Helio Brasil e os delírios da maturidade
Adelto Gonçalves (*)
I
A exemplo do memorialista mineiro Pedro Nava (1903-1984), que começou a publicar quando já estava com 69 anos de idade, e a poeta goiana Cora Coralina (1889-1985), que estreou em livro aos 65 anos, o arquiteto e professor universitário carioca Helio Brasil (1931) fez sua estreia tardia com O Anjo de Bronze e Outros Contos (Oficina dos Livros, 1995), quando já contava 64 anos. Depois publicou os romances A Última Adolescência (Bom Texto, 2004) e Ladeira do Tempo-Foi (Synergia Editora, 2017), ambientados no tradicional bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, retornando ao gênero do conto em 2018 com O Perfume que Roubam de Ti... e Outras Histórias (Synergia Editora), título assumidamente inspirado nos versos da famosa canção "As rosas não falam", do compositor carioca Angenor de Oliveira, o Cartola (1908-1980).
Agora, revirando o baú, mostra ao público a sua faceta como poeta, ao publicar, ao final de 2019, Delírios, edição de autor, com poemas que prefere chamar de "devaneios", mas que refletem intensa emoção e sentimento de dor, oriundos de relações amorosas que talvez já se tenham perdido no tempo ou provocados por rememoração de tempos vividos no lar. É o que se pode intuir dos versos de "O cheiro do amor" , poema escrito em dezembro de 2002: O amor cheira, por vezes,/ a leite azedo/ fralda suja/ suor da noite./ De uma axila,/ quantas vezes, evola-se/ o apelo que, por falso,/ o desodorante não encobre./ Mistérios dos perfumes/ ou perfumes de mistérios?/ Sábios são os corpos/ Mais sábios seus humores.
II
Às vezes profundo, o fazer poético de Helio Brasil é também reflexo de uma vida que, a cada dia, mais de aproxima de seu desiderato, processo natural na existência de cada um. Por isso, composto por lugares-comuns sentimentais e emocionais típicos daquela fase em que a vida se assemelha a um naufrágio, para se repetir aqui uma frase famosa do ex-primeiro-ministro francês Charles De Gaulle (1890-1970), pois quem vive muito dificilmente escapa de momentos angustiantes marcados por algum mal ou doença. É o que se pode constatar nos versos de "Antipoesia 1", poema escrito em agosto de 2015: Nave estranha me circunda/ Zumbe estridente/ Um gelo me envolve/ Gestos de mãos no espaço/ Crispadas/ Imobilidade exigida/ Imposta/ Prendo com os dentes/ O tremor interno/ As naves me espiam/ Curiosas/ Chiam/ Estalam/ Rosnam/ Abrem braços tecnológicos/ E me libertam. (A propósito do tratamento do câncer com radiações).
Se como diz o professor Massaud Moisés (1928-2018) em A Criação Literária: Poesia (Cultrix, 2003, pág. 238), o épico só é alcançado quando o poeta consegue atingir a sua maturidade interior, a produção de Helio Brasil pode ser incluída nesta categoria, pois sua poesia "se caracteriza pela dilatação do eu ao infinito de suas possibilidades, a ponto de romper as próprias barreiras e invadir o plano do não-eu", pois, de fato, expande-se "até ilimitadas fronteiras, a fim de abarcar inteiramente o mundo exterior". E o poema "Sem dúvida" é um bom exemplo do que se diz aqui: Achei que a vida/ fosse um prefácio/ A vida, porém,/ é epílogo/ com capítulos incompletos/ longos, tão longos,/ cansativos/ outros tão curtos, tão breves/ sem pontos/ sem vírgulas/ interrogações exclamativas/ exclamações interrogativas/ sem sequer fechar com errata./ Nova edição, nem pensar!/ Edição esgotada/ bem antes de ser lida/ vai pro sebo fechadinha/ pra se acabar na lixeira.
Seja como for, a poesia madura de Helio Brasil também não deixa de ser niilista, de quem nada espera de grandioso do ser humano. É o que se conclui da leitura do breve poema "Tinturas": Os bandidos tingem-se de sangue/ Os artistas, de todas as cores/ Os políticos, de castanho fecal...
III
Formado em 1955 em Arquitetura pela Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Helio Brasil trabalhou no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), atual BNDES, de 1955 a 1984, tendo supervisionado o projeto de construção da nova sede da entidade, inaugurada em 1982. Projetou em equipe edifícios residenciais, comerciais e industriais no Rio de Janeiro e em outros Estados. Lecionou durante 20 anos a disciplina Projeto de Arquitetura na Universidade Santa Úrsula e foi professor-visitante na UFRJ e na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Depois que se aposentou pelo BNDES, passou a se dedicar à literatura, tornando-se um dos mais importantes ficcionistas da atualidade. Dedica-se à escrita ficcional desde 1958, tendo obtido menções em concursos de contos. Frequentou a Oficina do Livro, cujo diretor é o professor e escritor Ivan Cavalcanti Proença, que foi editor da Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro, na década de 1980.
Nas áreas de História e de Arquitetura, como memorialista, publicou ainda o excelente São Cristóvão: Memória e Esperança (Cantos do Rio, 2004), O Solar da Fazenda do Rochedo e Cataguases (2010), em colaboração com José Rezende Reis, e Tesouro: o Palácio da Fazenda, da Era Vargas aos 450 anos do Rio de Janeiro (Editora Pébola, 2015), em parceria com o historiador e arquiteto com Nireu Cavalcanti, ex-diretor da Escola de Arquitetura da UFF.
Como novelista, publicou Pentagrama Acidental (Editora Ponteiro, 2014). Participou também das coletâneas de contos Doze Autores e Suas Histórias (2003); A Marquesa de Santos (2004); Tempos de Nassau (2005); Ásperos e Macios (2010); e O Feitiço do Boêmio (2010), em comemoração aos 100 anos do compositor e sambista Noel Rosa (1910-1937), publicadas pela Editora Bom Texto; e O Rei, o Rio e Suas Histórias (2013), publicada pela Editora 7 Letras. Em 2016, publicou Cadernos (Quase) Esquecidos (Sarau do Beco), crônicas autobiográficas em edição artesanal.
É ainda artista plástico, sendo o responsável pelo guache que ilustra a capa de Delírios. São também suas as ilustrações que constam do livro Crônicas Históricas do Rio Colonial (Civilização Brasileira, 2004), de Nireu Cavalcanti.
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Delírios, de Helio Brasil. Rio de Janeiro: edição de autor, 1ª edição, 40 páginas, 2019. E-mail: [email protected]
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp)/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: [email protected]
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