Ainda sonhamos ou tudo será sempre pesadelo?

Maria Helena Zamora (*)

Rios sem discurso

Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.


Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.

O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.


Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase a frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.

João Cabral de Melo Neto

“Nunca antes neste país!” A frase, tão ao gosto do presidente Lula, poderia apropriadamente ser usada para exprimir o ápice da violência contra crianças e jovens brasileiros, assim como revelar que a infância e a juventude desta nação jamais foram tão responsabilizadas pela criminalidade quanto nos dias atuais.

A propósito do trágico momento em que vivemos, Maria Vitória Mamede Maia (**) lança livro abordando a agressividade da criança na contemporaneidade: “Rios sem discurso” (Editora Vetor). Trata-se de uma obra para entendermos as crianças e os jovens tidos como violentos e, refletindo sobre as abalizadas análises da autora, concluirmos para onde estamos conduzindo a juventude deste país, com as penosas conseqüências que teremos de arcar, certamente ainda mais graves do que ora experimentamos, se não tomarmos medidas realmente eficazes.

A autora recusa-se a acreditar numa natureza ou essência determinantes da destrutividade dessas crianças. Aponta para o ambiente, a sociedade. Entende que as crianças perderam o que de mais precioso poderiam desfrutar, a própria infância, com o que de mais importante deveriam viver neste período: a ludicidade, uma educação de qualidade e, acima de tudo, a atenção da família e da sociedade em geral.

Sabemos que o abandono é a base do que é considerado tendência anti-social. O ressentimento em relação a esse abandono, a negligência com que é tratada, induz a criança a agir contrariando o comportamento que esperamos de indivíduos ainda em formação, portanto considerados ingênuos. Entretanto a ingenuidade da criança não pode ser entendida como incapacidade de ela compreender as injustiças que lhe estejam impingindo.

A criança tratada com reduzida ou quase nenhuma importância, sem direito de influenciar no seu próprio destino, relegada a um plano inferior, sente-se incomodada e só encontra um instrumento para se fazer visível: incomodar. Ainda sem habilidade e conhecimentos suficientes para estruturar raciocínios explicitamente lógicos e formular competentes retóricas em sua defesa, a criança manifesta seu incômodo incomodando. E é porque a criança revela intensamente o ressentimento dessa perda de algo bom, incomodando (a sua maneira de reivindicar), que existe a possibilidade de ela poder mudar e reassumir seu verdadeiro papel, aquele que lhe proporciona maior prazer, o de ser simplesmente criança.

Ao contrário do que geralmente se difunde, quando se acredita que a criança age violentamente porque teria sido instigada por objetos de consumo inalcançáveis, a verdade é que o seu comportamento agressivo está mais relacionado ao abandono, à pouca ou nenhuma atenção que a sociedade, ou mesmo a própria família, lhe dispensa. Portanto a relevância desse tema e desse estudo também é significativa para compreendermos a angústia vivida pelas famílias que, a cada momento, se surpreendem com o “inesperado” comportamento de jovens “bem-nascidos” e supostamente bem educados num ambiente de privilegiada estrutura sócio-econômica.

O psicanalista inglês Donald Winnicott sustenta toda a reflexão feita sobre esse tema, e Maria Vitória Maia estuda e aprofunda o conceito winnicottiano de tendência anti-social e quais desdobramentos esse conceito pode trazer para o entendimento da agressividade da criança, atentando especificamente para as peculiaridades da educação infanto-juvenil em nosso país. Articulando o olhar winnicottiano e o cenário contemporâneo, Maia analisa quais os aspectos contextuais que atualmente acarretam o aumento do número de crianças com comportamentos anti-sociais e nos aponta, como principais fatores, a falência dos papéis parentais e o eclipse da infância. Igualmente a autora postula que os comportamentos anti-sociais são estratégias de sobrevivência dessas crianças num mundo com regras e limites fluidos. Maia defende que os atos anti-sociais são a expressão da falência do pacto social, sendo estes, principalmente, uma tentativa de comunicação da criança num cenário de incomunicabilidade.

“Rios sem discurso” analisa a violência na infância, a falta de limites dos jovens, o fracasso escolar e a redução da maioridade penal. Fornece-nos elementos para entendermos o que faz as crianças serem consideradas “capetas em forma de guris”, o significado do incômodo causado por elas na sociedade, enfim, nos conduz para além de se pensar medidas meramente restritivas. O cerne da reflexão feita pela autora, e a que inevitavelmente chegará o leitor, é: quem se importa com essas crianças? Quem se propõe a entender os apelos feitos por elas por meio de seus atos destrutivos? O que se pode fazer para que uma criança não venha a ter como limite somente as barras de uma prisão ou a própria morte? Afinal, quem é o delinqüente neste país anômico?

Talvez essas sejam algumas das muitas perguntas que “Rios sem discurso” nos coloca e, dessa forma, implica-nos pensar qual a nossa parte nesse latifúndio chamado sociedade. A autora produziu uma prática clínica que afirma os direitos humanos para as vidas precárias; reafirmando sua possibilidade incondicional de existência e seu acolhimento dentro da polis. Trata-se de aprendermos com ela e podermos pensar não apenas em oferecer uma escuta, uma comunicabilidade com os desfiliados, mas resgatar os instrumentos de justiça, fazendo-os valer de verdade, no mundo real, não apenas no papel, quando só servem aos que deles lançam mão com suas próprias e convenientes interpretações. Ou será que, numa sociedade marcada pelo desamor, já morreram todos os sonhos de justiça?

(*) Maria Helena Zamora é Doutora em Psicologia, professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio, Vice-Coordenadora do LIPIS (Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social), ligado à Vice-Reitoria Comunitária da PUC-Rio.

(**) Maria Vitória Mamede Maia é Doutora em Psicologia Clínica PUC-Rio, Mestre em literatura Brasileira PUC-Rio, Psicóloga clínica, Psicopedagoga clínica UNICEUB-CEPERJ, Professora da Pós-Graduação em Psicopedagogia - CEPERJ, Professora da Pós-Graduação em Educação a Distância do CCEAD-PUC-Rio e Membro do Fórum de Formação em Psicanálise do CPRJ.

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey