Os professores e o crime (I)*

Como se fosse uma pessoa informal, a delegada não intimou os professores a vir à delegacia. Pelo contrário, ela foi ao Colégio. Evidentemente, nisto já havia método. Ela se dizia que agindo dessa maneira, deixava-os à vontade, para que soltassem a língua, falando de coisas que lhes pareciam sem valor. É claro também que tal procedimento, simpático, era de uso em um primeiro momento da investigação. Na fase crucial, a simpatia seria transformada em um monstro bruto, para arrancar a verdade. A doutora retomaria então os imaginados poderes de basilisco. Os mestres, embora disso não soubessem, enfileiravam-se tensos no corredor de acesso à secretaria.

Sozinha, tendo o Cristo na sala por testemunha, a delegada os recebe. A primeira a entrar é a professora Celestina. Muito gorda, mas a passos leves.

- Bom dia, doutora.

- Bom dia, professora. Sente-se, por favor. A senhora é ...?

- Celestina Marricone. Ensino biologia, doutora.

- Sei. – E depois de uma olhada nas anotações: - A senhora tinha diálogo com a aluna morta?

- Sim, como professora.

- Claro... - e a delegada sorri. – Eu não pensaria de outra maneira. Por falar nisto, a senhora tinha relações, de amizade, com ela?

- Tinha, como professora, tinha. Eu sou amiga de todos os meus alunos, doutora.

- Sei. – E se dirige à ferida, por método ou por vício. – A senhora gosta mais de meninas ou de meninos?

- Eu não faço distinção de sexo, doutora. Para mim, todos são alunos, sem distinção.

- Mas a senhora tem preferências. Eu sei que a senhora tem preferências.

- A senhora ...? – E depois de uma pausa: - Até as mães têm preferências, não é, doutora? Mas eu não distingo por sexo. Eu gosto mais dos alunos aplicados.

- Sei. Os aplicados são as meninas.... Professora, a senhora convida alunas para a sua casa?

- Siim, às vezes... Mas Cristininha, nunca.

- A senhora é casada?

- Eu? Eu ... – E começa um choro miúdo. – Solteira, doutora. O que é que tem? O que é que isso tem a ver com o caso, doutora? Eu não sou lésbica, doutora. Eu gosto de meninas, mas não sou lésbica. E se fosse, mesmo se fosse ... - E cai num pranto. – ... Eu jamais iria cometer uma infâmia dessas.

A doutora quase sorri.

- Enxugue as lágrimas, professora. Eu preciso continuar.

A professora, sem lenço, levanta o roliço braço direito e passa a manga do vestido nos olhos, no nariz. Funga, olha para o chão. A delegada, vendo-a frágil e acuada, quer mais, cobra um troco: deseja uma compensação, para a guarda dos segredos que sabe, ou finge saber.

- A senhora já ouviu falar de algum namoro entre aluna e professor?

- Namoro mesmo, não. Paquera, sim.

- De quem?

- Do professor Gusmão. Mas não tenho certeza. Eu já vi Gusmão dando carona a umas alunas.

- Mas isso não é paquera.

- É o que eu sei.

- A senhora sabe mais. Tente lembrar-se de algum comportamento esquisito... – iria acrescentar, “se é que alguma coisa não é esquisita nesta escola”, mas calou.

- Doutora, aí eu podia ser leviana.

- De maneira nenhuma. Eu não vou considerar o que você disse como uma acusação. É só uma curiosidade. Vamos.

- Eu me lembro do professor Antônio Luís. Numa reunião, ele já ameaçou arriar as calças.

- O quê? Somente pra chamar a atenção?

- Acho que sim. Ele é muito esquisito. Ele já chegou a dizer que matar uma criança e administrar o Dom Vital são a mesma coisa.

- Hum...- Anota. – A professora se lembra de mais alguma coisa?

- O diretor. Se a senhora promete guardar segredo...

- Pode falar.

- Eu acho que ele gosta muito, demais, dos alunos.

- Mas o crime foi contra uma menina... – E aborrecida: - A senhora pode ir. Muito obrigada.

A professora sai arrastando um peso maior que o corpo, como se carregasse o fardo dos pecados do mundo. Ao atingir o corredor, faz sinal com o polegar para baixo aos colegas. Os murmúrios crescem. Entra o próximo.

- Nome?

O professor se apresenta com um ar de católico no confessionário. Humildemente:

- Cássio, doutora. Professor de inglês.

- Sente-se. – E olhando-o nos olhos: - O senhor gosta de ensinar, professor?

- É a minha profissão. Aprendi a gostar dela.

