Cinédie: exemplo francês de casamento entre cinema experimental e projeto social

Cinédie é o nome de uma associação francesa que, desde 1995, se empenha na difusão de filmes com pouco espaço no circuito comercial, especialmente curta e média-metragens.

Seu folheto de apresentação resgata um manifesto assinado, em 1953, por Alain Resnais e outros cineastas: "ninguém teria a idéia de medir uma obra literária pelo número de páginas, uma pintura pelo seu tamanho". Como bem lembrou Luiz Zanin Oricchio, neste Caderno (4/03/01), a ousadia e a independência do curta-metragem abrem caminhos estéticos para o longa; o formato mereceria, portanto, maior apoio e divulgação . Mas além de promover novos curtas franceses e estrangeiros, a associação Cinédie utiliza o cinema como instrumento pedagógico, por meio de projeções, ateliês e debates destinados ao público de 12 a 18 anos. O objetivo é ampliar os horizontes estéticos da garotada e, ao mesmo tempo, aproveitar os "ganchos" dos filmes para discutir questões sociais, éticas e políticas.

No início, a Cinédie era composta apenas por três amigos sonhadores. Hoje, conta com 20 colaboradores – entre diretores, atores, cenógrafos e animadores culturais – e tem parceria com 30 cidades fora do pólo cultural parisiense. Seu primeiro grande projeto surgiu na época da Copa do Mundo de 1998, quando foram apresentados, em escolas e cinemas do interior da França, filmes de vários cantos do mundo que mostravam aspectos inusitados dos países em competição no estádio. As projeções eram seguidas de debates, sempre com a presença de alguns realizadores. O projeto, intitulado "On court autour du monde" ("Correndo em torno do mundo", ou, numa tradução livre que dê conta do trocadilho, "A gente en-curta a volta ao mundo") pretendia, segundo os organizadores, "romper com idéias prontas e superficiais sobre outras culturas e despertar a curiosidade do olhar". Cada escola ou cidade podia escolher um dos cinco subprogramas do "cardápio", de acordo com a temática central que lhe parecesse mais pertinente: significados e limites da piada e do riso; infância e juventude nas grandes cidades; identidade e imigrantes clandestinos; a verdade na tela ou quando as imagens incomodam o espectador; finalmente, a África longe dos clichês. Foram atingidos, ao todo, 14.000 espectadores infanto-juvenis. Desde as primeiras projeções, em 1998, a equipe tem retornado anualmente aos mesmos locais e afirma serem perceptíveis as mudanças e o amadurecimento dos adolescentes enquanto receptores críticos de imagens.

Para conquistar adolescentes da periferia e da província e a fim de suscitar debate, os "animadores" do Cinédie selecionam filmes em que haja personagens infanto-juvenis, temas ligados à sexualidade e...violência. Intercalam, nos programas, filmes leves com outros mais densos. Entre os divertidos está "Act naturally", de Haralt Zwart (Noruega, 1993), que mostra uma equipe de televisão invadindo a casa de uma velhinha para entrevistá-la ao vivo, já que ela é a avó de um atleta que está em vias de se tornar campeão mundial de esqui. O jornalista pretende explorar a emoção da vovó orgulhosa, mas ela nem sabe da situação do neto, nem diz coisa com coisa, em cenas cheias de ironia e humor. No entanto, denso é eufemismo para alguns outros filmes, verdadeiros socos no estômago. "Papa", de Laurent Merlin (França, 1997) é a história de um jovem drogado que ameaça seu próprio pai com um revólver e o agride fisicamente. Já "Crack of the Halo", de Jinhan Kim (Coréia do Sul, 1997), retrata a infância de uma menina que passa o dia trancada em casa, cuidando do irmãozinho menor - que acaba deixando cair no chão... Questionado sobre o risco de que cenas de violência na tela acabem desencadeando comportamentos similares nos espectadores-mirim, Frédéric Henry responde que seu público alvo já conhece e convive com a violência dentro de casa, no bairro e na televisão.

Para ele, o antídoto é, durante as atividades que se seguem à projeção, desconstruir as cenas de violência enquanto ficção e metáfora e, sobretudo, contextualizá-las, discutindo de onde surge a violência e como poderia ser evitada. A partir do ano que vem, a Cinédie espera ainda ter a participação de psicólogos em suas "animações" França afora.

"Les séances fantastiques" ("Sessões fantásticas"), segundo grande projeto dos cinédianos, estreou em março deste ano e é ainda mais ambicioso e cheio de fôlego que o anterior. Trata-se de mostrar aos jovens, especialmente nas regiões com alto índice de violência – que contam, por isso mesmo, com mais verba do governo francês para programas educacionais – os bastidores e encantos do métier cinematográfico. Além das projeções usuais, seguidas de debates e dinâmica de grupo, a idéia é oferecer também ateliês práticos de maquiagem, cenografia e efeitos especiais, sonoplastia, câmera, direção e interpretação, sempre com profissionais da área. Os ateliês duram dois dias inteiros e culminam com a realização de filmes em vídeo pelos próprios jovens. As primeiras experiências já deram certo: os cerca de 130 participantes em Strasbourg e 200 em Créteil ficaram fascinados, pediram para fazer e assistir a mais filmes e muitos querem "virar cineastas".

A associação recebeu ajuda do Centro Nacional de Cinematografia em 1996, apoio do Fundo de Ação Social, em 1997, e, desde 1998, recebe uma verba do Ministério da Juventude e dos Esportes. Graças à qualidade do seu repertório internacional é chamada para participar de festivais e encontros fora do âmbito escolar, quando se torna conhecida também dos cinéfilos adultos. Em janeiro de 2001, por exemplo, a Cinédie foi convidada especial no "Némo" - festival anual de cinema independente, realizado em Paris. As dificuldades financeiras, no entanto, são uma constante, devido aos custos da empreitada: cada cópia de filme que conseguem comprar não sai por menos de 1.600 R$, em cada viagem há que se pagar transporte, alimentação, hotel, material e divulgação local. Mesmo assim, o grupo continua animado e otimista.

É interessante mencionar que uma produção brasileira deu grande impulso à associação Cinédie: Ilha das Flores, de Jorge Furtado (1989). Frédréric Henry, um dos coordenadores, conta que o curta, exibido no Festival de Clérmont-Ferrand, impressionou-o "pela combinação da estética elaborada com a problemática social" (para quem não viu, o premiado Ilha das Flores refaz, em 15 minutos e com humor, o trajeto de um tomate, desde a colheita, passando pelo supermercado e chegando ao lixão - habitado por porcos e homens). O grupo francês vem utilizando esse filme como parâmetro para seu acervo internacional que, aos poucos, vai crescendo. Outros três brasileiros exibidos e discutidos pela Cinédie são Breve história das gentes de Santos, de André Klotzel (1996), Alma do negócio, de José Roberto Torero (1996) e "Maracatu, Maracatus", de Marcelo Gomes (1995). Um exemplo inspirador, neste momento em que o curta-metragem está em evidência no Brasil, graças à indicação de "Uma História de Futebol" para o Oscar deste ano.

ILANA SELTZER GOLDSTEIN

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