medidas paliativas. São quatro décadas de estagnação econômica, uma pobreza urbana próxima à explosão e um sistema político desmoralizado perante a população. Como toda grande crise, a crise brasileira também não pode se arrastar indefinidamente. Não existe crise sem saída e a nossa crise está exigindo uma saída.
O velho modelo desenvolvimentista dos anos 50 do século passado, ao estilo tropical, se esgotou, e o neoliberalismo fracassou rotundamente, além do fato de ter agravado todas as mazelas resultantes do capitalismo brasileiro. Estamos diante de um país que está entre as dez maiores economias do mundo, com o segundo maior proletariado do continente, com terra e água em abundância, sol o ano inteiro, com todas as matérias-primas necessárias ao desenvolvimento econômico. Um país com essas características não pode conviver por muito mais tempo com a maioria da população vivendo na pobreza ou na miséria sem que essas contradições se expressem em luta social aberta.
Mesmo diante da crise e do fracasso do neoliberalismo, as classes dominantes continuam aferradas ao mantra neoliberal do tripé macroeconômico – ajuste fiscal, metas de inflação e câmbio flutuante - e dane-se a população. Em 2013 os manifestantes exigiam saúde, educação, transporte e emprego de qualidade, mas essas reivindicações não foram atendidas e a partir daí o estoque de problemas sociais aumentou dramaticamente em consequência da radicalização das políticas neoliberais contra os trabalhadores. Esse caldeirão social na próxima vez que explodir fará com que o levante de 2013 pareça um período de festa junina, com o risco de ser apropriado de forma ainda mais perigosa pelas forças da extrema-direita.
Portanto, o novo governo Lula, pela própria composição da frente constituída para disputar as eleições, se encontra diante de uma encruzilhada, em função da acirrada disputa pelos rumos do novo governo que se dará daqui para a frente. Mesmo antes de Lula assumir, a burguesia tenta de todas as formas sequestrar a pauta econômica do novo governo visando manter o velho modelo que já foi abandonado em várias partes do mundo e se utiliza de todas as chantagens para preservar seus interesses, buscando colocar na Fazenda um ministro que siga seu receituário neoliberal.
De outro lado, a eleição de Lula criou extraordinárias expectativas na militância e nos movimentos sociais e populares. Todos com grande expectativa de mudanças. Caso não sejam contempladas, haverá muita frustração e poderá ocorrer uma mudança de ânimo desses movimentos em direção à luta, até mesmo porque ainda se guarda na memória o estelionato eleitoral do segundo governo Dilma, quando um banqueiro foi nomeado para a Fazenda e implementou a política neoliberal com os resultados que todos conhecemos. Essa tensão constante entre a burguesia querendo preservar seus interesses e o movimento social e popular buscando mudanças marcará o governo Lula ao longo dos próximos quatro anos, numa conjuntura que sofrerá ainda a presença nefasta das forças de extrema-direita.
Além disso, é bom lembrar que o Brasil é parte do sistema imperialista mundial e o próprio sistema internacional do capital vive uma grave crise, oriunda tanto de suas próprias contradições, como também da disputa geopolítica que se coloca na ordem do dia no plano internacional. Há atualmente uma disputa estratégica pela construção de uma nova ordem internacional entre China-Rússia-Eurásia e Estados Unidos, União Europeia e OTAN. Parte do destino da geopolítica mundial se joga na guerra da Ucrânia, na qual a Rússia enfrenta não somente a Ucrânia mas os países da OTAN, que realizam uma guerra por procuração através do fornecimento de suporte financeiro, com os armamentos mais sofisticados, inteligência e treinamento de soldados ucranianos e mercenários em vários países da Europa.
O resultado desse conflito terá um impacto profundo nas relações internacionais. Uma derrota da Rússia pode representar a destruição dessa nação multiétnica, com seu desmembramento em várias republiquetas como ocorreu na Iugoslávia. Uma derrota dos EUA-UE-OTAN pode significar a perda do monopólio da força por parte da OTAN, com o provável aprofundamento da decadência do império estadunidense e da velha ordem construída após o pós-guerra.
