Quando a literatura se transforma em Fast Food

Nos tempos soviéticos os turistas estrangeiros ficavam maravilhados ao ver no metropolitano da capital algo surpreendente: nas carruagens quase não havia um único passageiro que não lesse livros ou jornais. A Rússia era então, considerada como o país onde se lê mais do que em qualquer outra parte do mundo. E com toda a razão.

Na Rússia o interesse pela leitura surgiu ao longo da História Moderna. A sociedade deu no século passado um grande salto do analfabetismo generalizado para os padrões mundiais de educação e, a partir daí, o amor pelo livro passou a ser uma das características distintivas da sociedade russa. Mais ainda, o processo individualizado de leitura está de acordo com a mentalidade dos russos. Cansados do colectivismo imposto pelo regime soviético, os russos mostraram-se propensos a pôr um sinal de igualdade entre o individualismo e a liberdade. E neste sentido, o processo de leitura satisfazia em certa medida a sede de democracia.

O apogeu do "boom" da leitura verificou-se nos anos 90, coincidindo com os processos de "perestroika", quando foram batidos todos os recordes de edição de livros. Em 1990 foram publicados 1,6 mil milhões de livros - ou seja, 12 livros por cada habitante. E a maior parte destas obras eram de literatura clássica (ficção e infantil). As tiragens da imprensa periódica também bateram recordes: o "Argumenty e Fakty" - 33 milhões de exemplares, o "Komsomolskaia Pravda" - 17 milhões de exemplares, o "Izvestia" - 12 milhões de exemplares.

Por fim, chegaram as reformas democráticas tão almejadas e aconteceu algo inesperado. As pessoas deixaram de ler, como que se alguém lá em cima tivesse desligado um interruptor. Agora, neste famoso metro de Moscovo o panorama é totalmente diferente. Há poucos passageiros que lêem: a maior parte prefere dormitar e viajar absorta nos seus pensamentos.

A primeira causa deste abandono maciço da literatura é, evidentemente, económica. O "hobby" de muitas pessoas que constituíam outrora o "público leitor", tornou-se inacessível, acima da sua capacidade de compra. Na sua opinião, os preços são demasiado elevados, se bem que pelos critérios mundiais não sejam tão assustadores - digamos, 3-4 dólares por um livro, ao passo que no Ocidente uma novidade da literatura não custa menos de 15-20 dólares.

Respondendo às queixas dos leitores de menos posses, as casas editoras argumentam com os elevados custos de produção. Seja como for, as vitrines e montras das livrarias de Moscovo e outras cidades do país apresentam uma enorme diversidade de publicações. A Câmara Nacional do Livro calculou: no ano passado na Rússia foram editados 80 mil obras com uma tiragem total de 700 milhões de exemplares. São números menores do que nos velhos tempos soviéticos, mas de todas as maneiras impressionantes.

Ora, a quantidade é uma coisa, mas a qualidade é outra. A intelectualidade russa deu o alarme: nos últimos anos propaga-se a grande velocidade o "fast food" da literatura, uma espécie de "Big Macs" em forma de livro. Prevalecem o género policial e romances cor-de-rosa, semelhantes aos livros da famosa editora "Mills and Boon", que fizeram desaparecer das livrarias toda a literatura clássica mundial e nacional. Os livros de cordel, obras voltadas para o puro entretenimento, venceram a verdadeira literatura, que ensina, que transmite ao leitor os verdadeiros valores espirituais.

O que é que se entende hoje por literatura de ficção no mercado russo? Já não são nem Puchkine, nem Tchekhov, nem Anna Akhmatova, nem Bulgakov, nem Charles Dickens, nem Ernest Hemingway, nem Kurt Vonnegut, nem dezenas de outros autores nacionais e estrangeiros, tão respeitados nas famílias russas. Os 130 milhões de livros publicados em 2003 na Rússia e classificados na categoria de "literatura de ficção" é uma coisa absolutamente distinta. A saber: 60 por cento são detectives e novelas de amor, 17 por cento ciência ficção e só 15-16 por cento para a literatura clássica e os autores conceituados.

A propósito, no mercado livreiro da Rússia, os mais conhecidos escritores policiais ocidentais - como, digamos, Elmore Leonard e Steven King - fazem com grande dificuldade face à concorrência por parte dos ídolos nacionais, que surpreendem com a sua engenhosidade e capacidade de imaginação. Só Darya Dontsova - essa tal Patricia Cornwell russa - em 2002 publicou 45 policiais com uma tiragem total de 13 milhões e 585 mil exemplares.

A explicação desta verdadeira erupção da literatura de cordel é a falta e, subsequentemente, a nostalgia por este género de livros nos tempos soviéticos. Até os editores gostam de discorrer sobre a particularidade da procura actual do público leitor e dizem que produzem aquilo que as massas querem, nem mais nem menos.

A influência desta abundância de policiais sobre a consciência comum da população leitora é em grande parte reforçada pela exibição de séries e telenovelas baseadas nestas mesmas obras. Esta predilecção das editoras e da TV por cadáveres e sangue a jorrar fez com que os sociólogos começassem a dar o alarme: eles viram neste fenómeno uma determinada orientação, "encomendada" por certos grupos sociais.

A sua argumentação é a seguinte: a Rússia viveu há pouco um período de privatizações caóticas e injustas, quando os imensos bens do país foram divididos entre os clãs próximos do poder ou do mundo do crime. Agora estas mesmas forças e os "mass media" que intervêm como guardiões dos interesses desta camada procuram incutir na consciência do cidadão comum a ideia da inevitabilidade histórica da criminalidade, da necessidade de as pessoas se conformaram com isso, como que fosse uma fatalidade que paira sobre o povo russo. A Rússia está condenada ao caos jurídico, é uma norma de vida: são essas as ideias que se pretende inculcar no leitor ao mostrar-lhe os rios de sangue.

É óbvio que esta opinião é discutível. No entanto, muitos russos começam a compreender aos poucos que a actividade editorial merece hoje mais atenção por parte do Estado e mais regulação. Na Rússia a literatura clássica e a boa literatura não devem ser condenadas ao desaparecimento. Por muito que critiquemos os tempos soviéticos, temos que ter em conta uma coisa: a Rússia não deve perder a sua herança cultural criada ao longo de séculos graças ao amor verdadeiramente nacional pela boa literatura.

Na imprensa travou-se a discussão: de que maneira o Estado poderá ajudar? E já temos as primeiras propostas, como por exemplo isentar do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) a imprensa periódica e os livros de qualidade - quer dizer, fazer o que já fizeram tais países como a Grã-Bretanha, Noruega e Grécia. Manter sob o controlo do Estado várias grandes editoras e através destas passar a realizar um programa federal de publicação de obras reconhecidas e de qualidade...

A Rússia tem que ter sempre na memória a máxima de Thomas Mann que dizia que "os livros de hoje são as obras de amanhã".

Vladimir Simonov © RIAN

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