A intervenção palaciana e o bobo sem côrte: a dialética da cena política
Milton Pinheiro (1)
A atual conjuntura brasileira é como aquele pássaro que quando mais nos aproximamos ele cria uma nova rota de fuga. A individualização das posições do militar-presidente, na sua lógica bonapartista, bem como o surto de autonomização de setores do governo, tem impactado uma parte do laboratório da pequena política que governa o país nesse momento de grave crise institucional. A letalidade do quadro político passa pela crescente presença da pandemia entre nós; pela forma ultraconservadora, do ponto de vista econômico, do ministro da economia; pelos comentados embates palacianos; pela presença de hordas neofascistas em presença pública do presidente; e por uma resistência virtual importante de segmentos das classes trabalhadoras e da esquerda socialista e uma importante articulação de ampla unidade de ação entre partidos de esquerda, partidos de centro, social-democracia e entidades de trabalhadorxs. Esse amálgama diverso estabeleceu uma imprevisibilidade importante que tende a desvelar a cena política e se apresentar com fortes posições no chão da luta de classes.
O projeto inicial de caos controlado do militar-presidente deu lugar ao previsto movimento da incapacidade política e a ampla divulgação do obscurantismo científico (diante do coronavírus), este último, lançado de forma jactante para animar as hordas neofascistas que transitam nas suas aparições, mas também, nas redes de contágio e na tentativa, cada vez menos bem sucedida, de organizar manifestações públicas.
É perceptível na conjuntura célere que, cada vez mais, Bolsonaro alimenta politicamente a lógica do isolamento político do seu governo como uma aposta/opção para falar diretamente com as hordas neofascistas. Esse movimento arriscado, até para o militar-presidente, comprova fissuras ainda importantes entre as frações da burguesia interna, desinteresse em manter a lógica da democracia formal nos patamares da institucionalidade e uma tentativa imprevisível de se conectar - de forma particular - com o alargamento das balizas da autocracia burguesa como projeto de dominação.
Esse movimento de aposta nas hordas sem limites é um cálculo racional que o bolsonarismo está trabalhando para diminuir as perdas políticas que a crise atual infligiu ao seu projeto. Mas até que ponto as hordas neofascistas encasteladas no aparato de Estado (polícia, forças armadas, segurança privada...) teriam capacidade de agir em articulação com os "soldados da fé" - com os radicais neopentecostais - com a parte racista da pequena burguesia (classe média) que se encontram difusa na sociedade brasileira? Por essa possibilidade de articulação da extrema direita e pela capacidade da esquerda brasileira, juntamente com as organizações da classe trabalhadora de intervir na cena política passa a disputa central do atual estágio da luta de classes no Brasil.
Cresce a informação de uma provável intervenção, dos militares palacianos, na forma política até aqui utilizada por Bolsonaro para exercer o papel de chefe de governo. Informações difusas dão conta que esse grupo, também de extrema direita, não estaria satisfeito com a visão do presidente sobre o vírus, a China, o papel do ministério da saúde, a interlocução com o Congresso Nacional, a falta de controle sobre o que falam seus filhos e o varejo da conduta presidencial. Abriu-se, então, algumas sinalizações: em sendo confirmado esse movimento da tropa palaciana como se comportaria Bolsonaro diante das hordas neofascistas? As tropas do palácio cuidam dos negócios do governo e o presidente continuaria fazendo animação cultural para sua base social? Bolsonaro arriscaria passos radicais diante desse impasse? Ou a Casa Grande da República agiria em articulação com a tropa palaciana para dar racionalidade política, nos termos da democracia formal, ao seu projeto de dominação e avançar sobre o fundo público com maior tranquilidade?
A história da humanidade já comprovou que a burguesia nunca ficou estática na janela da luta de classes. Mesmo no Brasil, quando os militares conformados na lógica do inimigo interno e da conduta entreguista no campo da soberania nacional operaram contra a democracia formal, foi para alargar as balizas da autocracia burguesa. Agindo como burocracia de Estado ou não. A contradição elementar dessa lógica é como se portará o militar-bonapartista na construção do seu projeto. Terá Bolsonaro a necessária base social para efetivar esse domínio? Muitas outras questões estão incidindo sobre essa particularidade da condensação de crises.
O que está em debate, no campo real e concreto, é o confronto pela vida e pelo futuro. A mudança célere na relação de força tem alterado as movimentações no campo da esquerda e das organizações dos trabalhadores. Cresce a constituição de uma ampla articulação em torno da unidade de ação que pode aglutinar as forças de oposição ao projeto bonapartista. Reagir à tentativa de golpe e avançar na campanha do FORA BOLSONARO/MOURÃO é a concretização de uma palavra de ordem que pode vencer entre as massas pobres e os trabalhadores. Em um momento de pandemia mundial, quando o Estado capitalista está se mostrando vulnerável, é importante tencionar pela afirmação do que é público e comunal.
Ainda se encontra no campo das possibilidades, nesse momento de fratura da democracia formal, movimentos de fechamento da democracia formal. Os golpistas espreitam a cena política; uma névoa turva ainda impede o desvelamento completo desse cenário. No entanto, é importante também reafirmar que a correlação de forças tem alterado de forma muito positiva, para o campo oposicionista e de esquerda, a contenda política. Está se abrindo um amplo espectro para o cenário da luta de classes, qual será o movimento da classe trabalhadora e das vanguardas socialistas?
A lógica da história, até o presente, nos avisa que nenhuma pandemia possibilitou e/ou realizou a revolução proletária. Pode-se até, a depender das saídas vitoriosas, a ordem do capital entrar em um novo surto de acumulação. Contudo, para aqueles que lutam de frente para a história caberá um papel determinante na luta de classes: superar qualquer possibilidade de conciliação e marchar para confrontar o inimigo. O tempo presente afirma que ele é forte, poderoso, mas, a classe trabalhadora com seus instrumentos de operação política poderá construir um novo patamar da ruptura necessária: o poder popular e a revolução brasileira.
[1] Milton Pinheiro é Cientista Político, professor titular de história política da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), integra os conselhos editoriais de várias revistas marxistas e é pesquisador na USP. É autor/organizador de oito livros, entre eles, Ditadura: o que resta da transição (São Paulo, Boitempo, 2014).
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