Militarização da América do Sul, Golpe na Bolívia e a reaproximação da Argentina às potências eurasiáticas
Por Fabio Reis Vianna, escritor e analista geopolítico
No último dia 29 de outubro, o Ciclo de Seminários de Análise da Conjuntura Mundial, organizado pelos professores Monica Bruckmann e Franklin Trein, recebeu no Salão Nobre do IFCS-UFRJ, no Rio de janeiro, a ilustre presença do ex-vice-presidente do Banco de Desenvolvimento dos BRICS, o professor Paulo Nogueira Batista.
Em meio ao peculiar momento de convulsões sociais que se espalham pelo mundo, discutiu-se a Nova Rota da Seda, grande projeto chinês de integração geoeconômica da Eurásia por vastas redes de estradas, trens de alta velocidade, gasodutos, cabos de fibra ótica e portos, e que beneficiará milhões de pessoas (incluindo a Europa Ocidental, e incidentalmente, o continente africano e a própria América Latina).
Para isso, três instituições criadas na órbita deste projeto cumpririam papel fundamental: O Silk Road Fund, o AIIB ( Banco de investimento e infraestrutura da Ásia), e o NBD ( Banco de Desenvolvimento dos BRICS).
Sendo o Estado brasileiro acionista e fundador do NBD, muitos projetos de financiamento oriundos desta instituição global já poderiam ter sido aprovados e seriam muito bem vindos à cambaleante economia brasileira. Porém, não obstante nos últimos anos, especificamente de 2003 a junho de 2018, empresas chinesas terem investido quase 54 bilhões de dólares em mais de 100 projetos, segundo dados do próprio governo brasileiro, a partir de 2017, os investimentos caíram vertiginosamente.
Segundo estudo do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), os investimentos chineses no Brasil somaram 8,8 bilhões de dólares em 2017 e não mais que 3 bilhões de dólares em 2018. Uma queda de 66%.
O aprofundamento do enquadramento brasileiro a órbita imperial norte-americana diz muito sobre isso.
Com a institucionalização da Nova Estratégia de Defesa dos Estados Unidos, promulgada em 18 de dezembro de 2017, oficializou-se o que na prática já vinha ocorrendo desde meados de 2012, com a aceleração da disputa interestatal e a escalada da competição mundial: o reposicionamento norte-americano no xadrez geopolítico mundial de maneira cada vez mais agressiva e unilateral.
Deixando de lado a retórica multilateralista promovida ao longo do século passado, os norte-americanos, diante do fortalecimento das potências "revisionistas" Rússia e China - questionadoras da centralidade americana no uso das regras e instituições criadas e geridas de maneira unilateral durante todo o século XX -, agora procuram impor sua vontade, sem concessões, aos países do chamado Hemisfério Ocidental. Região ao qual os Estados Unidos se atribuem, por direito, o pleno exercício da soberania, por considerarem sua zona de influência direta, inadmitindo assim, qualquer contestação à sua supremacia, nem mesmo, qualquer aliança estratégica de países que possa criar um polo alternativo de poder; muito menos no Cone Sul do continente.
Sendo assim, a postura de total alinhamento do atual governo brasileiro aos interesses da administração Trump, em muito diz respeito a este enquadramento do Hemisfério Ocidental à estratégia de contenção do expansionismo dos atores eurasiáticos.
Se o aprofundamento do projeto eurasiático e da parceria estratégica sino-russa- dentro da teoria do controle do heartland de Mackinder- já seria inadmissível por si só, então a participação de um grande país do Hemisfério Ocidental como protagonista de uma instituição contestadora de antigas normas estabelecidas e reguladas pelo hegemon, já seria demais: era preciso separar o Brasil de Rússia e China custe o que custar, mesmo que para isso o país tenha que arcar com o preço de ver suas instituições destruídas e envolvido no labirinto de um quase fechamento militar de regime.
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Os últimos meses tem sido de muita agitação em várias e diversas partes do mundo; em particular na América do Sul.
Mesmo que por motivos não exatamente similares, principalmente nos casos específicos de Peru e Bolívia, os protestos populares ocorridos no Equador e no Chile teriam em comum as características de uma reação, quase natural, de autoproteção destas sociedades às políticas restritivas neoliberais.
Como se fora uma velha ironia da história, bem no momento em que vivemos o esgarçamento da competição interestatal, surge uma correia de transmissão espalhando por vários países, tão distantes quanto díspares entre sí, a fagulha dos protestos sociais.
Curiosamente, essa potente e perigosa combinação entre insatisfação social e acirramento de conflitos entre países, em outras épocas da história acabaria por configurar-se naquele período de transição entre os ciclos finais e de reconfiguração do grande tabuleiro do sistema mundial.
Diante disso, é importante ressaltar o risco de uma característica em comum que vem aos poucos se delineando em alguns países da América do Sul: a militarização.
Com o acirramento dos conflitos globais, o enquadramento da América do Sul à estratégia norte-americana de contenção dos adversários eurasiáticos e diante das agitações populares à deterioração dos padrões de vida, surge a lamentável opção pela imposição da ordem nua e crua, trazendo de volta ao cenário politico desses países a presença dos militares como garantidores da estabilidade institucional.
Caminha-se na região para um cenário em que governos eleitos, enfrentando a crescente agitação interna, passariam a depender dos militares para sobreviver.
Os recentes acontecimentos no Peru, Equador e Chile não deixam mentir. Fora o fato de que o Brasil já vive sob a sombra de uma velada tutela militar às suas instituições.
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O ponto fora da curva desta história é a Argentina e a impressionante vitória eleitoral da oposição peronista (num momento em que o uso de ferramentas de desestabilização tem sido frequentes para interferir em resultados eleitorais, como no caso da propagação em massa de fake news via Whatsapp em favor de Jair Bolsonaro no Brasil).
Contra todas as tendências, em uma região acossada pela interferência cada vez mais agressiva dos Estados Unidos, a Argentina caminha para a retomada de um projeto de nação autônomo e soberano.
Diante da bem sucedida, por hora, destruição da aliança estratégica Brasil-Argentina, que vinha se fortalecendo desde a redemocratização das duas nações em meados dos anos 80, caberá àquele país o complexo desafio de buscar expandir sua inserção internacional sem o seu antigo parceiro de Mercosul.
Algo interessante dito pelo professor Paulo Nogueira Batista, no Ciclo de Seminários de Análise da Conjuntura Mundial, diz respeito a atual postura chinesa diante da agressividade e truculência da administração Trump: paradoxalmente, tal agressividade estaria contendo o ímpeto expansionista chinês dos últimos anos na América do Sul, o que, segundo o professor, poderia abrir ótimas oportunidades para os países da região barganharem acordos mais favoráveis aos chineses. Com o engessamento do Brasil e o seu alinhamento cego à Nova Estratégia de Defesa dos Estados Unidos, abre-se à Argentina a oportunidade não só de barganhar acordos comerciais favoráveis, mas ocupar o espaço deixado vago pelo Brasil no projeto de integração eurasiático.
Como bem disse o professor Paulo Nogueira Batista, os BRICS e em especial o seu banco de desenvolvimento (NBD), estariam caminhando para um processo de ampliação de seus participantes.
Na nova configuração geopolítica mundial, em que o acirramento da disputa global aumenta a necessidade das potências competidoras em garantir sua segurança energética, a América do Sul já é vista por muitos analistas como o novo centro de gravidade da produção mundial de Petróleo, em substituição ao Oriente Médio. O Golpe de Estado na Bolívia é um sinal claríssimo de que o jogo a partir de agora tenderá a ser mais pesado.
Como bem alertou o maior especialista em assuntos geopolíticos do Brasil, professor José Luís Fiori, "O petróleo não é a causa de todos os conflitos do sistema internacional. Não há dúvida, entretanto, de que a grande centralização de poder que está em curso no sistema interestatal também está transformando a permanente luta pela "segurança energética" dos Estados nacionais numa guerra entre as grandes potências pelo controle das novas reservas energéticas que estão sendo descobertas nos últimos anos. Uma guerra que se desenvolve palmo a palmo, e em qualquer canto do mundo, seja no território tropical da África Negra ou nas terras geladas do Círculo Polar Ártico; seja na turbulentas águas da Foz do Amazonas ou na inóspita Península de Kamchatka".
Curiosamente, bem pouco tempo antes do violento Golpe de Estado ao estilo clássico desferido contra o presidente Evo Morales, o governo daquele país havia anunciado planos de nacionalizar sua produção de Lithium.
A demanda global por Lithium, essencial na produção de baterias de telefones celulares, Laptops e carros elétricos, tende a triplicar nos próximos 15 anos.
Não por coincidência, as maiores reservas mundiais de Lithium se encontram exatamente na Bolívia.
A se confirmar esta tendência, não cabe outra alternativa a países baleia como Brasil e Argentina do que retomarem o projeto estratégico sul-americano sob risco de terminarem seus dias fragmentados e engolidos por interesses e disputas de potências externas à região.
Por hora, cabe a Argentina caminhar sozinha e por necessidade, ampliar os laços econômicos e geopolíticos com China e Rússia porque a tendência é o país tornar-se alvo das próximas campanhas de desestabilização, guerras de "quarta geração" e asfixia econômica desferidas sempre sorrateiramente pelo hegemon.
Referências: Fiori, José Luís, Geopolítica e Fé. Disponível em: https://jornalggn.com.br/geopolitica/geopolitica-e-fe-por-jose-luis-fiori/?fbclid=IwAR1IEPB6xbYL9BOpClmpyeUbonPPsIRPP-BQS7L_dqxZI0sr05jTHQ1Av64
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