Paul Auster e Sophie Calle: a vida como ficção

Leviatã, de Paul Auster, foi relançado no Brasil em2001, com nova tradução. Os comentários, na imprensa brasileira, foram controversos, variando da constatação de que Leviatã está "entre os melhores livros de Paul Auster" (Correio Brasiliense) até o veredito de que "como literatura, não é para ser levado a sério" (Estado de São Paulo). Polêmicas à parte, há um detalhe do romance que, embora sempre mencionado, foi pouco explorado até agora. Trata-se da personagem Maria e de suas relações com a artista francesa de carne-e-osso Sophie Calle, relações estas que vão além da comum "homenagem a pessoas de verdade" e ajudam a pensar sobre a interdisciplinaridade da produção artística atual.

Publicado nos Estados Unidos em 1992, o romance se inicia com a explosão de uma bomba e a subseqüente morte de Benjamim Sachs. Sachs era uma espécie de terrorista patriótico, que destruía réplicas da Estátua da Liberdade em protesto contra o desrespeito dos políticos aos "ideais nacionais" antigos e profundos. Quem tenta reconstituir a história anterior ao acidente é um amigo de Sachs, escritor como ele, chamado Peter Aaron – sim, as mesmas iniciais de Paul Auster, conhecido pela obsessão de projetar a si mesmo em sua ficção. O narrador vai costurando várias histórias distintas, num processo de flash back: relembra como conheceu Sachs, sua mulher Fanny– com quem tem um caso – e dedica algumas páginas a uma esquisita e fascinante figurante: Maria.

O narrador de Leviatã conta que Maria lhe suscitara medo e excitação, pois sua vida era organizada em torno de rituais bizarros. Ela era uma artista difícil de se classificar em gavetas: fotógrafa, artista conceitual, escritora... A obra de Maria existia muito mais nas longas aventuras que criava para si mesma, do que no produto eventualmente exposto em galerias e museus. Para se ter uma idéia: um dia, Maria encontrou um homem numa festa e o achou infinitamente belo, contudo pessimamente vestido. Durante vários anos, presenteou-o anonimamente com gravatas, camisas etc. e se deleitava, nos reencontros casuais na casa de conhecidos em comum, ao ver que o tal homem usava as peças que ela enviara. Foi, assim, construindo uma obra-prima em termos de beleza masculina - só para ela mesma. Costumava também seguir passantes durante dias ou mesmo meses a fio, fotografando-os e anotando passo a passo seu cotidiano e suas reações. Refazia depois os itinerários de cada um, sozinha, tentando imaginar a existência daquelas pessoas e escrevendo biografias imaginárias para elas – expostas, depois, junto com as fotos.

As "perseguições artísticas", ditadas por esbarrões casuais, levaram Maria a experiências radicais, como quando acompanhou um desconhecido, de trem, até Veneza - sem que ele percebesse. Ou quando trabalhou como camareira de hotel para rastrear, com sua câmara e uma caderneta, os hábitos cotidianos dos hóspedes. Tais procedimentos – entre voyer e detetive – eram utilizados também contra si própria. Certa vez, convidada pelo porteiro de uma casa noturna, que se impressionara com seus atributos físicos, aceitou trabalhar como substituta de stripper; pediu, então, que uma amiga a fotografasse na posição de objeto dos vorazes olhares masculinos. Em outra ocasião, solicitou a sua mãe que contratasse um detetive particular para espioná-la, fotografá-la e anotar tudo o que ela fizesse. Queria sentir o gosto de ter alguém interessado em cada gesto seu.

Esses e outros projetos da personagem Maria são invenções típicas de Paul Auster, com seu tom existencial e irônico, seu universo pautado por regras tão rígidas quanto ilógicas. (Quem leu Trilogia de Nova Iorque deve lembrar que há uma passagem na qual dois detetives são contratados, ao mesmo tempo, para se seguirem um ao outro e enviarem relatórios detalhados das respectivas atividades não se sabe para quem). No entanto, a personagem Maria não foi inteiramente inventada pelo escritor. É 95% inspirada na artista francesa Sophie Calle, com quem Auster manteve contato no período em que morou em Paris. Todas as obras malucas de Maria, acima descritas, foram de fato realizadas por Sophie Calle.

Tudo começou quando Sophie Calle retornou a Paris, após sete anos de ausência, e decidiu observar o comportamento de passantes parisienses escolhidos a esmo, a fim de se reambientar na cidade e reencontrar um modus vivendi. Hoje, além de fotógrafa, performer e cineasta (seu único e elogiado longa chama "No sex last night"), Calle também é autora na editora Actes Sud. Publicou, em 1998, sete livrinhos que fazem parte da série "Double Jeux" (Duplo Jogo). Unindo texto e fotografia, cada livro relata um dos projetos inusitados da artista. O interessante é a intertextualidade que se estabelece entre Auster e ela: os livretos de Sophie Calle têm na abertura trechos de Leviatã nos quais o escritor se refere à Maria. A estrutura dos sete é semelhante: na abertura, o texto deAuster riscado e anotado às margens, em cor rosa, mostrando o que não é verdade no caso da artista de carne-e-osso. Em seguida, fotos e pequenos textos da Sophie "da vida real" relativos ao mesmo projeto atribuído por Paul Auster à sua Maria.

O livro VI, intitulado "Le carnet d'adresses", trata de um dos projetos mais ousados de Sophie (e Marie): tendo encontrado uma agenda de endereços na rua, em 1983, ela(s) decide(m) conhecer a fundo seu proprietário, sem nunca falar com ele. Método: entrevistar várias pessoas que constavam da agendinha. Maria, no romance, não consegue ir longe na empreitada. Talvez devido ao rancor que Sophie Calle "de verdade" levantara contra si por, além de invadir a vida alheia, ainda escancará-la para milhares de pessoas. Sim, pois os resultados progressivos da investigação sobre o dono do caderninho foram sendo publicados, em capítulos, no Libération... O dono da agenda ficou tão ofendido, que publicou um protesto, no mesmo jornal, com uma foto de Sophie Calle nua - usando o feitiço contra o feiticeiro, acabou provando, involuntariamente, o poder desse feitiço.

Como se não bastassem os nós na cabeça provocados pelo tipo de trabalho de Sophie Calle – e de Maria –, há um segundo grau de complexidade nas trocas entre o escritor e a artista performática: Sophie Calle decidiu viver algumas passagens da vida da personagem Maria que haviam sido totalmente criadas por Auster. No Livro I, chamado "De l'obéissance" (Da Obediência), estão belas fotos e descrições suscintas do regime monocromático que Sophie Calle respeitou à risca, por uma semana, como fizera Maria, na ficção. Na segunda-feira, dia-do-laranja, só comeu camarão, cenoura e tomou suco de laranja; na terça-feira, dia do vermelho, um bife tartare com tomates, acompanhado de um copo de vinho tinto e assim por diante, uma cor para cada dia. No mesmo livro, há ainda uma amostra dos "dias dedicados às letras", criados por Paul Auster para Maria, em Leviatã. À maneira de sua clone Maria, Sophie Calle, num dia dedicado ao "C", vai à cerimônia católica tentar uma conversão de coração, fazer confissão etc. No dia do "W", passa o tempo lendo sobre western, ouvindo walkmann, tomando whisky e apreciando fotos de William Wegman. A "brincadeira" de fazer Sophie Calle virar personagem de Paul Auster é retomada no último livro da série. A pedido de Calle, Auster escreve o Gotham Handbook (livro VII), guia com instruções sobre como Sophie deve se comportar quando estiver em Nova Iorque.

Dois eventos recolocaram Sophie Calle em evidência, na França, no fim do ano passado. Primeiro: ela ganhou uma sala especial no Museu de Arte Moderna do Centro Georges Pompidou, onde exibe parte de um projeto paradoxal: mostrar o que pessoas cegas consideram como belo. Embaixo de cada retrato frontal dos cegos - olhando diretamente em nossos olhos - estão as respostas que eles deram à questão "qual sua imagem de beleza?". Ao lado dos textos, uma foto produzida por Sophie de acordo com as declarações. Um dos entrevistados diz gostar de pensar num aquário; outro imagina que seu filho seja muito bonito e há uma pessoa que afirma: "do belo, faço luto. Não tenho necessidade de beleza (...) como não posso apreciá-la, fujo dela". A sala gera comoção ao mesmo tempo que perplexidade, pois Sophie Calle admite que uma pequena parte dos casos é inventada por ela mesma. Só não fala qual... Além disso, a Actes Sud lançou há alguns meses uma edição especial, agrupando os trabalhos mais recentes de Sophie Calle. Les Disparitions (as desaparições), com fotos tiradas no Museu Isabel Stewart-Gardner, em Boston, foca o vazio deixado por telas que foram roubadas. O vácuo é preenchido, em parte, pelas lembranças dos funcionários do museu. Souvenirs de Berlin-Est (lembranças de Berlim oriental) registra locais vazios ou reformados, onde ficavam marcos e monumentos comunistas antes da queda do muro. Mais uma vez, as imagens daquilo que não existe precisam ser completadas por palavras e pela imaginação.

Quanto a Paul Auster, seu último livro também dá voz a "estranhos" e torna público, o que era privado. I Thought my dad was god (Pensei que meu pai era deus), lançado em setembro, consiste numa antologia de histórias "reais", enviadas por ouvintes e lidas pelo escritor num programa que apresentou, na rádio NPR, em 1999. Não só esse, como os outros trabalhos de Auster e Calle suscitam várias questões espinhosas. Além da - batida mas nem por isso esgotada - discussão dos limites entre a vida e a arte e entre as distintas linguagens artísticas, ficam no ar várias outras: até que ponto a intimidade pode se tornar pública sem representar violência ou perversidade? Por que uma imagem ou história comove mais se sua "veracidade" for atestada? Dirigimos nosso destino ou apenas nos equilibramos na Música do Acaso, entre coincidências inexplicáveis e obsessões pessoais incontroláveis? Nossos próprios rituais cotidianos são tão mais lógicos dos que o de Marie e Sophie Calle?

O fato é que Paul Auster e Sophie Calle aumentam (e deformam), com uma espécie de lupa, detalhes e rotinas banais, servindo-se da experiência pessoal – própria e alheia – como matéria-prima para a criação artística. Seduzem-nos com uma aparente familiaridade, para fazer com que nos percamos em itinerários labirínticos e situações inesperadas – já que o acaso orquestra a obra de ambos. Em comum, a tão desvairada quanto tocante busca por vestígios, ausências, ínfimas memórias subjetivas que, na maior parte das vezes, conseguem transformar em obras pungentes e originais.

Ilana Seltzer GOLDSTEIN

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