Revelando, no leito de morte, o segredo do cabelo crespo

Revelando, no leito de morte, o segredo do cabelo crespo

por Fernando Soares Campos

No leito de morte, o colono caucasiano aprecia a imagem do encontro entre o Duce e o Führer, artisticamente emoldurada e fixada na parede. Em seguida, pede que a mulher, os filhos, parentes e amigos saiam todos do quarto, exceto aquele filho do cabelo crespo, com quem ele quer ter uma conversa reservada, guardada a vida toda para aquele momento.

Todos se retiram, e eles estão, enfim, sós.

- Filho, passei toda a minha vida vendo você se olhar no espelho, tentando espichar esse seu cabelo com produtos diversos que encontrava na praça e reclamando, dizendo que não sabia por que você era o único da família com o cabelo crespo.

- Sim, pai, isso é verdade, eu nunca entendi o motivo de eu ter o cabelo assim, duro, enrolado, dando tanto trabalho para ficar parecido com o seu, o de minha mãe e o do meu irmão, ou mesmo como o de qualquer outro parente nosso...

- Filho, o que vou lhe contar agora muita gente desconfia, mas somente eu, sua mãe e aquele... é... aquele... (tosse) Bem, eu não gosto de me lembrar daquele sujeito, mas não há como lhe esclarecer tudo sem falar dele...

- Tenha calma, pai, o senhor não pode se agitar... Lembre-se das recomendações do médico.

- Sei, mas essa é a hora, sinto que não tenho tanto tempo assim. E não é justo que eu morra e você não tome conhecimento da verdade...

- Pai, posso poupá-lo de grande esforço mental e abalo emocional. Se o senhor vai me dizer que sou filho adotivo, eu já desconfiava disso desde criança...

- Não... (tosse) Não, filho, infelizmente não é esse o problema.

- O senhor diz "infelizmente", pai?! Por que infelizmente?!

- Porque a questão é bem mais grave do que você pensa.

- Pai, o senhor está me assustando. Já que é tão greve assim, por favor, não faça suspense, não crie essa expectativa angustiante para nós dois. Vá direto ao assunto.

- Bem, o sujeito a quem eu quero me referir é aquele nordestino cafuzo... (tosse) Você era muito criança quando ele foi embora, mas deve se lembrar daquele sujeito... (tosse) Ele prestava alguns serviços pra nós...

- Seu Luiz?! É dele que o senhor quer falar? Sim, me lembro dele, era muito brincalhão, alegre... Nunca entendi por que o senhor foi tão grosso com ele, enxotando o coitado e até ameaçando o infeliz, caso ele voltasse.

- Eu não sabia que você havia assistido àquela cena! Você era muito criança, tinha uns cinco anos...

- Eu estava chegando da escola, ouvi tudo parado na porta, do lado de fora. Só entrei depois que ele saiu. Passou por mim, parecia que chorava. Olhou pra mim e balbuciou alguma coisa que não entendi bem, acho que ele disse "Nunca vou esquecer você, filho".

- Filho?! Tem certeza de que ele lhe chamou de filho?!

- Sim, pai, mas é costume dos nordestinos chamar os mais jovens de filho... Foi o senhor mesmo quem me explicou isso, quando um dia eu lhe perguntei "Pai, por que seu Luiz às vezes me chama de meu filho?". O senhor respondeu que era costume deles, que tratavam assim todas as crianças.

- Eu lhe falei isso?

- Sim, pai, falou. Mas o que tudo isso tem a ver com meu cabelo crespo?

- Filho (tosse), eu quero que... (tosse) você me prometa que não vai odiar sua mãe! (tosse)

- Pai o senhor voltou a falar de forma enigmática, por favor, seja claro, o que minha mãe tem a ver com toda essa história?!

- Sua mãe... (tosse) e o... (tosse) Lu... Lu... Lu... (tosse, engasgo, falta de ar, sufoco... finalmente, a cabeça do velho tomba de lado e ele silencia).

- Pai! (o filho abraça o cadáver do pai, grita a toda altura) Pai, fale! Pai! Pai, o que minha mãe tem a ver com o seu Luiz e o meu cabelo crespo?!

Ao ouvir os gritos desesperados do filho, os demais familiares adentraram-se no quarto assustados. A mãe fica na porta assistindo àquela dramática cena; em seguida, caminha devagar, aproxima-se do filho, pega-o pelo braço e o conduz até a sala. De passagem pela cômoda do quarto, pega uma escova de cabelo. Senta-se no sofá e faz o filho sentar-se ao seu lado. Recosta-o contra seu peito e começa a escovar-lhe o cabelo crespo, cantado antiga canção de ninar...

 

Sabão crá-crá, sabão crá-crá
Não deixa os cabelos do saco enrolar

Sabão cré-cré, sabão cré-cré
Não deixa os cabelos do saco de pé

Sabão cri-cri, sabão cri-cri
Não deixa os cabelos do saco cair

Sabão cró-cró, sabão cró-cró
Não deixa os cabelos do saco dar nó

Sabão cru-cru, sabão cru-cru
Não deixa os cabelos do saco
Enrolar com os do...

 

Sabão crá-crá, sabão crá-crá
Não deixa os cabelos do saco enrolar 

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey