Estou obsessivamente empenhado no projeto cine-literário Fábula no Atacama, diálogo entre um urubu faminto e um preá agonizante, através do qual pretendo estabelecer analogia entre o comportamento animal e humano, formulando o mais lógico preceito moral capaz de orientar as relações comportamentais...
Fernando Soares Campos
Estou obsessivamente empenhado no projeto cine-literário Fábula no Atacama, diálogo entre um urubu faminto e um preá agonizante, através do qual pretendo estabelecer analogia entre o comportamento animal e humano, formulando o mais lógico preceito moral capaz de orientar as relações comportamentais do ser humano com a sua própria natureza animal ─ a síntese do procedimento a ser adotado quando alguém for submetido a uma prova de resistência psicobiológica, estando imbuído dos princípios inatos da consciência e dos impulsos instintivos a lhe instigar: "Farinha pouca, meu pirão primeiro".
É realmente um projeto ambicioso, uma megaprodução, que certamente se tornará um marco entre coisa alguma e alguma coisa, aquilo que nunca foi antes de ser. Entretanto o meu editor-produtor, que não é nenhum mecenas, mas um executivo com MBA em Economia e Gestão em Arte para o Mercado, ainda não está convencido do avantajado retorno do investimento.
A fim de viabilizar as produções cinematográfica e literária, venho tentando obter algum patrocínio. Enviei proposta para os departamentos de marketing e comunicação de diversas empresas. Um amigo meu demonstrou interesse em apoiar tão relevante empreendimento cultural; porém, depois de realizar uma enquete entre a sua clientela, ele me ligou informando que desistiu de bancar o transporte e alimentação do urubu até o local da produção, o Deserto do Atacama. Concluiu que poderia comprometer a imagem do seu restaurante.
─ Como assim?! O que fez você chegar a essa conclusão?! ─ perguntei num tom que beirava exigência de maiores explicações.
─ Não me leve a mal, compreenda nosso drama...
Deve ter notado meu inconformismo.
─ Claro, compreendo, é a crise, não é?
─ Não, não tem nada ver com a tão propalada crise; pois, se ela existe de verdade, não deu a graça... melhor, a desgraça de sua presença aqui no nosso restaurante. Muito pelo contrário, nossa clientela cresce a cada dia...
─ Mas, se você não se incomodar, eu gostaria de saber por que... ou como... o resultado de sua enquete influenciou na sua desistência de nos patrocinar.
─ Vamos lá. Visualize um casal jantando romanticamente à luz de velas, ao som de suave melodia, num ambiente harmonizado sob orientação Feng Shui, como é o caso do nosso estabelecimento. Visualizou?
─ Sim, tá visualizado.
─ Pois continue imaginando... Ela, uma delicada jovem de tradicional família quatrocentona, sensível e facilmente suscetível de se abalar sob impressões psicológicas. Ele, rico cinquentão, porém um indivíduo rústico, empresário do setor agropecuário, querendo impressionar a jovem namorada com uma demonstração de interesse por eventos culturais, diz a ela que o nosso restaurante patrocinou esse seu empreendimento... cine-literário, como você o classifica, custeando transporte e alimentação de um urubu! Imaginou?
─ Tá imaginado. Mas... o que tem a ver o oritimbó com as calças?
─ Nesse caso, tem a ver com a mimosa calcinha. Isso pode ocorrer no momento em que o garçom esteja servindo o prato principal, que pode ser, por exemplo, um faisão marinado e grelhado em molho sherry. Imaginou as consequências?
─ Não. Acho que sofri um colapso de imaginação...
─ Que escritor é você?! Um fabulista sem imaginação é o mesmo que... que... é...
─ Um corrupto sem propina?
─ Sim, é por aí...
─ Infame, mas, tudo bem, não precisa me dizer que o seu faisão malcheiroso se transformaria, aos olhos da beldade, num urubu marinado e grelhado em molho sherry.
Desligou. Mas não precisava ter gritado "malcheiroso é o teu peru!".
Apesar de já ter-se passado mais de um ano desde que enviei as propostas de patrocínio, ainda espero resposta positiva de alguma empresa. Essas coisas não são decididas de uma hora pra outra, geralmente são submetidas a deliberações de conselhos administrativos e inseridas em futuras campanhas publicitárias. Mas a verdade é que eu não deveria ter assumido esse compromisso, visto que se trata de área específica do meu editor-produtor, um expert em captação de recurso para produção cultural. E que ninguém duvide de um profissional que já conseguiu a aplicação da Lei Rouanet para turnês de grupos funk, duplas sertanejas e bandas de axé music.