Com a guerra da Ucrânia, o imperialismo impôs um conjunto de sanções contra a Rússia, que incluíram o seu desligamento do sistema financeiro internacional, o confisco das reservas russas nos bancos ocidentais, a proibição de importações e exportações de produtos da Rússia, inclusive com a retirada de várias empresas ocidentais do país, entre outras medidas. O objetivo das sanções era desmontar a economia russa e colocar a Rússia de joelhos diante do Ocidente. No entanto, o tiro saiu pela culatra, pois as sanções não produziram os efeitos desejados e ainda resultaram numa espécie de efeito bumerangue.
A Rússia tomou uma série de medidas, como o controle do câmbio e a venda de todos os seus produtos em rublo, bem como direcionou suas exportações para a Eurásia e países que não participaram do boicote, grande parte desses produtos negociados em também em moedas locais. Vale ressaltar que a Rússia é a maior exportadora de gás, um dos maiores exportadores de petróleo, fertilizantes, além de outras matérias-primas fundamentais para a indústria do Ocidente. Rapidamente, os russos reorganizaram sua economia diante da nova conjuntura internacional, enquanto as nações capitalistas lideradas pelos EUA, principalmente na Europa, começaram a sofrer as consequências das sanções impostas à Rússia.
Com o fim das exportações de gás e petróleo para a Europa, começaram os problemas, pois os europeus dependiam em cerca de 40% do gás russo, que até então era vendido a um preço bem menor que o praticado no mercado internacional, em consequência dos contratos de longo prazo. A consequência direta do boicote foi o aumento extraordinário dos preços do gás na Europa e agora parte desse produto é vendida pelos Estados Unidos a um preço bem maior, além do fato de que a guerra repercutiu também no aumento de preços dos alimentos. Como resultado, veio a inflação, que já é a maior dos últimos 40 anos, bem como a quebra de empresas e a ameaça de recessão econômica por todo o continente.
Os Estados Unidos também estão sofrendo com as sanções, não só em função de seus problemas internos, como a crise econômica e a inflação acelerada, mas especialmente porque os gastos com a guerra na Ucrânia já começam a ser questionados internamente, tendo em vista que as sanções produziram efeito contrário ao esperado pelos Estados Unidos. Todos esses problemas estão levando o imperialismo a aumentar cada vez mais a pressão para que todos os aliados se incorporem à política de boicote à Rússia, até agora sem os resultados desejados. Vale destacar ainda que, na verdade, o inimigo estratégico dos Estados Unidos é a China, cuja economia vem sendo também boicotada, mas que tem demonstrando elevado grau de desenvolvimento econômico e tecnológico. A estratégia dos Estados Unidos era quebrar a economia russa, país com imenso poder nuclear e aliado da China, e assim tornar os chineses mais vulneráveis na disputa geopolítica internacional. Não está dando certo.
O que isso tem a ver com o Brasil? O Brasil não pode ficar neutro nessa disputa entre um mundo unipolar ou multipolar. Tudo indica que Lula seguirá a política externa do período anterior, com fortalecimento dos BRICs, da Celac, da multipolaridade, bem como do estreitamento das relações com a China, principal parceiro comercial do Brasil. Em condições normais essa posição política do Brasil poderia até ser aceitável para os Estados Unidos, mas diante de uma crise econômica mundial, da disputa com a China e seus aliados, da guerra na Ucrânia e da suposição de que a América Latina é o seu pátio traseiro, o imperialismo não vai assistir de braços cruzados uma política externa independente de um país do porte do Brasil. Portanto, além dos impactos que a crise econômica mundial poderá trazer e dos problemas internos que o governo terá que resolver, teremos ainda as pressões dos Estados Unidos por um alinhamento automático do Brasil à sua política internacional.
Não podemos ter nenhuma ilusão em relação ao imperialismo, que é capaz de tudo para defender seus interesses. Caso seja contrariado, poderão vir as conspirações, as sabotagens e tentativas de desestabilização do governo. Aí então é que mora o perigo, pois a burguesia brasileira, que sempre foi aliada do imperialismo, pode também conspirar para a saída de Lula. Já tem até o homem perfeito para a sucessão – Geraldo Alckmin, que não é tão desmoralizado quanto Temer ou um troglodita como Bolsonaro. Isso pode até não ocorrer, mas é sempre bom pensar todas as possibilidades para evitar surpresas ou frustrações!
O novo período que se abre na conjuntura brasileira será marcado por uma intensa trajetória de lutas sociais e populares, tanto contra a estrutura neofascista bolsonarista e contra a burguesia, quanto por mudanças profundas no país. A derrota eleitoral de Bolsonaro foi apenas o primeiro passo da luta contra o bolsonarismo que, como expressão política organizada, é um fenômeno novo na sociedade brasileira. Trata-se de uma organização criminosa com largos tentáculos internacionais, conta com apoio expressivo de setores da burguesia, entre parcela dos militares e, inclusive, em setores do proletariado e das camadas médias. Possui aparato financeiro expressivo, uma estrutura de comunicação digital extraordinária e apoio nas igrejas pentecostais e católicas conservadoras. Não hesita em promover badernas, violência, provocações, disseminar fake news para atingir seus objetivos e tumultuar a conjuntura. Trata-se de um movimento que age de maneira diferente da direita tradicional, não possui nenhum escrúpulo, é um inimigo cuja ética é o vale tudo para atingir seus objetivos. Portanto, não podemos combatê-lo com os mesmos métodos usados contra a velha direita e muito menos podemos imaginar um combate apenas na esfera institucional.
A nossa experiência tem demonstrado que o combate a essa extrema-direita, desde as manifestações do dia 29 de maio, deve ser feito principalmente com a pressão organizada das massas nas ruas, nos locais de trabalho, moradia e estudo. Só as massas nas ruas têm condições não só de combater o bolsonarismo mas especialmente de mudar a correlação de forças em favor dos interesses populares. Privilegiar a institucionalidade para combater o neofascismo é o primeiro caminho para a derrota. Até mesmo no período eleitoral isso ficou demonstrado claramente.
A tática de jogar parado, o mote de que o amor vai vencer o ódio ou mesmo a propaganda de lembrar um passado de fartura e mel não surtiu nenhum efeito no primeiro turno das eleições presidenciais. Pelo contrário, o bolsonarismo surpreendeu tanto na eleição presidencial quando nos pleitos estaduais, elegendo uma grande bancada conservadora e governadores nos três principais Estados brasileiros. Somente com a mudança de tática no segundo turno, quando se percebeu a necessidade de colocar as massas nas ruas, foi possível derrotar Bolsonaro. Essa é uma experiência que deveremos ter como norte nas lutas futuras não só contra a extrema-direita, mas também contra a burguesia e contra a política de conciliação de classes.
De nossa parte, faremos todo o possível para colocar bem alto a palavra de ordem das massas nas ruas para realizar as mudanças e abrir espaço para as transformações sociais. A crise orgânica do capitalismo brasileiro não será resolvida com a conciliação de classes nem com medidas paliativas porque a truculenta burguesia brasileira já demonstrou seguidas vezes que não está disposta a ceder em nada. Ela se sustenta com base na superexploração dos trabalhadores, na precarização do trabalho, nos baixos salários e convive tranquilamente com a barbárie social em que estamos vivendo. Além disso, em períodos de crise aguda, a margem para conciliar os interesses dos trabalhadores com os da burguesia torna-se muito estreita.
Só uma mudança clara na correlação de forças em favor das classes populares será capaz de abrir espaço para a realização das mudanças profundas de que o povo trabalhador necessita. Essa mudança só pode ocorrer quando milhões decidirem colocar na ordem do dia os seus interesses, quando milhões forem capazes de impor nas ruas e nos locais de trabalho a força de sua maioria social. Esta não é uma tarefa fácil, mas se não colocarmos como tarefa central da esquerda nessa nova conjuntura a luta pela mudança na correlação de forças, mais uma vez veremos ocorrer o pacto das elites tão comum em nosso país.
Sabemos também que o próximo período será marcado por uma disputa ideológica muito intensa entre aqueles que querem pôr um freio no movimento operário e popular, com receio de contrariar os aliados, e as forças que querem construir um poderoso movimento de massas, com independência política e orgânica em relação ao Estado e à burguesia, como forma de obter as necessárias transformações sociais. O resultado dessa disputa terá um papel importante sobre os rumos do governo e o destino do país nos próximos anos.
Nessa nova conjuntura é fundamental a reorganização do movimento sindical, que hoje não está mais à altura da necessidade da luta de classes, bem como é importante a reorganização dos movimentos de juventude e de suas entidades, de forma que possam ter o mesmo papel histórico que tiveram nos momentos mais definitivos da história do país. Outro setor que precisa de reorganização é o movimento dos bairros, que teve protagonismo nos anos 80, mas que perdeu esse protagonismo e hoje se encontra aparelhado por interesses que não têm nada a ver com as necessidades das populações que moram nessas regiões. Ou seja, a reconstrução do movimento operário e popular é parte fundamental da construção de um grande movimento organizado de massas.
A construção de um grande movimento popular não cai do céu nem surge por geração espontânea. É um fato da vida que o movimento operário entrou em refluxo entre 2016-2021 (Tabela 1), em consequência da cooptação das direções sindicais e populares pelo social-liberalismo, do golpe de 2016 e da ofensiva contra os trabalhadores, bem como do enorme exército industrial de reserva resultado da crise econômica. Nessas novas condições da crise brasileira, é urgente a emergência de novos sujeitos revolucionários, tanto na área sindical, popular e partidária, com propostas que estejam em aderência ao novo ritmo da luta de classes que se abrirá no próximo período. Está evidente que as principais direções dos movimentos sindical, popular e de juventude falharam miseravelmente, estão acomodadas, buscando apenas a sobrevivência nos aparelhos que dirigem e não dispõem de condições de liderar um novo ciclo de lutas.
Tabela 1
Número de greves: funcionários públicos, estatais e setor privado (2016-2021)
Setores
2016
2017
2018
2019
2020
2021
Funcionários Públicos
979
728
718
523
192
80
Empresas Estatais
121
86
73
43
39
31
Empresas privadas
986
746
655
548
417
252
Total
2.093
1.566
1.453
1.118
649
366
Fonte Dieese – Balanço de greves (vários números)
Em outros termos, tanto a pandemia e o desemprego quanto os violentos ataques de Temer e Bolsonaro aos trabalhadores levaram ao refluxo das lutas, mas não é difícil constatar que existe, mesmo que ainda difusa, uma enorme insatisfação da população diante de suas péssimas condições de vida. Essa insatisfação foi contida pelas vicissitudes da conjuntura mas agora poderá emergir com intensidade, uma vez que as amarras que a continha estão desobstruídas. Ao longo da história, nenhuma sociedade deixou de lutar quando a crise chegou a um limite insuportável. E a crise brasileira está chegando ao limite do insuportável.
É preciso agir no sentido de que o próximo período seja marcado pela entrada em cena do movimento operário e popular, especialmente porque agora o movimento não está mais envolvido na disputa eleitoral. A provável retomada do crescimento econômico e do emprego e as novas condições políticas do país abrem para o movimento operário e popular a possibilidade de se colocar na ordem do dia com toda a potencialidade represada após esse ciclo de refluxo.
Como a história nos tem ensinado, nos ascensos da luta de massas, pela própria dinâmica dessas lutas, surgem novas lideranças proletárias, novas lideranças sociais. Portanto, esse será o momento ideal para as forças revolucionárias, que vêm há tempos realizando uma luta renhida contra o reformismo e alertando para a necessidade da luta popular, estreitar seus laços com essas novas lideranças, tanto por suas propostas quanto pela força moral do reconhecimento dos anos em que navegou na contramão da política conciliadora. Para essa nova etapa, é necessário ousadia revolucionária, muito trabalho de base, aliado a uma plataforma concreta com propostas viáveis que falem diretamente sobre as necessidades mais urgentes das massas, que busque organizá-las para a luta e, num momento posterior, possam costurar as medidas emergenciais com propostas estratégicas que apontem no sentido das transformações estruturais.
É fundamental no próximo período desenvolver a agitação e propaganda em torno de um conjunto de propostas emergenciais que calem fundo no coração e na mente das massas, como emprego para todos, jornada de trabalho de 30 horas sem redução de salários, reajuste do salário mínimo acima da inflação e recuperação das perdas salariais do período neoliberal, fim do teto dos gastos e da Lei de Responsabilidade Fiscal e introdução da Lei de Responsabilidade Social para liberar recursos para saúde, educação, transporte e moradia, reforma agrária e urbana, além da revogação de todas as contrareformas, especialmente as reformas trabalhista e previdenciária. Essas medidas devem ser combinadas, quando as massas estiverem em movimento, com medidas mais estruturais como estatização do sistema financeiro, revogação das privatizações, além de uma política de desenvolvimento voltada para os interesses populares. Esse conjunto de propostas é um bom pontapé inicial para o debate sobre um programa estratégico dos trabalhadores rumo à construção do poder popular e do socialismo.
É bem verdade que o peleguismo cor-de-rosa vai procurar de todas as formas frear o debate e, especialmente, a organização das massas. Esses setores têm também forte laços formais com o proletariado porque ainda dirigem a maioria de suas entidades, mas a relação direta com as massas como ocorria no passado não existe mais. Além disso, a crise brasileira, como momento da verdade para todos, se encarregará de demonstrar a incapacidade desses novos pelegos de liderar o novo ciclo de lutas porque estão viciados nos acordos de gabinete, na conciliação de classes e na acomodação diante das necessidades da luta de classes. Perderam a capacidade de lutar e vão alegremente ser cooptados pelo governo, como foram no ciclo anterior. Tanto o ciclo anterior petista quanto os anos de ofensiva reacionária demonstraram a covardia e a incapacidade desses dirigentes de organizarem a luta dos trabalhadores. Por isso, a necessidade estratégica da reorganização do movimento operário e popular nesse ciclo que se abre com a eleição de Lula.
Independentemente do que aconteça no governo Lula, a luta de classes não vai tirar férias. O novo governo, em função das alianças que realizou para disputar as eleições, terá pouca margem de manobra para tomar as medidas necessárias à solução dos problemas centrais colocados pela crise. Para tanto, teria que romper com o bloco que o elegeu, o que é bastante improvável. Além disso, há ainda a crise econômica mundial, que deverá ter também impactos negativos na economia brasileira. O mais provável é que seja realizado um programa mais rebaixado que no ciclo anterior, com medidas de compensação social como no passado, mas sem romper com os fundamentos do modelo neoliberal. Numa nação como o Brasil qualquer alívio na vida do povo é benvinda e tem uma repercussão favorável junto à população, mas a crise orgânica do capitalismo brasileiro precisa ser resolvida e não será com medidas paliativas que se colocará o país em um novo rumo.
Nessa conjuntura, os comunistas deverão colocar todos os seus esforços com vistas à reorganização do movimento operário, popular e da juventude, intensificar o trabalho de base junto aos trabalhadores, em aliança com outras organizações de esquerda, na perspectiva da construção de uma frente social e política classista que reúna todos os movimentos sociais, populares e de juventude que estejam dispostos a disputar nas ruas e locais de trabalho o destino da nova conjuntura brasileira. No que se refere especificamente aos comunistas, é fundamental colocar em movimento todo o Partido e nossos Coletivos de luta para cumprir essa tarefa histórica que a luta de classes está nos colocando. Tenho absoluta confiança de que a nossa militância, mais uma vez, estará à altura desse novo desafio. Ousar Lutar, ousar vencer!
Edmilson Costa é secretário geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB)
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