SHOSTAKOVITCH, DEFENSOR DA LIBERDADE

Dmitri Shostakovitch (1906-1975) foi o maior compositor russo do século XX. Sua prolífica obra abrange trilhas sonoras de filmes, óperas, peças de jazz, concertos para piano e 15 sinfonias. Duas destas, a Quinta e a Sétima, além de notáveis qualidades estéticas, têm também interesse histórico e político. São excelentes críticas ao totalitarismo, feitas por um homem que conheceu na pele o terror de dois regimes brutais: o stalinismo e o nazismo.

Shostakovitch aderiu entusiasticamente à revolução socialista, ainda bem jovem, como vários intelectuais e artistas da época, tais como o poeta Maiakovski, o escritor Gorki, o cineasta Eisenstein, o médico Pavlov e o pioneiro da exploração espacial Tsiolkovski. E também como muitos destes, se decepcionou profundamente com os rumos que a União Soviética tomou com a ascensão de Iosif Stalin, principalmente a partir da década de 30: repressão, censura, campos de trabalhos forçados, eliminação de qualquer forma de oposição ou contestação, culminando com o extermínio de todos os principais participantes da revolução socialista de 1917.

O próprio Shostakovitch quase se tornou uma dessas vítimas: em 1934, sua ópera "Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk" desagradou a Stalin, o que levou o compositor a ser atacado por toda a critica musical, e isso provavelmente seria um pretexto inicial para que fosse acusado, como tantos outros, de "contra-revolucionário" ou "trotskista". Shostakovitch mantinha então constantemente uma pequena valise, com roupas, documentos e outros objetos necessários, caso aparecesse a polícia política para prendê-lo, o que poderia dar-se a qualquer momento. Não abandonou, porém, suas composições.

E como resposta às críticas que sofreu contra sua ópera, escreveu sua Quinta Sinfonia, opus 47, com o título: "Resposta Prática de um Artista Soviético a Críticas Justas". É de se supor que o título seja irônico, e a obra parece estar carregada de referências contra Stalin e o regime de terror instaurado por este: o primeiro movimento tem um tema principal bastante forte e uma marcha dissonante que, segundo amigos do compositor, foram feitas pensando em Stalin.

O terceiro movimento é bastante triste, uma espécie de réquiem aos milhões de vítimas do ditador. E o quarto movimento, triunfante, otimista, foi feito não apenas para agradar ao estilo oficialmente exigido (o "realismo socialista" precisava sempre de finais gloriosos), mas talvez para infundir alguma esperança de que algum dia aquele terror acabaria. O que de fato ocorreu, embora tenha demorado muito: foi preciso esperar o XX Congresso do Partido Comunista, em 1956, quando Krushev denunciou o regime de terror de Stalin e reabilitou as suas vítimas.

A Quinta Sinfonia alcançou imenso sucesso quando de sua primeira apresentação em Leningrado (hoje, São Petersburgo): o público chorou abertamente durante o terceiro movimento, e ao final da sinfonia aplaudiu durante mais de 40 minutos. Provavelmente, foi esta sinfonia que impediu a prisão ou condenação à morte de Shostakovitch, pois devido a sua imensa popularidade seria muito difícil forjar uma acusação.

Alguns anos depois, no dia 22 de junho de 1941, a Alemanha nazista invade a União Soviética, dando início aos mais sangrentos combates de toda a história, e que culminaram na morte de 27 milhões de soviéticos, a maior parte civis, vítimas de uma campanha de eliminação étnica de escala ainda maior que a perpretada contra os judeus. A cidade de Leningrado, a segunda maior da URSS, onde Shostakovitch nasceu e residiu, foi cercada pelas tropas nazistas, isolada do resto do país e impedida de receber qualquer abastecimento durante 1000 dias. Mais de um milhão de pessoas morreram de fome, de frio e de doenças, e ainda assim os nazistas não puderam tomar a cidade.

É de se imaginar o choque de Shostakovitch ao descobrir que havia um regime que conseguia superar o de Stalin em brutalidade, e logo ele compôs sua Sétima Sinfonia, que recebeu o título de "Leningrado", sobre a invasão nazista e o cerco à cidade.

Tudo indica que Shostakovitch começou a compô-la antes da guerra, e inicialmente seria outra crítica velada a Stalin. Quando da invasão, o compositor deve ter reformulado seu material, pois Hitler era uma ameaça ainda maior e mais terrível que Stalin. De fato, o primeiro movimento, o mais impressionante de todos, é uma vívida descrição da gênese e atuação de toda forma de totalitarismo.

Depois de uma introdução, começa uma marcha cujo tema é repetido por mais de 10 minutos, alterando-se o arranjo. De início, ouve-se apenas um distante rufar de tambores e um suave pizzicato, e aos poucos o arranjo vai aumentando, a marcha vai se tornando cada vez mais ruidosa e estridente, até se tornar uma música extremamente forte, quase insana. É assim que os regimes totalitários surgem: seu início é sempre tímido, muitas vezes rídiculo; porém, à medida que se consolidam, vão ganhando força e ousadia e não têm nenhum pudor de praticar os atos mais abomináveis.

Isso pode ser visto examinando a ascensão de Stalin e Hitler. O primeiro, mal visto por boa parte dos membros do Partido Comunista Soviético e inimigo declarado do "número 2", Trotski, após a morte de Lenin teve que contentar-se com dividir o poder com Kameniev e Zinoviev; em meados de 1935, seu poder já era tão vasto que lhe permitiu exterminar todos os principais membros do Partido que haviam participado da revolução e da guerra civil, e enviar milhões de pessoas para campos de trabalhos forçados sem nenhuma acusação, apenas sobre a alegação de "atividades contra-revolucionárias" e "trotskismo".

Dizem ironicamente que Stalin foi o maior amigo dos burgueses, pois ninguém matou mais comunistas do que ele... Hitler, por sua vez, era uma figura verdadeiramente ridícula: pintor fracassado, soldado frustrado do exército alemão na Primeira Guerra Mundial e "gênio incompreendido" (na sua própria opinião), começou sua carreira política com uma pífia tentativa de golpe numa cervejaria de Munique (o chamado "putsch" de 1923), tão mal coordenado que não conseguiu sequer desestabilizar a frágil e impopular democracia alemã do período entreguerras; em 1941, porém, Hitler era senhor da Alemanha, Áustria, Tchecoslováquia, Polônia, França, Noruega, Dinamarca e de boa parte da Iugoslávia e do norte da África, também aterrorizava o único país da Europa ocidental que ainda se lhe opunha, a Grã-Bretanha, e sua recente campanha contra a URSS ia muito bem, aparentemente a ser concluída em breve com a completa destruição deste país.

Além de expor a gênese do totalitarismo, o primeiro movimento da Sétima Sinfonia também mostra a atuação dos regimes totalitários: o constante rufar dos tambores é uma clara evocação ao militarismo e ao uso seguido da força, e a longa repetição de um mesmo tema expõe a máquina de propaganda e culto ao líder, baseados na lavagem cerebral feita através da infindável repetição de chavões.

O terceiro movimento desta sinfonia, assim como o da Quinta, é uma música bastante triste e fúnebre, desta vez homenageando os mortos pela invasão nazista. E o quarto, que seria o da vitória, tenta ser um movimento triunfal e infundir algum otimismo, mas na verdade não consegue. Um crítico soviético criticou Shostakovitch por ter dado a música mais impactante (o imenso primeiro movimento) aos nazistas, e afirmou que "se as coisas tivessem acontecido como nesta sinfonia, nós nunca teríamos ganhado a guerra." Porém, é preciso lembrar que Shostakovitch escreveu esta música em 1941, quando os nazistas estavam massacrando as forças armadas soviéticas, e era muito difícil ter esperanças. Somente em dezembro de 1942, com a derrota do exército alemão em Stalingrado, a balança começou a pender para o lado soviético - e mesmo assim ainda havia um longo e sangrento caminho até a vitória definitiva, em maio de 1945.

Shostakovitch teve a infelicidade de conhecer dois dos mais brutais regimes que já existiram, e não hesitou em denunciá-los através de suas músicas. Apenas com sons, sem palavras, deu um testemunho extremamente vívido e foi um artista que, como o escritor Lev Tolstoi, encarnou um ideal de profundo comprometimento com a verdade e a justiça. Foi um grande defensor da liberdade, e a humanidade deve muito a ele, por sua bela música, sua lucidez e sua coragem.

Carlo MOIANA Pravda.Ru Campinas-SP Brasil

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