A partir de agora, passo a me dedicar exclusivamente à atividade tocante às minhas atribuições neste projeto. Vou fazer a última revisão do roteiro de "O urubu faminto e o preá agonizante" (título provisório).
001 ─ Deserto do Atacama ─ Área de gêiseres ─ ext./dia
(Vou suprimir o "ext.", afinal, todas as cenas serão externas.)
001 ─ Deserto do Atacama ─ Área de gêiseres ─ dia
Um grupo de animais brasileiros visita o Norte do Chile. Enquanto passeiam por entre os borrifantes gêiseres atacamenhos, um preá curioso resolve explorar a região por outros ângulos. Distancia-se do grupo e se perde numa trilha que o leva aos confins do Vale da Morte. Anoitece e ele não consegue encontrar o caminho de volta ao local onde seus companheiros de aventura (córneos e mochos, emplumados e peludos, caudados e anuros como ele próprio) se encontram aflitos com o seu desaparecimento.
A arara taramela, o bode bodeja, o burro zurra, a ema geme, o gambá regouga, o gavião crocita, o lagarto farfalha, o macaco guincha, a onça esturra, o boi muge e a perereca da companheira do preá se agita freneticamente, contraindo-se e dilatando-se ao ritmo de seus soluços.
Cai a noite escura que nem uma prefeitura...
002 ─ Deserto do Atacama ─ Vale da Morte ─ o amanhecer
Legenda: Três dias depois...
O preá se arrasta parecendo um gordo lagarto sem rabo, não tem experiência para sobreviver em condições tão adversas ao seu habitat no Brasil. Aquilo só pode ser comparado ao inferno bíblico, pois, nas primeiras horas do dia, o sol atacamenho já está estorricante.
Ele avista um oásis, tipo os do Saara, com palmeiras, tendas coloridas, camelos pastando verdoengas gramíneas, mulheres pegando água num poço, homens polindo suas espadas, tapetes decolando e aterrissando no tapeteporto e gênios atendendo os pedidos dos seus amos, servindo-lhes deliciosas esfihas e saborosas odaliscas.
Preá Agonizante: ─ Alá seja louvado! ─ balbucia com extrema dificuldade. ─ A vida é bela, estou salvo! Ou morri e estou chegando ao paraíso.
Efeitos especiais sobre o ponto de vista do preá: a imagem do paradisíaco oásis ondula, ondula, ondula e desaparece. Era uma miragem. Novamente a mais inóspita região do Planeta se revela aos olhos do roedor moribundo. Banhado de suor, o preá lambe seu próprio corpo, numa desesperada esperança de saciar a sede. Arrasta-se penosamente por mais alguns metros e abriga-se num cantinho sombreado por uma depressão do terreno.
Close: os olhinhos de rato do preá se mexem em círculo, ele tenta fazer o reconhecimento da área a fim de encontrar uma maneira de sobreviver àquela dramática situação, talvez mais torturante que a de um náufrago em um bote à deriva em alto-mar.
Contrarregra: Sibilo idêntico ao produzido por foguete de quermesse: schiiiuuu..., seguido de ploft!
Uma gosma marrom atinge a cabeça do preá e escorre pelo focinho até as bordas dos seus minúsculos beiços. Impulsionado pelo instinto de sobrevivência, o pequeno mamífero agonizante suga a visguenta substância.
Contrarregra: Shupt!
Preá Agonizante: ─ Arrrgh! Eca! ─ cospe.
Contrarregra: Kuspt!
O autor, que acompanha tudo fazendo anotações, olha para o límpido céu azul anil atacamenho e avista um objeto planando, espiralando numa remoinhadora corrente de ar.
Autor: ─ É uma sacola plástica vazia! ─ zoom. ─ Não! É uma pipa! ─ mais zoom.─ Não! É um superbombardeiro B-2 Spirit fora da rota USA-Oriente Médio! ─zoom total. ─ Nãããooo! É o urubu faminto! Finalmente ele chegou, os próximos capítulos estão garantidos!
O urubu faminto também aplica zoom máximo. Enxerga o preá com a cabeça lambuzada.
Urubu Faminto: ─ Croac! (legenda: "Acertei na mosca!")
Preá Agonizante: ─ Pô! Isso é uma tremenda urucubaca!
Diretor: ─ Corta!
O autor tira o boné e acena para o urubu, que se distancia até se tornar um ponto no horizonte.
Sonoplastia: Tema musical do urubu (sugestão: El condor pasa) crescendo...
Ilustração: AIPC ─ Atrocious International Piracy of Cartoons
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