7 de outubro de 2005
Copyright 2005 Gilberto Safra
Trabalho na universidade e em consultório. No consultório, trabalho há muitos anos conduzindo psicoterapias e psicanálises e tenho a oportunidade de acompanhar um grande número de pessoas. A partir daquilo que estas pessoas vão me falando, das suas dores, dos seus sofrimentos, de alguma forma elas me passam também um certo testemunho do mal-estar contemporâneo e das dificuldades da vida do mundo contemporâneo. Frente então àquilo que essas pessoas me dizem, tenho a oportunidade de ir refletindo, no campo da psicologia, sobre qual o lugar, quais as indagações que nós precisamos realizar em relação à ciência, à questão da espiritualidade e à questão do mistério.
Eu gostaria então de iniciar lembrando que o movimento científico se origina a partir de determinadas perspectivas que se iniciam no século XVII, século do Renascimento. Vemos surgir perspectivas filosóficas que de algum modo vão orientar e fundamentar tudo aquilo que nós conhecemos como ciência na atualidade.
A ciência se desenvolve e se organiza a partir de dois princípios fundamentais. E nós podemos observar que, mesmo na atualidade, esses princípios continuam orientando os trabalhos científicos. O primeiro princípio fundamental é que a ciência deverá se desenvolver a partir da observação do fenômeno externo, sem referência ao divino. Esta observação deverá, e este é o segundo princípio, ser tratada de tal maneira, ser submetida a toda uma disciplina, a uma organização a partir da matemática, para que se possa alcançar um sistema de conhecimentos que seja coerente e confiável.
Dois princípios fundamentais: a observação dos dados, o tratamento desses dados pela perspectiva e somente pela orientação da matemática a fim de se conseguir a apreensão de um sistema de conhecimento que possa ser transmissível e novamente verificado. Esses princípios surgem no século XVII. No campo da filosofia o fato relevante é que a filosofia, naquele momento, se destaca da religião.
É importante esse tipo de movimento que ocorre a fim de que houvesse a possibilidade da observação dos dados sem a interferência de uma autoridade ou outra instância que não a observação. Dois grandes nomes, de certa forma, orientam esse nascimento: Francis Bacon e Descartes. Nessa perspectiva fundamental, a filosofia e, posteriormente,a ciência, estariam separadas da religião que teria o seu modo de acontecer, de experimentar e de se transmitir baseada principalmente nas reflexões sobre a palavra de Deus e sobre o divino.
Bacon nos ensinava que, por meio da contemplação da natureza, haveria possibilidade de se induzir qualquer elemento, mas que não deveria existir a preocupação de fazer uma verificação em relação aos mistérios da fé.
Junto com esse movimento, o que nós temos é que a espiritualidade é banida dos estudos dos fenômenos físicos e todo o conhecimento científico então deveria estar baseado na observação do mundo natural, uma natureza compreendida como auto-subsistente em si.
Eu usufruo muito do meu diálogo com alguns autores russos e houve um pensador russo que viveu no final do século XIX, chamado Nicolai Fiodorov. Nicolai Fiodorov foi uma figura bastante interessante na Rússia. Era um homem de grande cultura, que não estava ligado a nenhuma academia, a nenhum instituto. Na verdade, Nicolai Fedorov era um bibliotecário, um balconista da biblioteca de Moscou. E os estudiosos que costumavam ir a esta biblioteca para pesquisar alguns assuntos pediam ao bibliotecário Nikolai Fiodorov os livros em que estavam interessados e, para surpresa deles, Fiodorov trazia não só os livros que eles, como grandes especialistas da área, haviam pedido, mas trazia inúmeros outros que eles nem mesmo conheciam. Era um grande sábio. Inúmeros pensadores e filósofos costumavam ir à biblioteca para conversar com Nikolai Fiodorov.
Nicolai Fiodorov foi a figura que inspirou Tolstoi e que inspirou Dostoievski. Fiodorov foi o homem que, de certa forma, promoveu a grande crise na vida de Tolstoi. Considera-se que ele é, dentro da história da filosofia russa, o pensador que, de alguma maneira, fundou aquilo que ficou conhecido na cultura russa como Idade da Prata. Embora as pessoas, naquele momento, discutissem toda a problemática que ela percebiam que existia na sociedade, em decorrência da luta de classes, Fiodorov dizia o seguinte: o que mais me preocupa não é só, não é tanto a questão da luta de classes, os ricos e os pobres, mas o que mais me preocupa é o fato de que os eruditos se afastaram do conhecimento do povo, e o que mais me preocupa é que, em decorrência da filosofia, em decorrência da ciência, o homem vive uma ruptura profunda com a natureza. Para ele estas duas dicotomias, entre os eruditos e o povo e entre o homem e a natureza originavam nele grande temor e ele previa que isto poderia ser no futuro a fonte de inúmeros males que, em algum momento, o homem iria precisar deter para rever o seu percurso.
A preocupação de Fiodorov em relação ao fato de que o homem rompia a sua relação com a natureza estava fundamentada na perspectiva que ele tinha que no momento em que a ciência abordava a natureza isto implicava uma objetificação da natureza, o que levava o homem a não mais se sentir ou perceber a natureza como adentrando a sua própria interioridade -- e a natureza aparecia a ele como um objeto a ser estudado e a ser explorado.
Para ele, esse tipo de ruptura entre o homem e o mundo natural poderia levar inclusive a uma ruptura entre o ser humano e a sua própria corporeidade. Algo que nós observamos com freqüência na atualidade.
Prof. Dr. Gilberto Safra Especial para PRAVDA.Ru
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