O drama da jovem Eloá deixa na gente algumas lições. A primeira é que não basta, para relatar bem uma notícia, o seu acompanhamento sistemático, massivo, ao vivo. Por mais de 100 horas todas as redes de televisão levaram para todo o Brasil as imagens da jovem seqüestrada em flashes, reportagens, chamadas, pesquisas, entrevistas, num autêntico show de circo de cobertura. Mil e um recursos técnicos, tecnológicos, sinais, satélites, transmissões do século XXI foram usados. E no entanto, tudo se passou como se fôssemos jogados em uma rua deconhecida, sem números ou placas. Onde ficou mesmo a informação?
Por Urariano Mota
Recife (PE) - O drama da jovem Eloá deixa na gente algumas lições. A primeira é que não basta, para relatar bem uma notícia, o seu acompanhamento sistemático, massivo, ao vivo. Por mais de 100 horas todas as redes de televisão levaram para todo o Brasil as imagens da jovem seqüestrada em flashes, reportagens, chamadas, pesquisas, entrevistas, num autêntico show de circo de cobertura. Mil e um recursos técnicos, tecnológicos, sinais, satélites, transmissões do século XXI foram usados. E no entanto, tudo se passou como se fôssemos jogados em uma rua deconhecida, sem números ou placas. Onde ficou mesmo a informação?
A segunda delas é que não bastam ao repórter a dedicação, o esforço, a coragem, o arrojo e a juventude. Estas são qualidades que caem muito bem em atletas e soldados. Se se exigisse do pensamento a velocidade de uma bala ou a força de um golpe de boxe, os repórteres mais cheios da energia dos vinte anos seriam os melhores. O nível amesquinhador da reportagem a que chegamos exige do jornalista na frente da câmera antes de mais nada a beleza física, de preferência vestida em poucos anos de idade, para que a telinha brilhe mais como um espaço de diversão. Mas não só, compreendemos. Um repórter, em começo de carreira, é mais facilmente manipulável, obedece com menos resistência às sugestões dos editores ocultos da notícia. Os repórteres mais jovens têm a força de passar muitas horas de plantão, comendo mal e dormindo pior, por um minuto de fama, para todos os pontos do Brasil.
A terceira lição é que a notícia humanizada, que deveria ser a revelação de pessoas em lugar dos cinco W das escolas de jornalismo, who, what, where, why, when... em lugar de pessoas, a notícia humanizada passou a ser uma adaptação dos vips, das revistas de celebridades, de revistas Caras, para os pobres. Assim como se fazem revistas play boy, em edições falsas, para mulheres comuns, a notícia humanizada transforma pobres em celebridades com a mesma qualidade e feição dos ricos e famosos. Como? Pelas caras, pelas bocas, pelos gostos musicais, de filmes, de relações na web. Nada que fale, é claro, da luta cruenta da sobrevivência, que para os pobres, até mesmo para as jovens bonitas dos pobres, nada tem de glamour.
Queremos dizer, por mais de 100 horas ninguém soube nada sobre uma polícia despreparada, em crise, no governo José Serra. O governador paulista, como um fantasma ou vampiro, passou incólume e intocado à luz do dia em todas as notícias. Soube-se, ao contrário, o mais superficial, que cabe em uma frase: um jovem apaixonado seqüestrou a sua amada. E haja desdobramentos desse velhíssimo drama. Em lugar da notícia, todos fomos servidos pelo roteiro de um escritor medíocre, de dramalhão: Quem era Eloá? (Caras, trilha musical) Quem era Lindemberg? (Fotos, depoimentos "inexplicáveis" dos amigos) Quem era a sua fiel amiga? (Caras, fotos, música). Seguiu-se à risca um manual de filme B acreditem para a notícia.
Finalmente, quando menos se esperava, ação! Desfecho rápido, sem preparação de fundo, sem som de thriller: a bela amada tem o crânio esburacado, com perda de massa encefálica. A generosa amiga é atingida por um tiro na boca. O Romeu sai machucado, despido de sua aura de príncipe. E em lugar de um levantamento das causas da trapalhada, do desastre, em lugar de um esclarecimento até mesmo factual já que todos os repórteres estavam presentes -, não existe até aqui a certeza de que armas partiram os tiros, se antes ou depois da invasão do apartamento, ou de quem partiu a orientação para que o desastre se desse na forma em que se deu. Então o governo de São Paulo aparece: para anunciar pesaroso a morte da jovem. Tamanha foi a sede dos repórteres nessa fonte, nessa crença a paralisar qualquer investigação, que toda a imprensa divulgou a morte da jovem 24 horas antes, sem ir ao hospital, sem ouvir médicos.
Agora, na presente data, parte-se para um final feliz, precisa-se de um final feliz, precisa-se: a jovem Eloá ressurge em outros corpos, em outras pessoas, com a doação dos seus órgãos. É irreprimível o sorriso, o ar de felicidade, de apresentadores e repórteres. Querem dizer, com a voz embargada, "todos temos uma boa notícia para dar, porque nós também somos éticos, e todos contribuímos para uma sociedade mais fraterna: Eloá está viva". O que uma livre interpretação permite dizer, enfim: os telespectadores não precisam mais das telenovelas habituais. Pelos números de audiência alcançados, pelo show, pela competência em realizar um script a orientar o real, a notícia virou a melhor telenovela.
Leia outras crônicas no blog do autor em: Sapoti de Japaranduba
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