Adilson Roberto Gonçalves
Considero uma postura misógina quando se pergunta qual a vantagem de haver mais mulheres no parlamento, pois a mesma questão não se apresenta para a necessidade de mais homens ali. Para ficar claro, a partir de uma maior quantidade de mulheres nos poderes e outras esferas de decisão, haverá maior escolha entre elas, com a possibilidade de refinar sua qualidade representativa e política. Sempre haverá as de extrema-direita e doutrinadoras religiosas como há entre os homens, em número muito mais expressivo hoje.
Isso levaria a discussões mais claras sobre vários temas, tal qual o direito de abortar, tese que deve ser defendida, ainda mais que a proibição da interrupção da gravidez indesejada incorre na chamada dupla punição à mulher. A excrescência do “estatuto do nascituro” carrega o rótulo de “estatização do útero”, pois é essa ingerência no corpo feminino que se propõe. A recente decisão do TJ-SP e o possível voto de Rosa Weber no STF mostram que a descriminalização do aborto pode acontecer, se não for pela biologia, que seja pela argumentação jurídica perfeita.
Há que se considerar que magistrados têm legislado e advogado para além da interpretação das leis que lhe cabem. Se benéfico quando no ativismo recente do TSE para impedir golpes de Estado, na chamada pauta de costumes, regredimos. Aborto junto à eutanásia são temas importantes para a sociedade moderna, sensível a muitos, incluindo o que está vivendo situação de degradação hospitalar de um parente. Não precisamos ir na literatura estrangeira para se inspirar, pois “Por um fio”, de Drauzio Varella, traz várias dessas situações de pré-morte, incluindo o irmão do autor. No mais, eutanásia e aborto deveriam ser urgentemente colocados exclusivamente na seção saúde pública. Não entendo a perversidade dos crentes que cultuam o sofrimento alheio apenas para satisfação religiosa pessoal e, pelo que se vê, interferem fortemente no Judiciário. Sabemos, no entanto, que a bancada evangélica tem o mesmo princípio da do agronegócio: defender seus interesses financeiros, nada mais. Mesmo que se tente dar alguma objetividade religiosa a tal grupo, não é o que está em pauta num mundo dividido entre fiéis (pagadores) e pastores (receptores). E conseguem enganar até gente boa de que apenas está refletindo os anseios desta santa sociedade cristã.
No caso específico da mulher negra no Direito, se eu entendi corretamente o artigo de Marina Pinhão Coelho Araújo (“No direito, o humano não é feminino”, Folha de S. Paulo, 6/2), aumentar o espaço da participação da mulher negra no sistema jurídico seria apenas um pequeno passo para o equilíbrio advogado no texto. Digo isso porque no governo que tragicamente ocupou Brasília nos últimos quatro anos, alguns negros e mulheres foram colocados em posições importantes, mas fizeram gestões desastrosas no que seria a defesa de interesses de tais grupos. A mudança de perspectiva para uma ação mais humana do Direito deve ser de toda a sociedade, pois mesmo a mulher negra está “contaminada” com o ideário do homem branco.
Assim, entre a dúvida de comemorar ou não a efeméride que lembra a luta, mas também a morte de mulheres, deixo a seguinte trova: Ser mulher é um desafio / em sociedade machista, / tudo fica por um fio / se o sucesso fica à vista.
Adilson Roberto Gonçalves, pesquisador da Unesp, membro da Academia de Letras de Lorena, da Academia Campineira de Letras e Artes, do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas e do Instituto de Estudos Valeparaibanos.
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