- E dos alunos, quem lhe dá mais trabalho, os meninos ou as meninas?

- É indiferente. Aluno para mim não tem sexo.

- O senhor se lembra da hora em que chegou ao colégio, no dia do crime?

- Exatamente, não. Mas sempre chego um pouco antes do toque da campa. Devo ter chegado às sete.

- Como o senhor soube do crime?

- Eu estava na sala de aula, quando ouvi um tumulto. Desci para ver o que houve, e soube. Não me lembro por quem.

- O senhor conhecia a aluna?

- De vista, apenas. Ela foi minha aluna. Era boa menina.

- O senhor conhece algum professor que fosse mais amigo dela?

- Amigo, como assim?

- Que parecesse mais íntimo.

- O professor Gusmão, o professor Santiago...o professor Antônio Luís também.

- Com quê essa amizade parecia? Como era essa amizade?

- Assim, de imediato, eu não sei. Eu não me lembro.

- Eu vou ajudá-lo na lembrança, professor. – E acomoda-se na cadeira, para entrar no terreno que melhor conhece: - Eu vou acender a sua lembrança. Veja bem. Eu sei que você é informante do Diretor. E sei também que o Diretor está muito bem informado sobre as atividades dos professores. Isto só pode vir de você, certo? Então fale o que você sabe.

Cássio olha para trás.

- A porta está fechada – a delegada o tranqüiliza.

- Doutora, não é assim. Desculpe, mas não é. Não é o Diretor estar informado de alguma coisa, e a senhora concluir logo que fui eu. Eu posso falar alguma coisa, e ele lá, pelos caminhos dele, saber de outras. Eu comento bobagem, de professor que quer afundar a escola, essas coisas. É só isso. - Você gostaria que seus colegas soubessem que você entrega... essas bobagens?

- É claro que não.

- Então fale. O professor é inteligente. Sabe que eu tenho mais poderes que um diretor de colégio, não é?

- É, claro. Olhe, eu sei que o professor Santiago troca bilhetes, quer dizer, ele escreve bilhetes nas provas das alunas. O outro, o professor Gusmão, já foi visto com alunas fora do colégio. E sei também que o professor Antônio Luís pode até ser um depravado.

- Seja mais claro.

- Eu estou dizendo o que sei, doutora. Eu não posso inventar. Seria antiético.

- Entendo. – A delegada fica em silêncio, estudando o mestre. É um sujeito baixinho, nervoso, abraçado à sua pasta. “Coitado”, ela se diz. “É mais um espécime do homem brasileiro: cercado de dívidas, de problemas domésticos, de inferno profissional. E falando em ética!... Um homem assim”, ela conclui, “é um ser absolutamente frágil”. E resolve:

- Professor ...

- Pois não, doutora.

- Professor, que tal o senhor trabalhar para a polícia?

- Eu?

- Sim.

- O que eu ganharia com isto?

- Há pequenas e grandes vantagens, professor. As menores são a facilidade para qualquer documento, porte de arma... A melhor é a polícia fazer vista grossa a pequenos delitos que o senhor cometa. E até a delitos médios. Depende. O senhor ganha uma proteção que os outros não têm.

- Não sei. É difícil.

O rato ronda o queijo, a delegada se diz.

- Venha, professor. Que é que tem? O senhor estará ajudando a polícia a desvendar um crime. – E sorri: - A causa é nobre.

O mestre lembra-se, longinquamente, nos confins, de que “Then was Jesus led up of the spirit into the wilderness to be tempted of the devil”, e que depois de haver jejuado por quarenta dias e quarenta noites, teve fome. Mas “Man shall not live by bread alone”. No entanto, ele se disse, “Jesus era Jesus”, e por isso decidiu que ele, o pequeno mestre diante da delegada, bem poderia viver de toda a palavra que saísse de sua boca. E deixou cair a pasta sobre os joelhos, como quem desce as armas.

- Como é que eu faço, doutora?

- Ora, professor, isto o senhor já sabe. A diferença é que dessa vez o senhor não será só ouvidos. Além de provocar os suspeitos, o senhor me ajudará na investigação. Quem sabe o senhor não entra em uma nova vida? – E cruzou as pernas.

“O diabo não é feio”, o professor se disse. E se levantou, estendendo-lhe a mão:

- Vamos ver.

- Obrigada, mestre – responde-lhe a delegada, pondo as duas mãos sobre a mão estendida de Cássio. – Obrigada.

Lá fora o burburinho aumenta. Entra Gusmão.

* Da novela O Caso Dom Vital

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