Donas de casa protagonizaram a luta que levou à criação do SUS

Donas de casa protagonizaram a luta que levou à criação do SUS

 

Mayara Paixão

25/09/2019


Antes do SUS, cri­anças mor­riam de sa­rampo, ca­ta­pora, pa­ra­lisia in­fantil e ou­tras do­enças cu­rá­veis, re­lata li­de­rança do mo­vi­mento po­pular. / Foto: Re­pro­dução/Do­cu­men­tário "MSZL - Um povo de luta"

Há 29 anos, o Sis­tema Único de Saúde (SUS) foi re­gu­la­men­tado por meio da Lei 8.080. Em 19 de se­tembro de 1990, a pri­meira Lei Or­gâ­nica do SUS re­gu­la­mentou al­guns dos prin­cí­pios co­lo­cados na recém-de­cre­tada Cons­ti­tuição Ci­dadã. Entre eles es­tavam a uni­ver­sa­li­dade do acesso, o di­reito de par­ti­ci­pação da co­mu­ni­dade na gestão do sis­tema e o fi­nan­ci­a­mento com­par­ti­lhado entre União, es­tados e mu­ni­cí­pios.

Em um Brasil que res­pi­rava os ares da re­de­mo­cra­ti­zação, a lei foi in­ter­pre­tada como uma con­quista do di­reito à saúde pú­blica e de qua­li­dade. Nos anos que se se­guiram, o SUS, hoje alvo de po­lí­ticas de aus­te­ri­dade, se torna uma re­fe­rência in­ter­na­ci­onal.

No ani­ver­sário da Lei 8.080, o Brasil de Fato re­lembra como era a re­a­li­dade bra­si­leira antes do SUS, através da voz e me­mória de bra­si­leiras e bra­si­leiros que par­ti­cipam do Mo­vi­mento de Saúde da Zona Leste de São Paulo, um dos grupos ativos na mo­bi­li­zação para que o sis­tema pú­blico e gra­tuito fosse im­ple­men­tado.

A dé­cada era a de 1970. A Pre­si­dência da Re­pú­blica es­tava ocu­pada pelo ge­neral Er­nesto Geisel, quarto pre­si­dente da di­ta­dura mi­litar bra­si­leira (1964-1985). Os in­di­ca­dores so­ciais mar­cavam nú­meros pre­o­cu­pantes. A mor­ta­li­dade in­fantil, por exemplo, era de 120 óbitos para cada mil nas­ci­mentos.

A saúde, um di­reito bá­sico, pouco aces­sível para a massa da po­pu­lação. O SUS ainda não existia. O aten­di­mento gra­tuito só es­tava as­se­gu­rado para aqueles e aquelas que ti­nham car­teira as­si­nada e con­tri­buíam com a Pre­vi­dência So­cial.

A par­cela que não se en­qua­drava neste perfil tinha que re­correr a con­sultas pagas ou aos poucos equi­pa­mentos de saúde mu­ni­ci­pais e es­ta­duais, nos quais apenas mu­lheres e cri­anças pe­quenas ti­nham aten­di­mento ga­ran­tido.

Em São Paulo, a si­tu­ação chamou a atenção dos mo­ra­dores da zona Leste do es­tado, em es­pe­cial das donas de casa. No bairro Jardim Nor­deste, lo­ca­li­zado no dis­trito de Arthur Alvim, foi onde ini­ciou uma mo­bi­li­zação im­por­tante.

"Aquela época apa­receu uma mor­ta­li­dade in­fantil com o sa­rampo ma­tando todo mundo, a ca­ta­pora, pa­ra­lisia in­fantil (...) As cri­anças já nas­ciam da bar­riga da mãe cegas ou alei­jadas". O de­poi­mento é de Jus­te­lita dos Santos, hoje com 80 anos.

Uma das muitas nor­des­tinas que mi­grou para a re­gião no sé­culo 20 em busca de me­lhores con­di­ções de vida. Jus­te­lita chegou no Jardim Nor­deste quando as ruas de as­falto eram poucas e o ho­ri­zonte pre­en­chido por plan­ta­ções de eu­ca­lipto. Os equi­pa­mentos de saúde eram es­cassos. A re­gião não con­tava com ne­nhum posto de saúde.

En­quanto os ma­ridos tra­ba­lhavam longas horas do dia como ope­rá­rios das fá­bricas do ABC pau­lista, a di­fícil re­a­li­dade levou Jus­te­lita e ou­tras donas de casa a se or­ga­nizar.


Pas­seata re­a­li­zada pelos mo­vi­mentos or­ga­ni­zados nos bairros. | Foto: Ar­quivo Pes­soal Claudia Afonso.

"Juntou dez donas de casa daqui do Jardim Nor­deste. Nós co­me­çamos a pensar e chorar, porque não sa­bíamos que jeito dar na­quilo. Todo dia, sen­tá­vamos as dez donas de casa para dis­cutir o pro­blema da saúde pú­blica, o que podia fazer. E a gente não tinha nada, nós não sa­bíamos o que era saúde pú­blica, não sa­bíamos como dis­cutir os pro­blemas", re­lembra a li­de­rança.

Com medo da re­pressão po­li­cial, elas se reu­niam es­con­didas em uma pe­quena sala nos fundos da Pa­ró­quia Santa Luzia. Poucos meses de­pois da pri­meira reu­nião, as donas de casa co­nhe­ceram outro grupo que viria a con­tri­buir para a luta por mais equi­pa­mentos pú­blicos na re­gião, for­mado por mé­dicos e jo­vens es­tu­dantes de me­di­cina.

Em plena di­ta­dura mi­litar, os pro­fis­si­o­nais se di­ri­giram para a pe­ri­feria da zona leste. A ideia era con­versar com a po­pu­lação. O ob­je­tivo era cons­ci­en­tizar as pes­soas sobre os fa­tores que in­flu­en­ci­avam no ado­e­ci­mento, a falta de equi­pa­mentos pú­blicos e a de­si­gual­dade.

Entre estes jo­vens es­tu­dantes es­tava o sul-mato-gros­sense Carlos Neder, es­tu­dante de me­di­cina na Uni­ver­si­dade de São Paulo (USP). Ativo no mo­vi­mento es­tu­dantil, ele e ou­tros co­legas usavam a me­di­cina como um ins­tru­mento po­pular para cons­ci­en­tizar o povo sobre o di­reito à saúde.

Eles se or­ga­nizam, e nós também

O pe­ríodo também marcou o res­sur­gi­mento de um novo sin­di­ca­lismo. As greves do ABC foram um dos fa­tores que in­flu­en­ci­aram os mo­ra­dores do bairro do Jardim Nor­deste, for­mado por uma grande massa de ope­rá­rios.

"É in­te­res­sante ob­servar que, à me­dida que foi avan­çando a or­ga­ni­zação da luta do ope­ra­riado no ABC, havia a ne­ces­si­dade de uma or­ga­ni­zação em âm­bito po­pular", conta Carlos Neder, mé­dico sa­ni­ta­rista, mestre em Saúde Pú­blica pela Uni­camp e ex-de­pu­tado es­ta­dual.

"A mai­oria dos ope­rá­rios era for­mada por ho­mens e mu­lheres que se sen­tiam in­cum­bidas de ga­rantir a so­bre­vi­vência, edu­cação, o mí­nimo ne­ces­sário para que a fa­mília pu­desse ter a sua sub­sis­tência ga­ran­tida", com­pleta.

A união das donas de casa e dos jo­vens mé­dicos pos­si­bi­litou a des­co­berta de uma brecha na le­gis­lação. A lei do es­tado de São Paulo as­se­gu­rava a exis­tência de con­se­lhos de saúde para fis­ca­lizar a atu­ação do poder pú­blico. A po­pu­lação, que uti­li­zava os ser­viços, es­tava, no en­tanto, ex­cluída desses es­paços. Só fa­ziam parte fi­guras como de­le­gados, pa­dres e freiras.

"Di­a­lo­gando com a po­pu­lação, en­ten­díamos que as pes­soas que usavam o ser­viço é que de­ve­riam re­pre­sentar a po­pu­lação no con­selho. E que ele de­veria ser eleito de tal ma­neira que fosse co­nhe­cido por toda a co­mu­ni­dade, e a co­mu­ni­dade sou­besse a quem re­correr quando da apre­sen­tação de uma queixa, ou uma su­gestão", ex­plica Neder.

Ini­ciava-se ali uma luta para que o povo pu­desse estar re­pre­sen­tado nos con­se­lhos de Saúde.

As re­pre­sen­tantes do povo

Era 1978. Ano em que o Brasil com­ple­tava 14 anos sob o co­mando dos mi­li­tares. Sob o olhar da re­pressão, da cen­sura e de elei­ções in­di­retas, 12 donas de casa mos­traram que a or­ga­ni­zação po­pular pode surtir efeito.
"Não havia eleição. Elas ti­raram suas pró­prias fo­to­gra­fias. Fi­zeram as urnas em caixas de sa­pato. Fi­zeram as cé­dulas. Fre­quen­tavam as feiras, igrejas e lo­cais pú­blicos para co­lher votos da po­pu­lação para que elas fossem eleitas. E foram eleitas com uma vo­tação con­sa­gra­dora de 8.146 pes­soas", re­lembra o sa­ni­ta­rista.

Após a eleição, uma grande ca­ra­vana for­mada por 60 ônibus cheios de mo­ra­dores da zona Leste tomou a frente da Se­cre­taria de Saúde do es­tado. Foi sob pressão po­pular que as con­se­lheiras foram re­co­nhe­cidas ofi­ci­al­mente pelo poder pú­blico. A partir daí, os con­se­lhos pas­saram a ser eleitos pelo povo.

Ao pensar no pe­ríodo, Jus­te­lita des­taca a im­por­tância da mo­bi­li­zação das donas de casa. "Às vezes, o povo pensa que é o go­verno, o po­lí­tico, mas não foi, não. É um pro­jeto feito por nós. Doze donas de casa se­mi­a­nal­fa­betas ainda por cima. Bem poucas sa­biam ler e es­crever".

Oito anos de­pois, com a res­tau­ração da de­mo­cracia, a Cons­ti­tuição bra­si­leira de 1988 to­maria como base as de­mandas dos mo­vi­mentos re­gi­o­nais para es­ta­be­lecer o Sis­tema Único de Saúde (SUS), uni­versal e gra­tuito.

Edição: Ka­ta­rine Flor e Ce­cília Fi­guei­redo
Pu­bli­cado ori­gi­nal­mente em Brasil de Fato.

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey