Luís Alberto Gómez de Sousa
Em lugar da apresentação reflexiva de uma realidade dura e absurda, a cobertura da mídia sobre o assassinato de João Hélio estimula o transbordamento de uma emoção nas raias do irracional, flertando até com a tentação dos linchamentos.
A violência nos acompanha no cotidiano, nas ruas de Bagdá, na faixa de Gaza, no sul do Sudão, nos atiradores em escolas e bares dos Estados Unidos ou na fronteira deste país com o México, em São Paulo e no Rio. Mas, de repente, há um fato que incendeia.
Lembro aqueles jovens de classe média que queimaram um índio para divertir-se. Ou a chacina da Candelária. Só que para muitos soou distante, nos abismos de classe que separam a sociedade. Se o século XX foi um tempo de guerras e de extermínios o genocídio na Armênia, passando pelo holocausto de judeus, para chegar a Ruanda ou a Darfur - este que começa tem a violência diária e espalhada, difusa e ubíqua, que os noticiários anunciam a cada dia, como as previsões da meteorologia ou o resultado das bolsas de valores.
E agora tivemos o fato hediondo de uma criança arrastada por quilômetros ; presa a um automóvel dirigido por jovens apenas alguns anos mais velhos e de uma frieza arrepiante. Porém, o que quero expressar aqui é minha indignação ao ver como meios de comunicação repetem sem parar, com conotações subliminares, o caso já em si terrível, do menino branco morto por jovens mestiços. Temo que um dia destes, na praia, um menino negro, acusado de roubar as sandálias ou a bicicleta de outro menino, seja massacrado por uma multidão ensandecida. Uma violência incita outras violências iguais ou piores, perdendo-se o momento de refletir sobre a loucura dos fatos. Em nome da emoção, se remoem e se repetem ao cansaço sentimentos destrutivos.
A condenação irrefletida da violência é caldo de cultivo para outras violências. Quando sairemos deste círculo vicioso doentio? Lemos uma manchete de jornal: o que fazer com eles? Uma resposta vem do que há de mais negativo e orientado para a morte, um thanatos que aflora.
Os jovens que produziram este feito de horror poderão ser logo mortos na prisão ou numa transferência de carceragem, num clima de mais horror ainda, tão gratuito e absurdo como aquele que pode ter dado origem a este. Há que lembrar que crianças e jovens de todas as idades morrem a cada dia, vítimas de balas perdidas ou em guerras de gangues e de grupos policiais. Mas frente a um caso específico a sociedade, açulada por amplos setores da mídia, se arma de rancores. A família do menino, com grandeza em sua dor imensa, não pede vingança, mas justiça. E terá dificuldade em superar, sem solidariedades e compreensão, um complexo culposo de não ter conseguido libertar o menino do cinto de segurança, num conjunto de fatalidades, aliadas à insensibilidade espantosa de jovens frios e insanos.
Cartas de leitores que invadem as redações passam dos limites da indignação, para o incitamento da violência como resposta. Assim como o contra-terrorismo de Bush e de seu governo é irmão siamês da Al Quaeda, vemos brotar em tantas mentes uma violência represada e latente. Outros querem responder por leis mais duras, ou pelo rebaixamento da idade de responsabilidade criminal, como se isso resolvesse o que tem raízes muito mais profundas. Mauro Santayana , (clique e leia) como sempre, foi certeiro na análise, ao mostrar como se constrói um criminoso.
Como parar esse jorrar repetitivo, disfarçado de piedade, e pedir um mínimo de sanidade na reflexão? Há que denunciar, além disso, o sensacionalismo doentio de meios de comunicação que destilam truculência nos jogos e nos seriados infantis japoneses, nos programas policiais do fim da tarde e, agora, naquela cena de interessante minissérie, mas pingando sadismo e horror, ao mostrar uma criança linda e sorridente devorada por uma onça. Glória Perez já não sofreu na carne a dor, para não ter um mínimo de pudor? Ou será infeliz iniciativa da direção?
A cidadania tem de se levantar e dizer, enfim, uma palavra sensata de paz e de fraternidade. Não basta repetir frases vagas como, o problema é a educação, ou, o problema é a má distribuição de renda, a miséria e a exclusão. As duas coisas são verdadeiras se formuladas no concreto, abertas a práticas libertadoras. Mas não se pode esperar a transformação das estruturas ou a plena educação antes de agir. Os hooligans tiveram possivelmente escola e muitos podem ser filhos de pais ricos, ingleses da gema e não imigrantes; também há assaltantes e assassinos da zona sul do Rio, em busca de dinheiro para drogar-se, ou simplesmente para divertir-se no sadismo.
Entretanto, já há respostas. Muitos trabalhos com jovens nas favelas e periferias - o Ceasm na Maré e tantos outros abrem caminhos criativos. Um pombo correio da droga pode ser irmão de outro que faz parte de um grupo de dança ou de teatro juvenil. Através de estereótipos racistas, ambos podem ser identificados como assassinos em potencial. Temos de valorizar tantas experiências fecundas e o trabalho anônimo em muitas escolas. Façamos um pacto social de não-agressão, como os estados tiveram de fazer no passado, para evitar guerras. Faz anos uma campanha do Betinho mostrava automobilistas fechando com misto de medo e ódio os vidros do carro diante de crianças que tentavam lava-los. Não haverá tempo para um sorriso, para um olhar fraterno? Ou nos encerraremos em guetos defensivos e até certo ponto inúteis?
Estive na Índia em novembro e me feriu o olhar fatalista dos miseráveis encostando o nariz no carro em que eu viajava, com ar condicionado e longe dos maus odores da rua. Tinham o mesmo olhar vago e sem esperança e a placidez das vacas sagradas que os rodeavam. No olhar duro da revolta, já há pelo menos a consciência do intolerável. Mas não podemos chegar ao rosto de desprezo do soldado de Israel, ou à fúria e ódio de jovens palestinos levando nos ombros o cadáver de seu companheiro. A Ação da Cidadania, há alguns anos, acendeu esperanças. Não será tempo de outros gestos de solidariedade fraterna? Não nos venham com citações truncadas de Hobbes, mas com a prática de Jesus de Nazaré, de Francisco de Assis, de Buda ou de Gandhi.
Luiz Alberto é sociólogo, ex-funcionário das Nações Unidas e assessor de movimentos e pastorais sociais.
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