O livro Revisitando Piggle: um caso de Psicanálise segundo a Demanda, de autoria do psicanalista e professor da USP e PUC/SP Gilberto Safra, inicia uma série de publicações do autor sobre a prática clínica de Winnicott, psicanalista inglês cuja obra vem sendo cada vez mais discutida em diversas áreas de conhecimento e campos de atividade, ultrapassando por completo o domínio específico da Psicanálise.
Por Suzana Maia
Psicanalista, Professora-titular da PUC-SP O livro Revisitando Piggle: um caso de Psicanálise segundo a Demanda, de autoria do psicanalista e professor da USP e PUC/SP Gilberto Safra, inicia uma série de publicações do autor sobre a prática clínica de Winnicott, psicanalista inglês cuja obra vem sendo cada vez mais discutida em diversas áreas de conhecimento e campos de atividade, ultrapassando por completo o domínio específico da Psicanálise.
Essa larga penetração no universo das idéias se deve ao caráter pouco hermético das formulações de Winnicott, sempre comunicadas em estilo simples e direto, e que refletiam seu interesse pela constituição da pessoa humana, tanto do ponto de vista das condições que favoreciam que fosse ela mesma, como do que a fazia adoecer. A partir daí, é decorrência natural que tenha se dedicado à compreensão das funções ambientais e das maneiras pelas quais apreendemos e nos relacionamos com os objetos da cultura, o que explica a abrangência das formulações que criou.
Já especificamente no campo psicanalítico, sua obra é de fundamental importância na lapidação de um psicanalista rigoroso e minucioso, intensamente envolvido com a necessidade de seus pacientes.
Podemos dizer que Gilberto Safra, profundo conhecedor da obra winnicottiana, foi feliz em sua escolha: Winnicott publicou muito, mas são poucos os textos em que temos a oportunidade de vê-lo em atuação clínica, acompanhá-lo em seus deslocamentos em direção aos pacientes compartilhar suas anotações e a maneira como foi criando uma nova modalidade de atendimento analítico, a Psicanálise de acordo com a Demanda. E é isso que encontramos na apresentação do caso Piggle, que se torna ainda mais rico com o olhar minucioso de Safra, constituindo-se em uma experiência rara para o leitor.
Piggle é uma garotinha de dois anos e meio, cujos pais procuraram Winnicott porque ela se encontrava muito ansiosa com o nascimento da irmã. Eles não moravam em Londres, onde se localizava o consultório de Winnicott, e dada as dificuldades de deslocamento, este criou então uma maneira de atender Piggle de acordo com as suas necessidades. Mas é importante ressaltar que esse tipo de tratamento só foi possível por se tratar de uma família em condições de absorver os conflitos e tolerar os sinais que indicavam a tensão emocional da menina durante o intervalo entre os encontros com seu analista.
O trabalho durou dois anos e meio, sendo realizadas catorze sessões. Safra escolhe sete delas, descritas no texto original, e passa a analisá-las, chamando a atenção para os princípios que organizam a clínica winnicottiana, bastante diferentes daqueles que constituem a clínica tradicional psicanalítica. Nesta, comumente é solicitado ao paciente que realize, assiduamente, mais de duas sessões por semana, com o intuito de, assim, favorecer o deslocamento de questões originárias para a relação com o analista, permitindo que este as interprete na transferência.
Para Winnicott, porém, o sentido de tempo e espaço é de natureza bastante diversa, pois sua grande preocupação era com a organização do self do paciente, o que constitui toda uma ética no trato com este.
Como bem salienta Safra, esse aspecto se expressa no caso Piggle, particularmente, no cuidado de Winnicott em constituir com sua pequena paciente um espaço onde a subjetividade dela pudesse ser temporalizada, ou seja procurava criar condições para que ela vivesse experiências significativas, para que comunicasse suas questões de modo cada vez mais preciso, uma vez que se sentisse compreendida por ele.
Somente após a constituição desse espaço, denominado espaço potencial, é que as intervenções eram feitas, sempre no intuito de procurar compreender a angústia de Piggle para favorecer que esse sentimento fosse colocado em experiência compartilhada; com isso, as inquietações da paciente ganhavam um sentido humano.
Safra destaca, ainda, que, nesse modo de proceder, o analista é criado e usado pelo paciente, e com ele vive uma experiência completa, essencial no modo pelo qual Winnicott construiu todas as suas formulações clínicas. Assim, Piggle inicia o tratamento um tanto hesitante em relação à possibilidade de, realmente, ser ajudada naquilo que necessitava. Encontra, então, um analista que, antes de se apressar com interpretações usuais, compreende essa hesitação e procura se aproximar dela com muito cuidado, para que uma relação de confiança pudesse ser estabelecida.
É interessante observar, também, como o momento de finalização da análise é compreendido por Winnicott, que em toda a sua obra ressalta a importância de o analista perceber quando deixa de ser necessário para o paciente, que pode então colocar em marcha o seu processo maturacional. Principalmente em se tratando de crianças,Winnicott só interferia nas situações em que o ambiente não estivesse dando conta de auxiliar no favorecimento da continuidade do desenvolvimento pessoal. E foi assim que ocorreu com Piggle: ela pôde alcançar a integração das partes dissociadas de seu self, e a tarefa de seu analista foi então concluída.
Cortesia
Instituto Sobornost / Edições Sobornost
http://www.sobornost.com.br
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